No dia 8 de junho de 2022 fomos surpreendidas pela notícia do falecimento de Paula Rego. Reunida a equipa de edição da revista Faces de Eva, não houve hesitação de que a próxima capa lhe faria homenagem. A partir daí, sucederam-se os contactos habituais, conversámos com amigos e familiares, convidámos especialistas na sua obra, e eis chegado o momento de partilharmos o resultado desse movimento em torno da vida e da obra de uma das nossas mais singulares artistas.
O que desde sempre me espantou em Paula Rego foi a sua imensa liberdade criativa e lembro-me de a ter ouvido dizer um dia que a saída de Portugal a tinha libertado de uma inevitável autocensura que a distância seguramente atenuava. Que dizer das imagens perturbadoras com que representava fantasias, medos e anseios? A originalidade da sua obra, de uma beleza crua e despojada de artifícios de cosmética moralista, sempre me induziu emoções extremas, mas nunca lhe fiquei indiferente. Entre o desassombro e a ironia das imagens, a minha perplexidade...
Se a obra já me desassossegava, o documentário que o seu filho Nick produziu em 2017 e no qual ela se apresentava com o sorriso enigmático, “perverso e conspiratório” (Warner, 2022, p. 22, tradução minha) e as palavras pueris, de tão livres que lhe saíam, produziu em mim uma espécie de encontro com a personificação da liberdade, cujo sentimento ainda está presente, mesmo que as palavras não consigam transmiti-lo na sua dimensão absoluta. É um indizível que toca, que remete para camadas profundas que a consciência controla e que os quadros de Paula Rego escancaram, sem dó nem piedade.
As imagens e os bonecos e os recortes e todos os outros artefactos de que se compõe a sua obra podem esconder a profundidade da mensagem, contando simplesmente uma história; e ouvir Paula Rego falar sobre elas é deixarmo-nos transportar para um mundo de fantasia, quase de ingenuidade e sabermos que o que se apresenta visível esconde um penoso trabalho de autoanálise, mas também um elevado nível de consciência social e política. E revela o prazer físico do traço, da mistura das cores, da composição, da criação lúdica e da explícita sensualidade da artista. Histórias e Segredos é o título do documentário que ajuda a elucidar a obra e nos revela aquela mulher de corpo inteiro, tão igual a muitas outras e tão diferente pelo modo como genuinamente inscreve a vida na arte.
Mais do que a minha subjetividade de leigo deslumbramento perante o trabalho e a pessoa, esta edição da revista Faces de Eva acolhe dois preciosos estudos sobre a obra de Paula Rego e duas homenagens, igualmente marcantes, de amigas que, com os seus textos, pretendem fixar a sua memória e perpetuar o valor da amizade. Ao mesmo tempo, evocam a obra e nela acentuam, para além de outros elementos, a sua enorme sensibilidade às questões das mulheres, revelando as suas redes conspiradoras e assinalando as suas existências por vezes oprimidas, mas também potencialmente opressoras. O universo transgressor do seu trabalho provocou estragos na ordem instituída e as mulheres desafiam-na mostrando que é possível renascer a seu modo e nas suas condições. Paula Rego denuncia a submissão das mulheres, mas também reclama o seu direito ao corpo, à autonomia, à vida e à sexualidade, e, por isso, tantas mulheres lhe estão reconhecidas. A revista Faces de Eva associa-se a esse sentimento de gratidão e deseja perpetuar a sua memória através deste singelo contributo.
Em torno de Paula Rego e pensando a arte como transfiguração da realidade (título do dossiê desta edição), publicamos dois artigos. Um estabelece um diálogo entre a peça The Pillowman, de Martin McDonagh, e o tríptico com o mesmo nome de Paula Rego. Coloca a questão da relação entre arte e realidade e da (i)legitimidade de lhes atribuir uma relação de causa e efeito, em que a arte, ou o artista, seria responsável moral pelos efeitos da sua criação. O outro, escrito com humor, abre caminhos de intertextualidade e refere recentes factos sociais, para mostrar como Paula Rego representa a figura da mãe na sua obra, subvertendo dogmas e preconceitos sociais.
Lamentamos que as imagens de quadros de Paula Rego inseridas nesses dois textos não possam, por questões editoriais, ser publicadas nas cores originais, mas as mesmas estão disponíveis na versão online da revista Faces de Eva, na página do SciELO1.
Com esta publicação inauguramos uma outra etapa no percurso da revista. Não querendo abdicar da estrutura que desde sempre a organizou e lhe conferiu identidade, através de uma dupla dimensão científica e social, a necessidade de adaptação às crescentes exigências da produção científica obriga a alguns ajustes na edição. Aumentamos, sempre que possível, o número de “estudos” e organizamo-los em temáticas que podem cobrir dois ou mais dos estudos publicados. Por outro lado, reduzimos as páginas disponíveis para as outras rubricas, sendo que publicamos apenas uma entrevista, em vez das duas habituais, e retiramos a rubrica “diálogos” que, concebida para ser uma conversa entre duas ou mais pessoas, se afigurou de difícil concretização, embora alguns dos diálogos já publicados cumpram inteiramente os requisitos com que foram pensados.
Para além dos dois textos atrás mencionados e centrados na figura de capa, nesta edição contamos com quatro outros “estudos”. Em “Práticas de si feministas na poética de Panmela Castro” discute-se a representação artística de mulheres no trabalho da artista, tendo presente a dimensão do comprometimento ético com as mulheres que lhe dão corpo. Em Cais-do-Sodré Té Salamansa: Existências à margem nos contos de Orlanda Amarilis, exploram-se as narrativas da autora, denotando seres fragmentados por existências múltiplas e desencantadas, quer porque saíram do espaço insular de pertença, quer porque ansiavam por esse afastamento. “Porque precisamos de continuar a ler Novas Cartas Portuguesas 50 anos depois” recorda a atualidade da obra e evidencia a mensagem política e feminista do seu conteúdo, ressaltando o amor que se quer liberto de formas de opressão. “A composição da ‘mulher-paisagem’ em Les Fleurs du Mal de Charles Baudelaire” completa a secção “estudos” e nele se explora a conceção de feminilidade em Charles Baudelaire, associada a determinadas imagens ligadas à paisagem.
Em “Estado da Questão” apresenta-se a história e as condições que permitiram a consolidação do Centro de Informação e Documentação (CID) da Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género (CIG), mas também aí podemos encontrar as preocupações face ao futuro. Numa edição dedicada a uma mulher artista fez sentido entrevistar uma artista plástica, cuja vida foi dedicada ao ensino da arte e à produção artística. Como “pioneira” foi escolhida a primeira mulher presidenta (assim sempre quis ser tratada) do Brasil. A figura de Christine de Pizan é-nos apresentada através da sua obra A Cidade das Mulheres. Como habitualmente, a revista encerra com recensões de obras recentes.
“Dar-nos desejos”, assim se referia Proust (2020, p. 49) ao que os autores podem dar aos seus leitores. E sublinha, mais adiante: “o esforço supremo do escritor como o do artista não alcança mais do que levantar parcialmente o véu de fealdade e de insignificância que nos deixa incuriosos perante o universo” (p. 51). Levantar parcialmente esse véu e penetrar no universo de Paula Rego e de todos os outros autores/as que nos acompanham nesta edição de Faces de Eva é o que podemos desejar a quem nos ler.