Este belíssimo volume dedicado às mulheres artistas em Portugal é o resultado de uma investigação coordenada por Sandra Leandro, historiadora de arte, professora na Universidade de Évora e investigadora da equipa Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher, que assina a introdução, o primeiro ensaio e a antologia bibliográfica final. No texto introdutório, que dedica àquelas que considera “audazes”, enuncia a intenção de associar olhares que vejam mais de perto as artistas que dão forma às ideias e de reunir visões transdisciplinares que contemplem as suas obras, já que nestes objetos de irradiação visual e semântica e de realizações ontológicas se refletem conquistas artísticas, culturais, sociais, políticas e económicas, além de novos modos de ver o mundo. Sandra Leandro estabelece como objetivos expandir o conhecimento, estimular a ver e a conceber, alargar os limites da História da Arte e desfazer equívocos no domínio dos estudos sobre as mulheres artistas em Portugal, uma vez que, num tempo marcado pela popularidade e pelo consumo rápido dos meios digitais, um livro, ao invés, “garante inteiramente a permanência do conhecimento útil” (Leandro, 2020, p. 9). Apresentada por doze investigadores/as, a análise incide sobre a atividade de outras tantas artistas: Maria Augusta Bordalo Pinheiro, Ana Hatherly, Lourdes Castro, Helena Almeida, Ana Vieira, Maria Beatriz, Maria José Oliveira, Ana Jotta, Graça Pereira Coutinho, Luísa Cunha, Gabriela Albergaria e Cristina Mateus.
Haverá artistas ou mulheres artistas? Ana Hatherly recusa ser catalogada como mulher artista, porque as mulheres não representam uma cultura separada. É praticamente indiferente que as obras tenham sido criadas por homens ou por mulheres porque a criatividade ultrapassa a dimensão normal do humano e o criador não tem sexo. No entanto, a personalidade feminina tem especificidades, como a força e a audácia, patentes nas criações das mulheres, quer na literatura quer na arte, o que as individualiza e as liberta das limitações impostas pelo seu sexo.
Anne Higonnet (1995) refere que, a partir do século XIX, “as artes forneceram às mulheres um meio relativamente seguro de procurar ou afirmar proeminência social, liderança económica e força política e cívica” (p. 420). Nesta linha de pensamento, na análise às diferentes produções artísticas, aqui mencionadas, encontramos também uma busca permanente de liberdade e de autonomia profissional, conquistadas muitas vezes com “passos miudinhos”. Signo de liberdade é o desejo de experimentação: “o criador tem de ser sempre um experienciador” (Teixeira, 2020, p. 71). A prática de um experimentalismo foi central para o Grupo de Poesia Experimental, um movimento de vanguarda ao qual Hatherly aderiu nos anos 1960, anos identicamente marcados por uma vontade de construir e desconstruir, de questionar e problematizar.
Além dessa vontade ‘experienciadora’, Hatherly defende ainda que “o processo criativo assenta num conjunto de memória e reinvenção” (citada em Teixeira, 2020, p. 71). Nesse processo se espelham as reminiscências da infância, marcada pela preponderância de figuras tutelares femininas. Ademais, as memórias e o desejo de experimentação são associados ao nosso passado cultural, nomeadamente ao maneirismo e ao barroco, movimentos artísticos que tanto cativaram e influenciaram a obra da criadora da primeira experiência de Poesia Concreta.
Num desejo de “voltarmo-nos para dentro, para a memória, para o que sabemos”, recupera-se o uso de artes antes consideradas “domésticas e feminis”. Assim, Maria Augusta Bordalo Pinheiro interessa-se pelas rendas de bilros, desenvolvendo uma “indústria doméstica”, ao mesmo tempo que dirige, em Peniche, a Escola de Desenho Industrial Rainha D. Maria Pia. Por outro lado, na obra de Maria José Oliveira, descobrimos uma articulação entre as artes domésticas ou artesanais e a ciência. Numa “instalação” da sua autoria, coloca um naperon de renda com a seguinte legenda: a organização da sociedade de C. G. Jung.
Em muitas das artistas analisadas, notamos um desencontro com o país, resultante da perceção das suas limitações, sociais, políticas e culturais. A pouca atratividade do ensino académico origina um autodidatismo (exemplos de Cristina Mateus ou Maria José Oliveira). Esse desencontro conduz a uma itinerância na Europa ou na América - casos de Maria Beatriz, Lourdes Castro, Ana Jotta e Graça Pereira Coutinho -, o que lhes permite completar e variar as aprendizagens e os experimentalismos. Estes trajetos revelam ainda uma permanente rebeldia e a busca de modernidade, que se refletem nas novas técnicas (audazes?), vislumbradas, por exemplo, nos trabalhos de Cristina Mateus. O valor do risco, percecionado e assumido por todas, é consentâneo com essa rebeldia, caracterizando as vivências e as produções artísticas, através do uso de novos materiais e pela abordagem de novos temas ou novas disciplinas. Aquele nomadismo permitiu a muitas vivenciar, ter a experiência do lugar, contemplar os elementos da natureza, explorar as perceções e sensações que ela pode traduzir, já que a Terra é o meio onde tudo acontece, é um “campo de acontecimentos”, patente, por exemplo, nas “instalações” de Gabriela Albergaria. Enquanto ressonância das ideias dos filósofos setecentistas, esse retorno à natureza converte a “paisagem natural numa paisagem cultural” e reflete um encontro e confronto com o mundo habitado (Nunes, 2020, pp. 304-305).
A fechar, e com o intuito de ‘desocultar’ a criação feminina, Sandra Leandro apresenta uma antologia bibliográfica onde propõe a leitura de variados estudos, editados desde 2000, sobre mulheres artistas portuguesas do século XXI, prosseguindo o valioso levantamento iniciado em anteriores investigações já publicadas (Leandro et al., 2013; 2016).