No velório de Virgínia Quaresma, a primeira jornalista profissional portuguesa, estiveram presentes a irmã e uma criada.
Estranha-se o seu esquecimento. É que ela foi, sem tirar nem pôr, a primeira jornalista portuguesa, a primeira mulher que exerceu a profissão de repórter nos moldes que hoje conhecemos. Tem o seu nome nas ruas de algumas localidades (em Lisboa, no bairro de Caselas), mas, segundo sei, não é sequer recordada pela toponímia da sua terra natal, Elvas, onde veio ao mundo às cinco da madrugada do dia 28 de Dezembro de 1882. Seu pai era oficial de Cavalaria, sua mãe doméstica (e também natural de Elvas), seus irmãos militares de fortes convicções republicanas; um deles, Carlos Alberto, chegou a estar na Rotunda em Outubro de 1910 e a combater as tropas de Couceiro por bandas de Trás-os-Montes. Virgínia Quaresma, pois é dela que falamos, foi, juntamente com Berta Valente, a primeira mulher portuguesa a licenciar-se - e com brilho - no Curso Superior de Letras. Em Monarquia como em República, candidatou-se a lugares públicos, que lhe foram negados pelo simples facto de ser mulher. Aos 24 anos já dava entrevistas aos jornais em que se proclamava “uma sincera e convicta defensora do Ideal do Feminismo”. Com Ana de Castro Osório, Carolina Beatriz Ângelo ou Adelaide Cabete, foi precursora da defesa dos direitos das mulheres, mas adoptou uma atitude de moderada prudência e avisado gradualismo que a fez entrar em confronto aberto com a corrente feminista radical protagonizada por Maria Veleda. Enquanto jornalista, manteve sempre uma rigorosa independência, em nome da qual recusará inscrever-se na Liga Republicana das Mulheres Portuguesas e entrevistará, inclusive, dirigentes monárquicos, o que lhe trouxe não poucos dissabores nos meios republicanos. Foi também figura cimeira do movimento pacifista nacional e internacional, surgido em estreita ligação com as reivindicações feministas, num caldo de cultura em que se cruzavam também as crenças maçónicas e o espiritismo. Começou a escrever nos jornais ainda antes do 5 de Outubro: no “Jornal da Mulher”, secção feminina de O Mundo, onde desenvolve uma intensa campanha pela educação das mulheres e pelo direito ao divórcio; nas revistas Sociedade Futura e Alma Feminina; nas páginas de O Século, para onde entra em 1908, aí chefiando a rubrica “Informações gerais e reportagens especiais”. Antes dela, algumas mulheres - Maria Amália Vaz de Carvalho, Guiomar Torresão, Alice Pestana - escreveram em jornais, mas nenhuma se profissionalizara nesse ofício. “Virgínia Quaresma foi a primeira senhora que exerceu a profissão de jornalista na acepção que modernamente lhe compete”, disse Rocha Martins, no que foi secundado por Reinaldo Ferreira, o Repórter X, que sobre a sua protectora e amiga afirmou ser “a única senhora verdadeiramente jornalista”. Na redacção de A Capital, periódico fundado em 1910, destacou-se nas reportagens e entrevistas em que, na linha inaugurada em 1864 pelo Diário de Notícias de Eduardo Coelho, rejeitava o estilo opinativo e doutrinário da imprensa francesa a favor de uma abordagem predominantemente noticiosa, factual e objectiva, próxima do modelo anglo-americano. É então que palmilha Lisboa inteira, no encalço de sensações e eventos. A revista ABC chamava-lhe “a repórter das vibrações”, dizendo Virgínia que o seu estilo era o da “reportagem intensa, em que o repórter é obrigado a sentir, a roçar-se pelo facto”. Em 5 de Outubro de 1910 vai a casa de Teixeira de Sousa, último chefe do governo da Monarquia, e consegue recolher-lhe as impressões derradeiras, do mesmo modo que conviverá de perto com os vultos do novo regime: Afonso Costa, Bernardino Machado, António José de Almeida, Norton de Matos. É ela quem, em Março de 1916, consegue saber em primeiríssima mão, junto de Augusto Soares, titular dos Negócios Estrangeiros e seu amigo, da declaração de guerra da Alemanha a Portugal, antes mesmo de serem informados o Presidente Bernardino Machado e o chefe do governo. Em 1912, decide conhecer o Rio de Janeiro. Hospeda-se no melhor hotel da cidade, apaixona-se pelo seu “cenário feérico” e aí permanece alguns anos. “Há, sobretudo, uma coisa no Rio que desorganiza o mais fleumático dos «touristes»: é quando atravessamos «boulevards» ladeados de maravilhas de mármore, coscurantes de luz e cuja beleza não tem rival - e bruscamente nos perdemos em plena floresta, em que as ramarias das árvores se entrelaçam em túneis que dão à paisagem tons duma primitividade que delicia…”, dirá, no regresso a Lisboa. Nos jornais cariocas, como A Época ou a Gazeta de Notícias de João do Rio, faz reportagens sobre casos célebres: o furto colossal, a bordo de um paquete, de 1400 contos destinados à administração de Pernambuco, nebulosa conspirata onde se avolumaram fortes suspeitas de corrupção policial; ou “a tragédia de Niterói”, em que Virgínia teve contributo decisivo para levar a tribunal João Barreto, famoso jornalista e poeta que por ciúmes matara a mulher a tiro. Entrevistou também nomes grandes da política brasileira, como Nilo Peçanha ou Ruy Barbosa, e conseguiu até um depoimento de Pinheiro Machado, presidente do Senado, cuja aversão a jornalistas era lendária. Voluntariou-se para acompanhar como enfermeira o exército francês na Grande Guerra, mas não se sabe se chegou a ir para o front. Sabe-se, isso sim, que acompanhou de perto a participação portuguesa no conflito de 1914-18, o que lhe valeu ser condecorada com o Grande Oficialato da Ordem de Santiago. A carestia de guerra fora implacável para os jornais, que passaram a circular apenas com meia página. É Virgínia quem concebe um engenhoso esquema em que se tornou possível aumentar o número de páginas com publicidade paga (“publicidade redigida”, chamavam-lhe), dissimulada sob a forma de reportagens às grandes indústrias e empresas do país. Uma precursora a vários níveis, como se vê... A par da actividade jornalística, o seu pioneirismo marca também o mundo da publicidade, com a empresa Escritórios de Publicidade Internacional, onde trabalharam, entre outros, Reinaldo Ferreira e Stuart Carvalhais, e a partir de 1919 assume a direcção da sucursal lisboeta da Agência Americana, fundada por Olavo Bilac. Em 1933, viaja de novo para o Rio de Janeiro, e desta feita a estada prolonga-se por vários anos. Virgínia Quaresma deslumbrava-se a todo o instante com a paisagem natural da cidade, com o arrojo modernista da sua arquitectura, com os cálidos entardeceres de Niterói. Foi feliz ali, ou assim o julgamos. O Rio replicou, tornando-a sua cidadã honorária. Todos os anos, pelo Verão, vinha passar um mês a Lisboa, ficando hospedada na Pensão Morais, junto do Parque Mayer, e aí convivia com a irmã e o cunhado, com os amigos dos jornais. Tinha a paixão das grandes viagens de barco, graças às quais visitou Itália, França, Inglaterra, na companhia da viúva de um seu grande amigo, o jornalista boémio Francisco Silva Passos. A morte de Madame Silva Passos, sua governanta e companheira, fá-la entrar em depressão profunda. Virgínia não casou nem teve filhos e as suas inclinações sáficas sempre foram motivo de falatório, a ponto de, por imposição da família, a jovem Maria Lamas ter deixado de trabalhar na Agência Americana. Ao fim de três décadas a viver no Brasil, com mais de 70 anos de idade, vítima de um acidente que lhe imobiliza as duas pernas, regressa a Portugal em 1964. Vem numa cadeira de rodas, trazendo consigo uma mala de mão com algumas roupas, não mais, entre as quais o elegante vestido francês com que será enterrada. A irmã hospeda-a em sua casa, por caridade. Vivendo de uma magra pensão de reforma da Companhia Colonial de Navegação, passa os dias sentada num sofá, a fumar e a ler policiais de Agatha Christie e os jornais lisboetas, com destaque para A Capital. Aos 90 anos, deixa o vício dos cigarros de um dia para o outro, a instâncias de uma criada. No mais, apreciava chá com torradas e goraz assado no forno, detestava a rádio e a televisão. Morreu aos 91 anos de uma trombose cerebral, em 26 de Outubro de 1973. No velório de Virgínia Quaresma, a primeira jornalista profissional portuguesa, estiveram presentes a irmã e uma criada.