Terei de me aproveitar de alguma comparação, embora as quisesse escusar por ser mulher e escrever simplesmente o que me mandam. (Ávila, 2000, As Moradas, p. 1)
Teresa de Ávila foi uma santa do século XVI (1515-1582), uma mística e doutora da Igreja: uma mulher profética num tempo de reformas religiosas e de afirmação da Igreja face às dissidências. Questionou o luxo em que viviam as ordens religiosas do seu tempo e devolveu a ordem carmelita (feminina e, depois, masculina) à sua inspiração original -pobreza, obediência e contemplação.
No presente trabalho procurarei falar na dimensão poética e feminista de Teresa de Ávila à luz de uma teologia da experiência. Ao contemplar o quadro de Juan de la Cruz, pintado ainda em vida, Teresa afirmou, com o seu peculiar sentido de humor: “que me pintaran muy fea y ramelenta...” (Ávila, 2000, Vida, p. 25). Teresa de Ávila é vista por inúmeros autores como uma “teóloga da experiência”. No entanto I. A. Magalhães (2011) afirma que “Teresa de Jesus não se considerava teóloga. A sua reflexão incidia sobre a experiência de abertura a Deus, por um discurso elaborado à luz do Divino, coisas que as teologias deveriam também poder incluir, isto é: a reflexão sobre a experiência” (p. 423).
Santa Teresa foi uma prolixa escritora até à sua morte. Refere na introdução a Caminho de Perfeição: “Não direi coisa de que não tenha experiência por a ter visto em mim ou em outras” (Ávila, 2000, p. 464). A experiência é o fundamento do seu saber e da credibilidade dos seus ensinamentos às irmãs dos conventos por ela fundados: “Sei por experiência que a alma neste caminho de oração mental começa a caminhar com determinação... Quem tem experiência vê-lo com grande clareza... sei por experiência que é verdade isto que digo.”
1. Teologia da experiência: Conceitos e práticas
A experiência, que garante o que é expresso por quem a vive, “é (...) o fundamento da claridade e a coerência das expressões que suscita (...). Algumas vezes consiste na experiência o sabê-lo dizer” (Velasco, 2002, p. 128).
Velasco (2002), referindo-se a Teresa de Ávila, fala “(n)uma teologia experiencial, um conhecimento de Deus conseguido graças à experiência pessoal, e expressa em brilhantes imagens e em relatos simples” (p. 136).
Magalhães (2011), referindo-se também a Teresa, considera “a experiência como fonte de toda a sua vida espiritual” (p. 426).
Na sua aceção direta, experiência indica “ação de pôr à prova, de ensaiar, de verificar a utilidade” (Academia de Ciências de Lisboa & Fundação Gulbenkian, 2001, p. 1645). No entanto, no campo da espiritualidade, será importante que se possa avaliar qual a experiência que vale a pena refletir e “teologizar”.
Em linguagem corrente, experiência designa o conhecimento obtido pelo convívio reiterado com pessoas e coisas, em oposição ao saber adquirido nos livros. Ora, qualquer experiência refletida modifica o sujeito. No clássico ensaio de John Dewey, Experience and Education, é afirmado:
Every experience enacted and undergone modifies the one that acts and undergoes, while this modification affects, whether we wish it or not, the quality of subsequent experiences (…). Every experience is a moving force (...). (1938, pp. 35 e 38)
Numa aceção filosófica mais vasta, a experiência denota geralmente toda a perceção simples produzida por uma impressão externa. Como esta só é naturalmente possível mediante a ação de corpos exteriores sobre os órgãos sensoriais, a experiência, em sentido próprio, é característica da alma unida ao corpo, o que não quer dizer que seja necessariamente algo de pura natureza sensível. Rocha (2010) afirma que a experiência é um elemento da racionalidade na perspetiva filosófica, surgindo enquanto capacidade da experiência de perceber e comunicar as expressões da religião, segundo um ponto de vista fenomenológico. A oposição entre experiência e pensamento é o primeiro falso lugar-comum que convém remover. Uma tradição que corre paralela, seja na inspiração sensista, seja na inspiração intelectualista, costuma estabelecer entre experiência e pensamento ou entre o experimental e o racional, uma oposição fictícia, oposição comummente admitida, mas que é necessário superar. Com efeito, segundo o mesmo autor, a experiência não é senão a face do pensamento que se volta para a presença do objeto.
Na obra Escritos de Filosofia: Problemas de fronteira, Lima Vaz (1986) dedica-se a desdobrar com “suficiente rigor” a noção de experiência e a ambiguidade intrínseca a ela. Propõe a remoção de um equívoco que se tornou lugar-comum ao abordar o tema da experiência e enfrenta a temática da experiência do ponto de vista filosófico, mas como um “problema de fronteira” na relação com a teologia.
Leonardo Boff, na obra Experimentar Deus: A transparência de Todas as Coisas, discute o conceito de experiência e responde à questão “que é ex-peri-encia?”. De forma introdutória ele propõe: “ex-peri-encia é a ciência ou o conhecimento (ciência) que o ser humano adquire quando sai de si mesmo (ex) e procura compreender um objeto por todos os lados (peri)” (2002, p. 25). Sendo, portanto, um conhecimento, é-o na perspetiva distinta dos demais: a experiência não é um conhecimento teórico ou livresco, mas é adquirido em contacto com a realidade, afirma Boff, corroborando John Dewey. Quando Boff secciona ex-peri-encia, fá-lo para reencontrar a profundidade da sua significação. A experiência constitui-se como uma consciência geradora de uma forma de ser-no-mundo, ou seja, um horizonte onde a existência se pode realizar. Poderemos afirmar com base na reflexão de Boff que Teresa, ao sair de si mesma e situando-se na interação com os outros no horizonte de Deus, estaria a realizar uma certa experiência que é do âmbito da teologia. Entendemos então as expressões físicas da sua relação com Deus (arroubamentos, arrebatamentos).
Por outro lado, perante a (uma) epistemologia da subjetividade enquanto teoria da “interioridade da pessoa individual”, Neubern (2001) afirma uma posição privilegiada em que é discutida como momento integrante da construção do saber. Velasco (2002) refere-se a uma componente autobiográfica de toda a produção espiritual de Teresa.
A espiritualidade teresiana vem na linha da reforma das ordens inaciana e franciscana à luz do Concílio de Trento, mas também das suas leituras de livros medievais de cavalaria. Teresa propunha uma ordem religiosa que regressasse à fidelidade das suas origens.
2. O papel da cultura nos mosteiros
Steggink (1974), carmelita e professor na Universidade de Nijmegen, escreveu sobre Teresa, referindo que ela tinha um doutoramento em experiência e sublinhando a cientificidade teológica da obra desta mística.
Kristeva, na sua reconhecida obra Thérese, mon Amour (2008), considera que Teresa trouxe universalidade ao misticismo a partir da narrativa da sua experiência teológica muito peculiar:
A palavra mística espraia-se com força e brilho: não designa já um escondido inacessível, mas convida o escondido a manifestar-se, os tormentos da carne e do espírito a fazerem-se à luz, e a seduzir. O corps verum - a Paixão de Cristo a que me uno - deixa de ser um segredo protegido. Pela graça dos místicos e da Igreja que os consagra, torna-se uma sedução universal. A experiência de Teresa tem lugar neste contexto.1 (p. 62)
Teresa afirmava reiteradamente não ser mulher letrada, o que não correspondia à realidade: desde a sua infância devorava livros de cavalaria e era “mestra” em grande parte dos místicos do seu tempo, que lera atentamente, na busca de uma resposta à sua inquietação religiosa (Francisco de Osuna, Santo Inácio de Loyola, Frei Pedro de Alcântara, etc.). Com eles aprendeu o valor da oração silenciosa em contraponto às orações apenas verbais, comuns às ordens religiosas, em que a espiritualidade se baseava numa recitação sistemática de orações e fórmulas. Teresa esclareceu que outro tipo de “literacia” tinham as mulheres: “porque como nós, as mulheres, não temos letras, tudo isto é preciso (fazer ficção para vos dar a entendê-la) para que entendamos com verdade que dentro de nós há outra coisa mais preciosa, sem comparação alguma, que o que vemos por fora” (Ávila, 2000, Caminho de Perfeição, 28, p. 10).
Dando importância à vida intelectual (as “letras”), a autora questiona-se se esta tem algum significado para uma religiosa carmelita sem uma profundidade de oração. Tal como em outras ordens religiosas, Teresa aceita mulheres iletradas nos seus conventos, garantindo uma posterior alfabetização das mesmas para que possam rezar todas as orações da liturgia da Igreja.
Segundo ela, não vale a pena rezar sem uma busca da verdade e do conhecimento:
Digo que nos princípios, se eles não têm oração, de pouco aproveitam as letras. Não digo que não se trate então com letrados, porque o espírito que não vá fundado na verdade, eu mais o quisera sem oração. Grande coisa é ter letras, porque estas nos ensinam aos que pouco sabemos e nos dão luz e, apoiados nas verdades da Sagrada Escritura, fazemos o que devemos. De devoções tontas, livre-nos Deus! (...) Assim como há muitas moradas no Céu, há muitos caminhos. (Ávila, 2000, Vida, 13, pp. 13-16)
No entanto, falando novamente na possibilidade de “muitas moradas no céu”, a autora alerta para a importância de um diálogo com os teólogos: “(...)letrados, religiosos em especial (...). Que seríamos de nós sem eles entre tão grandes tempestades que agora tem a Igreja? (a Reforma)” (Ávila, 2000, pp. 15-16).
3. Uma teologia da experiência em Teresa de Ávila
Analisando alguns dos escritos retirados de Vida, Caminho de Perfeição e de As Moradas, entre outros, abordaremos de seguida o significado de uma “teologia da experiência” em Teresa de Ávila através de um conjunto de temas que selecionei como relevantes. Kristeva, na sua obra Thérèse, mon Amour (2008), chama-lhe uma “psicologia teológica”. Terá razão: Teresa demonstra, em Caminho de Perfeição, uma inteligente intuição e perceção quanto ao modo de ser e formas de relacionamento com as suas irmãs. A sua subtileza linguística vai a ponto de falar no coletivo e não no singular quando lhes quer fazer alguma repreensão ou admoestação: “Parece coisa imperfeita, minhas irmãs, este queixarmo-nos sempre de males leves; (...) E não se perde o costume de o dizer e de nos queixarmos de tudo (...)” (Ávila, 2000, pp. 1-3).
As mulheres, suas irmãs
Kristeva afirma que “o meu telescópio (visão de longe) que é o meu microscópio (aumento daquilo que é ínfimo) faz de ti uma mulher atormentada mas alegre, uma monja louca mas espantosamente lúcida, que apresentou/impôs ao mundo inteiro as metamorfoses do seu corpo apaixonado” (2008, p. 58).
Nas palavras de hoje, diríamos que Teresa trabalha no empowerment (empoderamento) das suas monjas:
(...) Não nos imaginemos ocas e vazias interiormente. (Ávila, 2000, Caminho de Perfeição, 28, p. 10)
Disse-me que (...) estas freiras destes mosteiros de Nossa Senhora do Carmo têm necessidade de que alguém lhes declare algumas dúvidas de oração, e lhe parecia que melhor entendem a linguagem umas das outras. (Ávila, 2000, As Moradas, p. 529)
(...) é muito de mulheres e eu não quereria, minhas filhas, que o fôsseis em nada, nem o parecêsseis, senão varões fortes; que, se fizerem quanto estiver nas vossas mãos, o Senhor vos fará tão varonis, que espante os mesmos homens. (Ávila, 2000, Caminho de Perfeição, pp. 7, 8)
Admoesta as irmãs a não se refugiarem em comportamentos negativos de modo a dar prioridade à sua vocação contemplativa:
Ó irmãs minhas em Cristo! Ajudai-me a suplicar isto ao Senhor, que para isto vos juntou Ele aqui. Esta é a vossa vocação; estes hão-de ser os vossos negócios; estes hão-de ser os vossos desejos. (Ávila, 2000, Caminho de Perfeição, 1, p. 5)
(...) E creiam, minhas filhas, que, para vosso bem, deu-me o Senhor a entender um poucochinho dos bens que há na santa pobreza e, as que o experimentarem, entendê-lo-ão; talvez não tanto como eu, porque não só eu não tinha sido pobre de espírito, mas sim louca de espírito, porque experimentei o contrário. É este um bem que encerra em si todos os bens do mundo (...) Digo que é um assenhorear-se de novo de todos os bens da terra para quem deles não faz caso. (Ávila, 2000, Caminho de Perfeição, 2, p. 5)
Santa Teresa afirma a possibilidade de serem independentes, fiéis a si próprias, a começar pela prelada (volto a sublinhar o coletivo “nós”), numa autocrítica muito salutar:
Não consintamos, ó irmãs, que a nossa vontade seja escrava de ninguém senão d’Aquele que a comprou com o Seu sangue. (...) Oh, valha-me Deus! As ninharias que daqui vêm não têm conta! E porque são tão miúdas, só quem as vê o entenderá e acreditará, não há para que dizê-las aqui. Somente direi que em qualquer uma será mau e, na prelada, pestilência. (Ávila, 2000, Caminho de Perfeição, 4, pp. 4-8)
Teresa demonstra um profundo conhecimento das necessidades e da psicologia feminina:
(...) Procurai também recrear-vos com as irmãs, quando têm necessidade de recreação e no tempo em que é costume, ainda que não seja de vosso gosto (...). Assim é muito bom que umas se compadeçam das necessidades das outras (...). Atenda muito a prioresa (...) a não dar lugar a isto (...). À que ela entender que é causa do alvoroço (as irmãs apelidadas por Teresa de melancólicas), procure que se vá a outro convento (...). Afastem de si esta peste. Cortem como puderem os ramos; e, se não bastar, arranquem a raiz. (...) Muito mais vale isto do que se pegue a todas tão incurável pestilência. Deus nos livre de mosteiro aonde entra! Mais quisera eu que neste entrasse um fogo que nos abrasasse a todas. (Ávila, 2000, Caminho de Perfeição, 7, pp. 6-8 e 11)
Para os juízes do mundo - todos eles homens - não há virtude nas mulheres de que eles não suspeitem. Digo isto porque há momentos em que é errado desvalorizar almas fortes e virtuosas, ainda que sejam de mulheres. (Ávila, 2000, Caminho de Perfeição, 3, p. 7)
Por experiência própria, Teresa conhecia a desvalorização das mulheres comum às estruturas da Igreja Católica de então (e de ainda hoje). Efetivamente, o Núncio Apostólico Felipe Sega (que não gostava da obra de Teresa na fundação de conventos) considerava-a “uma vagabunda inquieta, rebelde e cabeçuda, que inventava doutrinas retorcidas, lhes chamava devoções e permitia-se ‘ensinar’ quando o apóstolo Paulo de tal proibira as mulheres” (citado em Kristeva, 1995, p. 151).
A mudança de confessores - todos considerados teólogos e “mestres letrados” -, até encontrar os mais adequados às suas religiosas, indica que Teresa punha frequentemente em questão a sua capacidade de orientar almas, não deixando de procurar incessantemente outros mais competentes:
Parecerá que isto qualquer confessor o sabe; mas é engano. A mim aconteceu-me tratar de coisas de consciência com um que tinha ouvido todo o curso de Teologia, e me fez muito dano em coisas que me dizia não serem nada; e sei que não pretendia enganar-me nem havia para quê, senão que não sabia mais. Com outros dois ou três, sem ser este, aconteceu-me na mesma (...). Pois há diferentes caminhos por onde Deus leva as almas e não por força os saberá todos um confessor. (Ávila, 2000, Caminho de Perfeição, 5, pp. 3 e 5)
Não admira, pois, que a hierarquia da igreja não apreciasse os enormes talentos, desassombro, energia vital, compreensão humana e profunda espiritualidade de Teresa.
O quotidiano
Teresa valoriza os elementos do quotidiano como promotores de uma vida espiritual mais intensa. Numa afirmação clara do que pode ser uma teologia da experiência, descreve a riqueza da vida espiritual de uma das Irmãs:
Assim o estava uma pessoa (em muitos negócios e ocupações) com quem falei há poucos dias. Havia quinze anos que a obediência a trazia tão ocupada em ofícios e governos que, em todo este tempo, não se recorda de ter tido um só dia para si, embora procurasse o melhor que podia ter diariamente uns momentos de oração e viver com muita pureza de consciência. (...) Não foi só esta pessoa; mas outras ainda conheci a quem aconteceu da mesma sorte. Não as via há bastante anos; e perguntando-lhes eu em que os haviam passado, me diziam que todos em ocupações de obediência e caridade. Por outro lado, achava-as tão medradas em coisas espirituais, que me espantavam. Eia pois, filhas minhas! Não haja desconsolo quando a obediência vos trouxer empregadas em coisas exteriores, entendi que, até mesmo na cozinha, entre as caçarolas, anda o Senhor a ajudar-vos interior e exteriormente. (Ávila, 2000, Fundações, 5, pp. 7-8)
Igualdade e paridade entre as irmãs
Segundo Teresa, a prioresa deve ser a primeira a esfregar o chão: “a tábua para os varridos deve começar com a madre prioresa para que, em tudo, dê bom exemplo” (Ávila, 2000, Constituições, VII, p. 6).
Acredita que as mulheres - mesmo as pouco letradas - podem ser fiéis e santas na vida monástica e não impõe restrições à sua entrada na Ordem. Magalhães afirma:
Ao constituir diversas comunidades de Carmelitas Descalças, duas de homens e várias de mulheres, ao longo de vinte anos, Teresa de Ávila fê-lo em moldes que eram, para a época, revolucionários. Procurou contrapropor uma atitude em que o “status” socioeconómico deixasse de ter relevo, substituindo a ostentação que a sociedade exibia pela escolha de uma pobreza radical (...). Aceitava nos seus mosteiros (...), não apenas jovens que trouxessem o seu enxoval (...) como as que nada traziam porque nada possuíam. (...) Do mesmo modo, o preceito de que nenhum mosteiro poderia aceitar conversos ou conversas (judeus convertidos) foi rejeitado por Teresa de Ávila que, pelo contrário, aceitava todas as pessoas que demonstrassem ter as condições de uma vocação religiosa, segura de que diante de Deus todos somos iguais. (Citado em I. A. Magalhães, 2011, pp. 416-417)
Leitura
Tal como mencionado anteriormente, Teresa é uma devoradora de livros. Não pretende o saber apenas para si e encoraja as irmãs a fazerem leituras piedosas. Orienta as prioresas das diferentes comunidades no tipo de leituras que devem aconselhar às irmãs, referindo-se ao místico português Frei Pedro de Alcântara: “A prioresa tenha o cuidado de que haja bons livros à disposição das monjas, em especial, (...) os de Frei Luís de Granada e do Padre Frei Pedro de Alcântara; porque, em parte, é tão necessário este alimento para a alma, como a comida para o corpo” (Ávila, 2000, Constituições, II, p. 1040).
Quando a Inquisição limita as leituras que se podem fazer, nomeadamente o acesso aos escritos dos místicos, Teresa escreve: “Nosso Senhor disse-me: não te aflijas, dou-te um livro vivo. (…) Sua Majestade foi para mim o livro verdadeiro (…). E como considerar Nosso Senhor coberto de feridas, perseguido, sem abraçar os seus sofrimentos, amá-los, desejá-los?” (Ávila, 2000, Vida 2000, p. 60).
Séculos mais tarde a grande mística holandesa Etty Hillesum afirmou, à semelhança de Teresa: “Uma pessoa também deve conseguir passar sem livros e sem nada. Há-de haver sempre uma nesga de céu visível em alguma parte e tanto espaço em redor, que as minhas mãos sempre se poderão juntar em oração” (2008, p. 256).
4. Metáforas, comparações, alegorias
Para que entendam as mulheres a linguagem umas das outras (Ávila, 2000, As Moradas, p. 520), Teresa recorre frequentemente a metáforas que descrevem a sua experiência, criando assim uma real teologia da experiência. Vamos descrever, de seguida, um conjunto de metáforas poéticas utilizadas por Santa Teresa: a “água”; o “horto”; o “palmito”; as “sevandijas”; as “pestilências”; o “bicho da seda” e o seu casulo; o “crisol”; as “duas velas”.
Teresa, explicando o uso de metáforas nos seus escritos, afirma:
“Terei de me aproveitar de alguma comparação embora as quisesse escusar por ser mulher e escrever simplesmente o que me mandam; mas esta linguagem do espírito é tão má de declarar aos que não têm letras (...) que terei de buscar algum meio e poderá ser que as mais vezes não acerte com a comparação.” (Ávila, 2000, Vida, 11, pp. 6-8)
Kristeva (2008) insiste no facto de Teresa falar e escrever a partir da vida(...), “do diálogo com o leitor ao diálogo com Deus, (...) numa cascata de metáforas-metamorfoses” (pp. 57-64). Sublinha a importância da palavra para contar as suas próprias experiências psíquicas e espirituais. Na realidade, só recorrendo a metáforas pode Teresa descrever a intensidade espiritual das suas experiências.
A metáfora constitui-se como uma síntese interpretativa. Segundo Lakoff e Johnson (1980), a metáfora, pelo facto de dar uma estrutura coerente a um conjunto de experiências pessoais, “cria uma nova forma de similitude” (p. 151). Citando Lakoff e Johnson, Oldfather e West (1994) consideram que a metáfora não é apenas uma estrutura de linguagem, “é uma estrutura conceptual que leva a novas ‘gestalts’; trata-se de uma racionalidade imaginativa, do cruzamento entre a cognição e o afeto, permitindo-nos entender a experiência com novas e mais profundas dimensões” (p. 23). Tal como nas obras de arte, o uso de metáforas favorece processos metacognitivos que contribuem, no dizer de Lakoff e Johnson (1980), para uma racionalidade imaginativa, a qual possibilita novas coerências.
Oldfather e West (1994) citam Lakoff e Johnson chamando a atenção para o poder iluminante da metáfora:
Há uma similitude induzida pela metáfora que vai para além das meras semelhanças entre os dois níveis de experiência. A semelhança adicional é uma semelhança estrutural. Implica a forma como entendemos como as experiências individuais se harmonizam de uma forma coerente... A metáfora, pelo facto de dar uma estrutura coerente a um conjunto de experiências pessoais, cria uma nova forma de similitude. (pp. 150-151)
Oldfather e West (1994) referem ainda as interações entre intelecto e intuição no processo constitutivo da metáfora, na sua “ressonância estética com a experiência sensorial” (p. 25), no sentido de permitir “novas e mais profundas dimensões” (p. 26) na análise da experiência. Estas considerações permitem-nos concluir sobre o poder constitutivo da metáfora em Teresa de Ávila.
5. O uso de metáforas em Teresa de Ávila
Como atrás foi afirmado, a tentativa de passar a escrito e descrever a intensidade das suas experiências espirituais levou Teresa a fazer uso consistente de metáforas, alegorias, comparações. No entanto, segundo os autores acima referidos, o uso de metáforas não é apenas uma forma poética de dizer, mas representa uma estrutura conceptual mais profunda. Daí que o recurso a metáforas seja uma forma de Teresa fazer teologia e de descrever as suas experiências.
O horto
Para descrever os quatro graus de oração, Teresa apresenta a metáfora de um hortelão que cuida a sua horta:
Com a ajuda de Deus, devemos procurar, como bons hortelãos, que cresçam estas plantas e ter cuidado de as regar para que se não percam, mas que venham a dar flores de grande olor, a fim de recrear este Senhor nosso e Ele venha deleitar-Se muitas vezes a este horto e a gozar entre estas virtudes. (Ávila, 2000, Vida, 1, p. 6)
Expandindo esta metáfora, Teresa descreve as quatro maneiras de regar - tirar a água diretamente do poço; tirar a água usando uma nora e alcatruzes; recorrer a um rio ou riacho; ou apenas esperando pela chuva, a forma mais gratuita de receber o dom de Deus:
Parece-me a mim que se pode regar de quatro maneiras: - ou tirar água dum poço, que é à custa de grande trabalho; - ou com nora e alcatruzes, em que se tira com um torno (tenho-a tirado assim algumas vezes) e é com menos trabalho que estoutro e tira-se mais água; - ou de um rio ou arroio, e com isto se rega muito melhor, pois fica mais farta a terra de água e não é preciso regar tão amiúde, e é com muito menos trabalho do hortelão (...). Pareceu-me assim poder declarar algo de quatro graus de oração em que o Senhor, por sua bondade, tem posto a minha alma. (Ávila, 2000, Vida, 11, pp. 6-8)
O castelo
A poderosa metáfora do “Castelo Interior” que Teresa utiliza para descrever as sucessivas “moradas” do seu/nosso percurso espiritual, desenvolve-se numa rede de outras metáforas que vai usando nas diferentes moradas para melhor descrever este intrincado percurso. Afirma Teresa: “A nossa alma é como um castelo feito de um diamante ou muito claro cristal, no qual há muitos aposentos, assim como no céu há muitas moradas” (Ávila, 2000, As Moradas, 1, p. 31). Descreve então esse castelo:
“Parece-me que vos será de consolação deleitar-vos neste Castelo Interior pois, sem licença dos superiores, podeis entrar e passear nele a qualquer hora (...). Ainda que não se trate senão de sete moradas, em cada uma destas há muitas: por baixo, por cima, dos lados, com lindos jardins e fontes, e coisas tão deleitosas (...).” (Ávila, 2000, As Moradas, 1, p. 1)
Sublinho, entre parêntesis, a típica irreverência de Teresa - “sem licença dos superiores” -, demonstrativa de um profundo sentido de autonomia e liberdade interior.
Kristeva comenta esta descrição do castelo:
O teu caminho, Teresa, a partir das moradas do Castelo Interior não é um impasse à maneira de Kafka (impossibilidade de entrar no castelo): os claustros são permeáveis, nenhuma porta fechada impede o acesso ao Mestre que habita o interior da nossa intimidade. Evoluis num labirinto de travessias, no deslizar entre espaços, de facetas e de questões. O Outro impregna-se no mais opaco do corpo e da alma, gera uma real vaporização da viajante e não menos do seu Amado. (Kristeva 2008, p. 81)
Um palmito
Não deveis imaginar estas moradas como coisa muito alinhada, mas ponde os olhos no centro que é a casa ou palácio onde está o Rei, e considerai-a como um palmito que, para chegar ao que é de comer, tem muitas coberturas que cercam tudo quanto é saboroso. Assim aqui, em redor desta morada, há outras (...). Porque as coisas da alma devem-se considerar com amplidão, largueza e grandeza (...). (Ávila, 2000, As Moradas, I, p. 8)
Usando a metáfora do palmito, Teresa descreve de forma muito contundente o processo, o caminho, a dificuldade de chegar ao “centro” de si que leva à comunhão com Deus.
O bicho da seda
Vejamos, pois, o que sucede a esta lagarta, pois para isto é que (...) sai uma borboleta branca. Oh! grandeza de Deus! E como sai daqui uma alma por haver estado um pouquinho metida na grandeza de Deus e tão junta com ele, que, a meu parecer, nunca chega a meia hora! (Ávila, 2000, As Moradas, V, pp. 2-3)
Já tereis ouvido as maravilhas de Deus no modo como se cria a seda, que só Ele pode fazer semelhante invenção, e como, de uma semente, que é à maneira de pequenos grãos de pimenta (...), com o calor, em começando a haver folhas nas amoreiras, começa esta semente a viver (...) e aí, com umas boquitas, vão por si mesmas fiando a seda, e fazem uns casulos muito apertados onde se encerram e acaba esta larva, que é grande e feia, e sai do mesmo casulo uma borboletazinha branca, muito graciosa (...). (Ávila, 2000, As Moradas, V, p. 2)
Crescida, pois, esta lagarta (...) começa a fabricar a seda e a edificar a casa onde há-de morrer. Esta casa quereria eu dar a entender aqui, que é Cristo. Em qualquer parte me parece ter lido ou ouvido que nossa vida está escondida em Cristo, ou em Deus, que é tudo um (...). (Ávila, 2000, As Moradas, V, p. 4).
O bicho da seda e suas sucessivas metamorfoses constituem uma das maiores maravilhas da natureza. Teresa intuiu o potencial desta metáfora para designar as transformações da alma. O casulo é onde a alma “morre” para se ligar a Cristo e, através dele, “ficar um pouquinho metida na grandeza de Deus”. A grandeza deste mistério de união permite à lagarta transformar-se em borboleta.
A adega do vinho
Não tendes ouvido - pois já o disse aqui de outra vez, embora não a este propósito - da Esposa que “a meteu Deus na adega do vinho, e ordenou nela a caridade”? (Ávila, 2000, As Moradas, p. 12)
Ó irmãs! Como vos poderei eu dizer a riqueza e tesouros e deleites que há nas quintas moradas? (Ávila, 2000, As Moradas, p. 1)
(...) Fixa-se Deus a Si mesmo no interior daquela alma de modo que, quando volta a si, de nenhuma maneira pode duvidar que esteve em Deus e Deus nela. (Ávila, 2000, As Moradas, p. 19)
A adega do vinho é uma metáfora recorrente nos escritos de Teresa. Surge como local resguardado, propício a segredos e a encontros cúmplices que florescem em atos de amor, em celebração e alegria (o vinho!), em plenitude.
Encontramos aqui um conjunto de metáforas indicativas do poder de Deus e da força da alma. Tal força não poderia ser descrita a não ser através de imagens. Teresa fala no despertar e nos deleites da alma, que está em comunhão com Ele na plenitude (um olor tão grande...), na contemplação.
Duas velas para descrever a união com Deus
Digamos que a união é como se duas velas de cera se juntassem em tal extremo, que toda a luz fosse uma, ou que o pavio, a luz e a cera fosse tudo um; mas depois pode-se apartar muito bem uma vela da outra, e ficam duas velas, o pavio e a cera. (Ávila, 2000, As Moradas, VII 2, p. 1)
Esta metáfora aparece na última Morada e tem uma força extraordinária, não só porque demonstra na união da chama de duas velas a união com Deus, mas também porque estas velas têm de se afastar uma da outra na sua respetiva identidade. Só na união final, infinita e eterna em Deus face a face, será possível recuperar de modo permanente as duas chamas fundidas numa só2.
Poesia
A poesia é a metáfora das metáforas. Teresa usa o texto poético para descrever os seus sentimentos mais profundos, a sua sede de Deus. Assim, poemas em jeito de oração fazem também parte do universo metafórico da autora. Um dos seus poemas mais tardios descreve, de forma sintética, o dilema que atravessa toda a sua vida depois de se tornar a “mulher errante” que fundou dezassete conventos (dois de homens) no espaço de vinte anos. Trespassada por uma grande solidão vive o dia a dia numa “saudade” de Deus. Teresa sente-se compelida à ação depois de cada experiência mística - as duas velas que se separam... - mas acusa um cansaço que a faz desejar o tempo de plenitude total:
Oh deleite meu, Senhor do meu coração
Até quando tenho de esperar
Para ver a Vossa presença?
Oh vida larga Vida penosa
Sozinha na solidão
Sem remédio!
Até quando, Senhor, até quando?
Chegais, mas não me dais o remédio
Feris, mas a ferida não se vê
Matais, deixando-me com mais vida
Estou tão cansada, meu Deus! (Ávila, 2011, p. 57)
6. Notas conclusivas
Kristeva (2008) afirma com convicção, usando ela própria a metáfora da água, tão querida a Teresa:
A tua escrita, que transcende o teu tempo histórico e que hoje me seduz, é-nos dada à maneira dessa matéria líquida que tu adoras, que é a água e cujo vocábulo espanhol - agua - brota frequentemente da tua pena: corres de um estado a outro, de uma convulsão a uma jubilação, das tuas sensações à sua compreensão, das narrativas dos personagens evangélicos ao virtuosismo da tua percepção (…), todas as facetas de uma borboleta não parando de se juntar à sua crisálida (…). (p. 87)
A escrita de Teresa entrelaça o “delírio místico” com a dimensão imaginativa: “uma escrita corrida, raramente corrigida, mais preocupada em explorar do que em deixar os seus vestígios” (Kristeva, 2008, p. 92). A sua escrita está fora de qualquer género literário, é muito sua, barroca nas suas hipérboles e exclamações, com interpelações exclamativas a “Sua Majestade” ou ao “Imperador”. Teresa, poeta lírica, é mestre na metáfora, capaz de explicar como ninguém até hoje as suas experiências místicas na relação direta com Deus.
Nas palavras de Kristeva (2008), Teresa é indubitavelmente uma “teóloga da experiência” e a sua ficção revoluciona a teologia porque:
fala e escreve a partir da vida;
fala com uma Pessoa presente;
dá testemunho através do texto escrito;
passa do vivido, ao sofrido, ao gozado;
do diálogo com o leitor… passa ao diálogo com Deus.
“Disse-me o Senhor estas palavras”, afirma Teresa: “Desfaz-se toda, filha, para mais te meteres em Mim; já não é ela que vive, senão Eu”. Belíssima e complexa dialética: “Como não pode compreender o que entende, é um não entender entendendo” (Ávila, 2000, Vida, 18, pp. 10-11, 14).
Fica a alma, desta oração e união, com uma grandíssima ternura, de maneira que se quereria desfazer, não de pena, senão de lágrimas de gozo. (...) Começa a alma (...) a ter desejos de repartir (estes tesouros) com outros e a suplicar a Deus que não seja ela só a ser rica. (Ávila, 2000, Vida, 19, pp. 1 e 3)
Enquanto mulher de ação e de comunidade, Teresa não quer guardar apenas para si a vivência experimentada. A vida e oração contemplativa em comunidade torna-se a essência da vocação carmelita. Se lermos o Caminho de Perfeição, vemos como Teresa é verdadeiramente uma “pedagoga” para as suas irmãs.
A conhecida escultura de Bernini “O Êxtase de Santa Teresa” revela de forma magnífica a visão/metáfora que Teresa usa para descrever um dos seus arroubamentos - o momento em que a alma se deixa invadir por Deus:
Quis o Senhor que viesse então algumas vezes esta visão. Via um anjo ao pé de mim (...). Não era grande mas pequeno, formoso em extremo, o rosto tão incendido, que parecia dos anjos mais sublimes que parecem todos se abrasam. (...) Via-lhe nas mãos um dardo de oiro comprido e, no fim da ponta de ferro, me parecia que tinha uma ponta de fogo. Parecia-me meter-me este pelo coração algumas vezes e que me chegava às entranhas. Ao tirá-lo, dir-se-ia que as levava consigo, e me deixava toda abrasada em grande amor de Deus. Era tão intensa a dor (...), não é dor corporal mas espiritual, embora o corpo não deixe de ter a sua parte, e até muita. É um requebro tão suave que têm entre si a alma e Deus, que suplico à Sua bondade o dê a gostar a quem pensar que minto. (Ávila, 2000, Vida, 29, p. 13-14)
Barroca nas palavras, bem rente ao corpo na descrição, Teresa descreve como ninguém ainda o conseguiu fazer o desejo e a busca de união com Deus. Termino com uma citação de Kristeva em Thérèse, mon Amour que faço minha:
Saúdo-vos, Teresa, mulher sem fronteiras, corpo físico, erótico, histérico, epilético, que se faz verbo, que se faz carne, que se desfaz em si, fora de si, ondas de imagens sem quadros, tumultos de palavras cascatas de obras sem fim, gémeo de Cristo, é Ele no mais íntimo de mim, eu Teresa, mulher de negócios, fundadora, jubilosa, morrer de não morrer é escrever, uma espécie de morada, de jogo, Deus ama-nos jogadoras, minhas filhas, creiam-me, mas sim, xeque-mate a Deus também, com certeza, isso liberta, faz correr, as almas que amam escutam veem até aos átomos, isso fá-las desfrutar átomos infinitamente amorosos, mas sim, Teresa, sim, minha irmã extática chamada, tocada, imaginada, pensada, repensada, gasta, fora de vós em vós, fora de mim em mim, sim, Teresa meu amor. (2008, p. 40)