Introdução
O século XX foi marcado por rupturas e continuidades nas representações do ser mulher na sociedade, com a conquista de novos espaços e direitos. Neste período, existiram diferentes concepções de corpo das mulheres. No Brasil, o acesso a práticas corporais como a ginástica estava limitado às que poderiam frequentar clubes e institutos, ou seguir dicas de como se exercitar oferecidas pelas revistas e o rádio. Desta forma, exercitar o corpo estava restrito às mulheres de classes média e alta, primordialmente brancas, as quais tinham as revistas como suas companheiras de lazer (Pinsky, 2014) por terem maior capacidade de consumo. De acordo com Sant’Anna (2018), as revistas femininas aconselhavam constantemente a manter a linha, com ênfase à ginástica e aos regimes alimentares. Estes conselhos de beleza eram motivados por uma necessidade de seduzir os homens e levá-los ao altar.
Assim, tal padrão ideal de feminilidade indicava que as mulheres deveriam almejar bons maridos e serem comprometidas com as funções do lar e da maternidade, privilégios restritos àquelas que não necessitavam trabalhar fora. Por sua vez, a padronização estética normatizada determinava que o referencial de beleza eram as mulheres brancas, que para serem belas deveriam cuidar de seus cabelos, usar determinados tipos de maquiagem e praticar exercícios, pois os cuidados com o corpo e a compra de produtos teriam como finalidade seduzir os homens. O debate a respeito do que é ou não é permitido às mulheres, como devem se portar, se parecer e fazer uso de seus corpos, ocorre historicamente. Para Wolf (1992), desde 1830 as mulheres tiveram de enfrentar diferentes versões do mito da beleza. Esses mitos e debates são impostos de várias formas, sendo a mídia uma delas.
De acordo com Piscitelli (2002), no século XIX a ideia de “direitos iguais e cidadania” e a de igualdade entre os sexos impulsionaram movimentos em vários países, permitindo que algumas mulheres rompessem com diversas desigualdades formais ou legais, conquistando o direito ao voto e à propriedade e o acesso à educação. Essas conquistas passaram a permitir liberdades de escolha, demonstrando a participação ativa de algumas mulheres na definição de suas necessidades, mesmo que a dominação masculina ainda permanecesse uma característica central da sociedade moderna (Weeks, 2000).
Embora tais conquistas tenham permitido às mulheres algumas liberdades, ainda permanece distante a liberdade das imposições de padrões, como os de feminilidade e estética. De acordo com Soares (2019), a feminilidade pode ser definida como um conjunto de características do padrão heteronormativo, como fragilidade, emoção e beleza. Para este artigo, entendemos que os padrões são construídos historicamente; o de feminilidade pode ser visto como o que se espera da mulher, em seu comportamento e papel social, e o estético, como as práticas relacionadas à aparência e cuidados com o corpo.
No Brasil, ao longo do século XX, em especial no final dos anos 1930, “eram as revistas femininas que citavam a importância da ginástica para o cuidado e/ou embelezamento do corpo” (Coelho Filho & Frazão, 2010, p. 272). Conforme examinou Costa (2004), entre as décadas de 1930 e 1960 existiam revistas que descreviam o contexto social da mulher brasileira, mostrando comportamentos padronizados de atividade física, de beleza e formas de educação familiar. Neste período, distinções entre representações de como ser homem e mulher eram mais evidentes e tinham como referência a diferença sexual, as quais geram outras interpretações de práticas sociais e do mundo (Pinsky, 2014).
A prática de ginástica no Brasil foi influenciada pelos métodos ginásticos europeus (alemão, francês, sueco e inglês), os quais deram origem à ginástica científica, que possuía vínculos com a medicina e deveria ser capaz de produzir benefícios na saúde da população. Quando destinada às mulheres, a ginástica deveria acentuar as formas femininas por conta de sua função como reprodutoras (Soares, 2007).
Desta maneira, voltar-se para esse período passado com o olhar do presente e as problemáticas atuais, a partir de registros que tenham deixado rastros, pode-se construir um terceiro tempo - nem o do passado, nem o do presente - (Pesavento, 2012), o qual nos permite compreender os elementos que definem padrões contemporâneos que relacionam ginástica, beleza e corpo, e que mantêm as desigualdades históricas entre mulheres brasileiras.
Diante deste cenário, emerge o seguinte problema de pesquisa: como a revista brasileira Jornal das Moças construiu representações de um corpo belo e sedutor relacionado à prática da ginástica (décadas de 1930 a 1950)?
De acordo com Pesavento (2012), as representações fazem com que as pessoas percebam a sua realidade e pautem a sua existência por elas, uma vez que geram práticas sociais e condutas compostas por uma força integradora. A representação não é a cópia do real, mas uma construção baseada nele. As revistas femininas brasileiras têm grande importância na formação de opiniões para as mulheres na época, visto que “penetram no espaço doméstico e procuram atuar como guias de ação, conselheiras persuasivas, companheiras de lazer ou alienação” (Bassanezi, 2005, p. 112). O público-alvo da revista eram mulheres brancas, jovens, em busca de um casamento ou casadas, e que tinham como objetivo se tornarem ótimas donas de casa e mães e também tornar um lar mais moderno (Mira, 2001).
Como justificativa para esta pesquisa, entendemos que, ao compreender como as relações de gênero eram representadas em outro tempo, tendo o passado como uma alteridade reconstruída (Pesavento, 2012), é possível perceber como estas foram construídas historicamente e determinaram comportamentos e identidades para homens e mulheres, para então as desnaturalizar, recusar e criticar (Chartier, 2002). Além disso, apesar de o século XX ser considerado o século das mulheres (Pinsky & Pedro, 2018), em que muitas alcançaram conquistas inimagináveis, não é possível aplicar uma única trajetória a todas, pois mulheres de diferentes grupos sociais possuem experiências particulares, pautadas por vivências de privilégio para algumas, exclusão para outras (Nepomuceno, 2018); além disso, também ainda existem desafios a serem vencidos, muitos deles perpetuados por práticas corporais e representações, como a ginástica e a beleza.
Para este estudo, entende-se gênero de forma relacional, portanto não é um conceito fechado, mas que está em constante disputa. Este conceito começou a ser mais utilizado por feministas norte-americanas na década de 1980, para se opor à noção de sexo biológico e discutir as relações entre masculino e feminino culturalmente e historicamente construídas (Perrot, 2009; Veiga & Pedro, 2019). Assim, o conceito serve como ferramenta analítica e política; não se resume a discutir de forma binária os papéis masculinos ou femininos, mas visa entender como se constitui a identidade dos sujeitos (Louro, 1997). Vale ressaltar que gênero é visto neste trabalho de forma interseccional, com o objetivo de agregar um engajamento multidisciplinar, por meio de discussões sobre raça, classe e sexualidade (Collins, 2017).
Metodologia
A revista Jornal das Moças era voltada para mulheres, editada semanalmente no Rio de Janeiro e distribuída por diversos estados do Brasil, durante os anos de 1914 a 1965. Para realizar este estudo histórico, tivemos como principal fonte as páginas desta publicação que, apesar do termo na denominação, possuía formato de revista. Suas edições estão arquivadas no site da Hemeroteca Digital1 da Biblioteca Nacional do Brasil. Para a coleta das informações, foram utilizados os termos: ginástica e gymnastica (as duas formas eram utilizadas pela revista). Foram encontradas 367 ocorrências, que orientaram o recorte temporal da pesquisa, pois os maiores números de aparições concentraram-se entre os anos de 1930 (75), 1940 (104) e 1950 (122). Dentre estas ocorrências, dez reportagens fizeram relações entre ginástica, beleza e sedução. Além disso, na pré-análise das fontes, propagandas com expressões relacionadas à beleza nos chamaram a atenção, o que nos motivou a selecionar as duas que mais se aproximavam do problema de pesquisa para compor o corpus documental deste estudo e contextualizar o tema na revista.
A análise das fontes parte do pressuposto de que nenhum documento é neutro e sempre carrega consigo a opinião da pessoa e/ou do órgão que o escreveu (Pimentel, 2001; Bacellar, 2008). Assim, se faz necessário que haja indagações para se situar o documento coletado, como saber sob quais condições aquele documento foi redigido; com que propósito; por quem; além de se buscar entender o texto no contexto de sua época. Conforme afirma Bacellar (2008, p. 63), uma “boa dose de desconfiança é o princípio básico a nos orientar nesses momentos, além de uma leitura muito atenta dos autores que já trabalham na mesma linha de pesquisa”; igualmente importante é o cruzamento das informações contidas nas reportagens selecionadas, com referenciais teóricos e revisão bibliográfica, onde buscamos ter maior compreensão do modo como a ginástica foi incorporada como prática na cultura brasileira e no cotidiano das mulheres e das representações do corpo feminino.
Desta maneira, procurou-se o maior número de informações, mesmo aparentemente superficiais, no sentido de identificar o modo como o Jornal das Moças relacionava ginástica, beleza e sedução.
Ginástica e beleza: Representações do ser mulher
A ginástica chega ao Brasil durante o século XVIII, mas é no século XX que “o culto ao corpo se tornou uma verdadeira obsessão, transformando-se em um estilo de vida, pelo menos entre as mulheres das camadas médias urbanas” (Goldenberg, 2005, p. 66). É também nesse período que surge um discurso que pretende “agregar as funções de mãe, dona-de-casa e esposa à função de educadora dos filhos da pátria” (Almeida, 2007, p. 4); ginásios e professores de ginástica multiplicam-se e as mulheres começam a frequentar locais de competições esportivas. Contudo, segundo Priore (2015), “não faltou quem achasse a novidade imoral, uma degenerescência e, até mesmo, pecado” (p. 256).
O período da “Era Vargas” no Brasil, entre 1930 e 1945, foi marcado pela instauração da ditadura do Estado Novo, em 1937, que teve como projeto a nacionalização por meio da exaltação da cultura brasileira (Schwarcz & Starling, 2015). Ações higienistas eram utilizadas com a intenção de aperfeiçoar corpos para uma nação sadia, com trabalhadores fortes e ativos; havia um espírito de exaltação do nacionalismo e o governo assumia um papel de construção da grandiosidade da nação e melhoria das condições de vida (Bitencourt, 2005).
Neste período, a ginástica era vista como atividade física adequada ao público feminino e reforçada pelo discurso médico-higienista, pois havia a necessidade de construir uma nova sociedade. Esse pensamento construiu um discurso normativo, disciplinador e moral, que, em conjunto com a abordagem positivista de ciência e a moral burguesa, foi a base das propostas de disciplinamento dos corpos, dos hábitos e da vida dos indivíduos (Soares, 2007). Para Milagres, Silva e Kowalski (2018), as linhas teóricas deste pensamento e o positivismo corroboravam os estereótipos do gênero feminino, como a formação da mulher para cuidar da casa e da família.
Neste cenário, as atividades físicas também deveriam estar de acordo com as peculiaridades femininas, já que era a mulher quem geraria os filhos da pátria, o bom soldado, o elegante e civilizado cidadão (Soares, 2007). A graciosidade era a expressão corporal da mulher; estava associada a uma cultura feminina que visava desenvolver um campo intelectual e afetivo, característico da Ginástica Feminina Moderna, também chamada de Ginástica Rítmica. A dança, principalmente a clássica, se confundia com esse tipo de ginástica, uma vez que movimentos rítmicos traziam suavidade e graça para os gestos, permitindo que as mulheres alcançassem uma beleza plástica (Begossi & Mazo, 2015). Como exemplo destacamos uma reportagem onde se afirmava que, para serem belas, as mulheres deveriam aprender a ter movimentos harmoniosos, leves e graciosos, pois “movimentos bruscos, rápidos, provocam surprêsa aos observadores, como sendo profundamente antifemininos” (Jani, 1954, p. 101).
Para Louro (2000), o ato de reconhecer o “outro”, aquele que partilha ou não os atributos que possuímos, é feito a partir do local social que ocupamos. As sociedades constroem aquilo que representa a “norma”, ou seja, aqueles que estão dentro dos padrões culturais e aqueles que ficam de fora. Assim, a pessoa que deseja se sentir reconhecida e aceita pela sociedade deve estar dentro dos padrões de beleza.
Alargando esses apontamentos, Bourdieu (2014) diz que o corpo é um produto social, expresso pela forma como as pessoas se comportam, seus hábitos de consumo e as diferentes formas que realizam os cuidados de si, os quais geram um habitus. O habitus é um sistema de disposições que, além de gerar, estruturam práticas que são incorporadas pelos indivíduos; por não serem necessariamente conscientes, costumam ser reproduzidas e, portanto, são duradouras, orientam as práticas corporais e as maneiras de ser no mundo (Medeiros, 2011).
Estabelecendo uma relação entre a visão de corpo de Bourdieu (2014) e a beleza feminina, podemos dizer que existe uma representação que determina a beleza legítima. Como há uma distância entre real e legítimo, as mulheres realizam uma série de investimentos nos aspectos modificáveis de seu corpo real (como o uso de cosméticos e ginástica), para aproximá-lo do legítimo. A definição do que é legítimo, neste caso a representação de beleza feminina, é arbitrária, podendo estar associada tanto a magreza quanto a gordura. Borges (2005) demonstra essa arbitrariedade ao discutir sobre um quadro do século XVII. A obra é composta por três mulheres brancas que, naquela época, eram a representação da beleza feminina; porém, elas não se encaixam na concepção contemporânea que enaltece a magreza, despreza a gordura e, portanto, seriam hoje consideradas como acima do peso. Desta forma, não é a aparência em si que determina a representação do que é belo ou feio, mas o contexto econômico, social e cultural de cada época, fundamentado por uma razão específica de uma determinada ordem social.
Algumas reportagens do Jornal das Moças exaltavam a importância da ginástica para o corpo da mulher, a fim de que ela o tornasse mais elegante, gracioso e belo, “como deve ser o corpo da mulher” (“A beleza é obrigação”, 1943, p. 52). Deveria haver o cuidado de partes específicas relacionadas à maternidade, como seu abdômen e cintura pélvica. Para a revista era uma questão de escolha a mulher manter sua juventude, não podendo usar a falta de tempo como desculpa, pois as dicas passadas não demandavam muito tempo, nem alto custo e “somente não seguirá nossos conselhos se não o quiser” (“Para os que trabalham uma disciplina da beleza”, 1947, p. 7). Havia dicas sobre como manter a juventude, associando jovialidade não apenas à saúde, mas também a uma obrigação que as mulheres deveriam perseguir; elas eram aconselhadas a seguir o exemplo precioso das “mulheres afortunadas” e a não se parecerem com as “mulheres dos campos”, as quais após os trinta anos aceitavam naturalmente a queda dos dentes, a “cútis” seca e “engelhada” pelo sol e frio, o ventre relaxado, os cabelos secos e ralos (“Para os que trabalham uma disciplina da beleza”, 1947, p. 7).
Analisando imagens e conteúdo da revista, percebemos que ela estava direcionada às mulheres brancas e de classe média. Para Gonzalez (1982), a população negra passou a se integrar na sociedade capitalista brasileira a partir dos anos 1930 com a interrupção da imigração europeia, bem como com a criação de latifúndios nos campos, a industrialização e a modernização das cidades. No entanto, os postos de trabalho destinados a essa população foram os menos qualificados, criando uma mão-de-obra barata majoritariamente negra. Além disso, essas questões históricas e econômicas fizeram com que a mulher negra fosse educada para o trabalho, e não para se casar (Gonzalez, 1982). Desta forma, podemos entender o contexto que estava por trás da reportagem citada acima, que rejeitava as mulheres do campo e reforçava que as mulheres afortunadas eram a representação de beleza que deveria ser seguida por todas.
Quase não havia imagens e espaço para mulheres negras, no entanto foram encontradas referências a artistas, principalmente cantoras, descritas como colored2 - de cor. Nas primeiras edições encontramos referências a ‘pessôa ou pessôas de côr’, associadas a produtos que prometiam clarear a pele (“Uma historia que até parece romance de cinema”, 1925); mas a maior parte das ocorrências se referia a assuntos relacionados aos cabelos, como nas propagandas do produto Alisante: “Por mais crespos ou ondulados, que sejam os cabellos até mesmo nas pessoas de côr ficam lisos” (“Cabello corrido”, 1941).
Essas formas de referir as pessoas negras carregavam o preconceito da época, pois naturalizavam o branco como normal e padrão, não sendo necessário especificar a sua cor. Essa “norma” se constituiu historicamente e se refere a pessoas brancas, heterossexuais, de classe média das cidades e cristãs; essa passa a ser a referência que não precisa mais ser nomeada. Serão os ‘outros’ sujeitos sociais que se tornarão ‘marcados’, que se definirão e serão denominados a partir dessa referência (Louro, 2000). As mulheres negras, além de não aparecerem na revista, quando mencionadas, precisavam ter a cor de sua pele em destaque.
Também foi possível perceber nas reportagens representações do homem e da mulher permeadas pelo padrão heteronormativo: “Assim como a força caracteriza a atividade do homem, a da mulher deve caracterizar-se pela elegância, a suavidade e a harmonia das formas” (“A educação física da mulher”, 1939).
Para Butler (2000), o sexo é uma norma cultural que governa a materialização dos corpos durante o processo de assumir determinado sexo, possibilitando certas identificações e impedindo ou negando outras. Assim se constroem as oposições binárias, as características daquilo que é adequado às mulheres, em oposição ao que é destinado aos homens. Esse binarismo é permeado pela “obrigação” de homens apenas desejarem mulheres e vice-versa, o que caracteriza a heterossexualidade compulsória (Cascais, 2019).
Na revista era constante a dicotomia entre ser homem e mulher, com papéis sociais opostos, como força masculina e fragilidade feminina (Freitas, Borba, Ribeiro & Silva, 2019). Esse discurso pautado no “biológico” naturalizava a heteronormatividade, uma forma de produzir e reiterar compulsoriamente a norma heterossexual (Louro, 2009). Para Louro (2000), não há nada de “natural” nessas concepções, pois é a cultura que define o que é ou não é natural. O que é entendido como masculino ou feminino depende do contexto histórico, é construído social e historicamente.
As representações não são únicas e imóveis, e nos diferentes períodos históricos são encontrados referenciais variados de beleza. Desta forma, as relações de poder e as representações vigentes de cada época fazem com que os indivíduos se regulem. Assim, percebemos que a beleza não provoca simplesmente o tipo de aparência de uma sociedade, mas determina o comportamento que esta deve ter. As reportagens e propagandas da revista, além de representarem o padrão de beleza da época, através do protótipo de feminilidade, ditavam o modo como as mulheres deveriam se comportar, agir e pensar. As imagens ilustravam uma mulher branca, sorridente, feliz e satisfeita cuidando de si, dos filhos, do marido e do lar.
Beleza e casamento: Representações de corpo belo para a sedução
As edições da revista Jornal das Moças traziam seções que evidenciavam os papéis que as mulheres deveriam representar na sociedade. Dentre essas, Almeida (2007) destaca o “Evangelho das Mães”, que continha conselhos sobre como a mulher deveria cuidar do marido, da relação, da casa e dos filhos, e a seção “Conselhos de Beleza”, onde havia dicas sobre exercícios para cuidar do corpo e da beleza.
Visto que as representações femininas estavam associadas às tarefas de ser mãe e esposa, a mulher era responsável por cuidar da casa, do marido, da educação dos filhos, e deveria também cuidar de si mesma, para agradar seu esposo, ou, quando solteira, para arranjar um pretendente. Através de produtos de beleza e exercícios de ginástica, a revista fornecia dicas e roteiros do que a mulher deveria fazer para se manter bela.
Segundo a revista, a ginástica deveria ser praticada pelas mulheres desde crianças, mas em cada fase da vida a prática teria um objetivo diferente. Na infância buscava-se maior energia vital e funcional, resultado que poderia ser adquirido com uma ginástica respiratória. Na fase da adolescência, a ginástica deveria preparar o corpo da mulher para as “suas mais nobres funções”, as de ser mãe e esposa (A educação física da mulher, 1939).
A forma de organização dos anúncios e propagandas da revista chama a atenção, sendo o principal enfoque os cuidados que a mulher deveria ter consigo para manter-se jovem, perfumada e sedutora. Por exemplo, ao lado de um texto cujo título é “A educação física da mulher”, está anunciado em destaque o Baton Colgate, “Labios feitos de seducção!”. Mostrando que o intuito dos anúncios dos produtos de beleza destinava-se às leitoras que cuidavam de sua beleza e de seu corpo, afirmamos que a relação entre a ginástica e a sedução dos homens era velada na revista através dos produtos de beleza e higiene.
As mulheres deveriam se preocupar com a beleza não apenas do rosto, mas do corpo todo. Em uma reportagem, há a descrição do curso de uma escola de harmonia de Hollywood, que prometia tornar as mulheres cheias de graça, encantos; e, mesmo se não fossem bonitas, se tornariam atraentes devido à harmonia de seus corpos: “não somente a beleza, mas também a harmonia conquistam corações”. A execução da ginástica, com movimentos leves e graciosos, fazia com que se tornassem mais elegantes, atraentes e femininas, para assim conquistar os homens (Jani, 1954, p. 101).
A revista frequentemente publicava contos. Um deles, intitulado “O eterno feminino” (Russel, 1951, p. 60), apresentou um caso surpreendente de um detetive particular. Neste caso, o detetive foi procurado por um italiano chamado Giuseppe, pois o noivo de sua filha, Rosa, havia ido embora mais uma vez. Manoel costumava sair de casa cada vez que recebia seu salário e só voltava quando o detetive ia buscá-lo. Desta vez, Giuseppe, preocupado com a tristeza de sua filha, solicita ao detetive que convença Manuel a nunca mais sair de casa. O detetive conta esta história a sua noiva, Linda, que o questiona sobre a aparência de Rosa.
Linda era “uma dessas moças bonitas, seguras de si mesmas, que jamais exigem atenção do sexo forte” (Russel, 1951, p. 60). Ela se interessou pela história e decidiu ajudar a resolver o caso: “creio que a melhor maneira de arranjarmos a coisa é darmos a Rosa umas aulas sobre o encanto feminino e como agarrar o seu homem” (Russel, 1951, p. 60). Rosa era considerada uma moça completamente sem atrativos e por isso foi convidada por Linda a passar por uma transformação “por meio de ginástica, regime alimentício, cremes e maquilagem” (Russel, 1951, p. 61). Duas semanas depois o detetive foi à casa de Linda para levar Rosa de volta e ao chegar se surpreendeu: “Eu via apenas uma moça de estonteante beleza, de corpo esbelto e bem vestida, de cabelos negros e ondeados” (Russel, 1951, p. 61). Dias depois, Giuseppe voltou a procurar pelo detetive, que não acreditou que Manuel tivesse voltado a sair de casa após a transformação de Rosa: “desta vez não se trata de Manuel (...). Desta vez, é Rosa que se foi! O pobre Manuel está a ponto de morrer!” (Russel, 1951, p. 61).
Neste conto, escrito por um homem, Lee Russel, e traduzido por uma mulher para a revista, Glycia A. Galvão, podemos identificar continuidades e rupturas nas representações do ser mulher, que surgiram em meados do século XX. Possivelmente, a tradutora encontrou no conto, de forma sutil, uma reação às concepções que normalmente eram desenvolvidas pela revista. Note-se que, embora houvesse algumas mulheres, a revista era dirigida por homens que acreditavam que os assuntos da revista valorizavam as mulheres ao tratar de suas “atividades cotidianas” (Pinky, 2014).
A narrativa do conto constrói representações opostas para duas mulheres, uma independente e confiante, outra, resignada e sem atrativos, apontando a beleza como algo físico e comportamental, podendo ambos os atributos ser conquistados. A beleza física seria conquistada através de instrumentos como ginástica, dieta, cremes e maquiagem; e a comportamental, refletiria segurança de si e independência da atenção dos homens, como consequência da transformação do corpo. Entretanto, o conto leva a crer que as mulheres eram responsáveis pelo interesse dos homens e que a beleza era sua obrigação, como está impresso na publicidade localizada na página seguinte, “A mulher tem a obrigação de ser bonita. Hoje em dia só é feio quem quer” (“A beleza é obrigação”, 1943). Para Pinsky (2014), a revista reforçava esta afirmação e atribuía o fracasso do casamento ao descuido das mulheres com a aparência. Desta forma, a razão para Manoel fugir e não querer se casar com Rosa seria a falta de “atrativos” da moça, sendo necessário que ela aprendesse como usar seu “encanto feminino” para “agarrar seu homem”. No final do conto, quando Rosa se empodera de sua beleza, passa a se sentir segura para sair de casa e abandonar seu noivo; percebemos assim uma ruptura, pois Rosa, agora bela e segura de si, desiste do casamento.
Em uma reportagem chamada “Coisas do Rio”, escrita por Rozalinda Vicenzi (1959), podemos perceber diferentes representações do ser mulher. A autora escreve sobre uma reclamação das mulheres da época, a falta de cavalheirismo dos homens, que poderia ser percebida pelo fato de eles não cederem mais seu lugar no ônibus. Esta atitude poderia ser atribuída a algumas mudanças no comportamento das mulheres, “que fumam, bebem, esgrimam, fazem arte dramática sem mais nem menos e até jogam basquete” (Vicenzi, 1959), passando a ocupar lugares que somente os homens deveriam ocupar. Para a autora, que via a ginástica rítmica como uma forma de requintar a feminilidade, talvez existisse certo incômodo com a mudança de atitudes de determinadas mulheres, que ampliaram seus encargos, passaram a usar calças compridas e bebericar em boates e reuniões íntimas. Essas atitudes rompiam com a representação ideal de feminilidade da época e, portanto, justificariam a falta de cavalheirismo dos homens (Vicenzi, 1959).
Para Bassanezi (2005), a revista trazia em suas páginas discursos e ideias da dominação masculina, pois não havia incentivos a enfrentamentos ou questionamentos, colocando a mulher em papel de submissão nas relações homem-mulher.
No entanto, ainda que a dominação masculina e a oposição de forma binária das representações de homem e mulher fossem constantes na revista, para Meyer (2004), é preciso desconstruir essa visão linear de homem dominador e mulher dominada. A diferenciação e hierarquização de gênero não ocorre da mesma forma em todas as mulheres e em todos os homens, pois é possível que existam relações de violência também entre as mulheres e entre os homens, como resultado “da incorporação e da (re)produção de representações naturalizadas de gênero” em diversos aspectos da sociedade (Meyer, 2004, p. 229).
O fato de a revista ser dirigida por homens, mas existirem reportagens escritas por mulheres, pode demonstrar a incorporação e a reprodução dessas representações naturalizadas. Algumas dessas reportagens pareciam demonstrar que elas estavam de acordo com determinadas formas de dominação, por exemplo, a afirmação de Maria Jani de que movimentos bruscos eram antifemininos ou a de Rozalinda Vicenzi, para quem as mulheres não deveriam ocupar lugares destinados aos homens. Ao mesmo tempo, porém, encontramos indícios de que rupturas estavam surgindo, pois diferentes representações de ser homem e mulher também foram apresentadas por Lee Russel e Rozalinda Vicenzi.
Conclusões
Diante do problema de pesquisa: como a revista brasileira Jornal das Moças construiu representações de corpo belo e sedutor relacionado à prática da ginástica (décadas de 1930 a 1950), selecionamos reportagens que continham textos onde a ginástica, a beleza e o modelamento do corpo da mulher eram de sua responsabilidade, bem como as que instruíam e salientavam a importância de exercícios para sua jovialidade e graciosidade.Nestas estavam presentes os padrões de feminilidade e estético que representavam o ideal de beleza expresso na revista, que decalcava os preceitos da época em que estava inserida. As reportagens também orientavam a prática de ginástica para atingir tais padrões, além de prepararem as mulheres para suas mais “nobres” funções sociais, tornando-as, além de belas, aptas para seduzir os homens e conseguir “bons maridos”.
Destinada ao público feminino, a revista constituía um veículo de comunicação que produzia e reproduzia cultura; a análise das fontes nos permitiu compreender que os corpos e as práticas corporais eram permeados pelo padrão heteronormativo e por representações de dominação masculina, que colocavam homens e mulheres em lugares sociais opostos. Vale ressaltar que estas são construções históricas, sociais e culturais, que foram arquitetadas de acordo com as representações da época em que estavam inseridas e que não ocorriam de forma universal e linear, pois também percebemos sutis rupturas nas formas de ser homem e mulher. Além disso, não estão estagnadas no período analisado, pois também afetam as representações atuais sobre o padrão de beleza (pessoas brancas e magras), sobre a a prática de atividade física, sobre o que é ser homem, mulher, bem como sobre as formas como as pessoas se relacionam, visto que permanecemos orientados pela heteronormatividade.
Este trabalho apresentou uma abordagem abrangente das reportagens sobre ginástica da revista Jornal das Moças disponível no site da Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional Brasileira, e mesmo que a revista tenha sido editada até o ano de 1965, nossa pesquisa foi limitada pelos exemplares disponíveis nesta plataforma de pesquisa. Desta maneira, sugere-se que novas pesquisas busquem identificar outras fontes publicadas no período, visando comparar as representações construídas pela revista Jornal das Moças com as de outros jornais e revistas.