Pensar a literatura como um poderoso meio de encontrar sentido para a existência é algo reconfortante e simultaneamente sugestivo de como a nossa vivência empírica é reduzida face às múltiplas possibilidades que se lhe oferecem. A literatura permite, não só ampliar o fluxo experiencial, como questionar, imaginar e seleccionar itinerários. E, no entanto, um dos seus mais interessantes atributos é a permanência - quando toma a forma de livro - e, simultaneamente, a temporalidade. Muitas pessoas sábias - que já leram muito e fixaram alguns autores/livros como indispensáveis - afirmam a preferência pela releitura das obras que as marcaram em momentos específicos da vida e a que retornam, vezes sem conta, em busca de novas descobertas, ou interrogando-se como Eduardo Prado Coelho sobre: “a frase decisiva e essencial da nossa existência?” (1993, p. 12).
Talvez Flaubert, em carta dirigida a M.lle Leroyer de Chantepie, em 4 de Setembro de 1858, tivesse razão quando afirmou: “le seul moyen de supporter l’existence, c’est de s’étourdir dans la littérature comme dans une orgie perpétuelle” (1854-1861, p. 277), e esse é um atributo da magia que a literatura provoca nas nossas vidas; permite-nos lidar com o terrível e potenciar o agradável; por vezes apazigua e, outras, dessossega. Espelha as nossas acções e ajuda a transcender a nossa finitude.
Mais do que qualquer teoria do comportamento humano, por definição contida num sistema de pressupostos controláveis e verificáveis, a liberdade subjacente ao processo criativo ajuda a compreender e possibilita todas as formas de evasão, mas também as dúvidas inexauríveis e profundas, que aniquilam, assim como libertam. Ouvi, algures, a escritora Isabela Figueiredo associar liberdade a solidão; disse algo como “quem é muito livre corre o risco de ser muito solitário”. Essa frase ecoou-me a leitura de Escrever, de Marguerite Duras, onde o processo de escrita é associado a uma profunda solidão: “a solidão da escrita é uma solidão sem a qual o escrito não se produz, ou se esfarela, exangue de procurar o que escrever. Perde o seu sangue, já não é reconhecido pelo autor. (...) É sempre necessária uma separação das pessoas que rodeiam aquele que escreve livros. É uma solidão. É a solidão do autor, a da escrita” (1994, pp. 14-15). Este interessante documento teve na sua génese uma conversa filmada com o seu assistente e amigo Benoît Jacquot, que adaptou para o cinema uma das peças de Duras, Suzanna Andler (2021). A conversa foi posteriormente editada e, segundo alguns, o texto foi revisto pela própria Duras. A edição, em francês, data de 1993, cerca de três anos antes da morte da autora. A relação de Duras com a escrita apresenta-se como inseparável da vida, como algo primordial, anterior à própria existência. “A escrita torna-nos selvagens. Regressamos a uma selvajaria de antes da vida. E reconhecêmo-la sempre, é a das florestas, tão velha como o tempo. A do medo de tudo, distinta e inseparável da própria vida. Ficamos obstinados. Não podemos escrever sem a força do corpo” (Duras, 1994, p. 24). Para Duras, a vida era indissociável da escrita, ou, talvez melhor, da criação que, como sabemos, assumiu diversas vertentes. Escreveu muito, publicou muito; a casa era o seu lugar de solidão e de escrita, sempre inseparáveis.
Um escritor é uma coisa curiosa. É uma contradição e, também, um contra-senso. Escrever também é não falar. É calar. É gritar sem ruído. Um escritor é, muitas vezes, repousante: ouve muito. Não fala muito porque é impossível falar a alguém de um livro que se escreveu e, sobretudo, de um livro que se está a escrever. É impossível. (...) Porque um livro é o desconhecido, é a noite, é fechado, é assim. É o livro que avança, que cresce, que avança em direcções que julgávamos ter explorado, que avança em direcção ao seu próprio destino e ao do seu autor, então aniquilado pela sua publicação. (Duras, 1994, p. 29)
“Escrever não salva nada” é o nome de uma conversa sobre Marguerite Duras (Literatura PUC-SP, 2021). Talvez não salve, porque a salvação é um mito inalcançável, mas talvez salve pela imprescindibilidade da tarefa. Marguerite Duras escreve sempre, mesmo diluindo as fronteiras do género. No teatro, nos filmes, a escrita está sempre lá, ainda que seja uma escrita dos silêncios ou da ausência na fixação de um sentido, como no extraordinário filme Nathalie Granger (1972).
Dedicamos este número 49 da revista Faces de Eva a Marguerite Duras, e com isso celebramos a literatura enquanto modalidade de expressão estética do mundo e da sua interrogação permanente. Depois de um texto de homenagem, “condenado à morte uma homenagem a marguerite duras”, abrimos com um texto “Marguerite Duras ou a escrita da ausência” e caminhamos através da escrita teatral com “Maria Lusitania (1975) de Charlotte Delbo (1913-1985): Voix féminines de la Révolution des œillets sous la plume d’une résistante française”. O dossiê intitulado “Escrever salva?”1 termina com “‘Aquilo não é literatura’: Leituras à margem em À flor do tempo de Ilse Losa”. Outros três textos compõem o separador “Estudos”: “Colonizações afetivas e educação somática: a prática da Biodanza na produção de relações de género”; “Mulheres e espaços religiosos na cidade: um caso de ‘ativismo’ no cemitério de Loures”; “A mulher oitocentista em Cenas de África? Romance Íntimo”.
Como sempre, e mantendo a estrutura da revista, os restantes textos que a integram têm um carácter mais livre dos espartilhos académicos, mas neles colocamos o mesmo rigor e interesse pelos trajectos de quem aqui apresentamos. Nesse sentido, agradecemos vivamente a quem se prontificou a colaborar connosco, ou em termos de autoria ou de personagem. Em “Estado da questão” apresentamos o projecto europeu SPEAR, que promoveu a implementação do plano de igualdade de género na Universidade NOVA de Lisboa; a “Entrevista” a Paulina Chiziane surge num momento oportuno, pouco tempo depois de lhe ter sido entregue, a 5 de Maio, o Prémio Camões 2021. O pioneirismo de Bertha Lutz, grande lutadora pelos direitos das mulheres, é realçado na rubrica “Pioneira”. Em “Retrato”, é-nos apresentada uma personagem fundamental para a divulgação da literatura e da cultura japonesa em Itália, Adriana Boscaro.
Como sempre, a última rubrica da revista contém um conjunto de recensões de livros, e desta vez também de uma série da Netflix.
Ao terminar esta Nota de Abertura, não podemos deixar de, comovidamente, recordar aquele que foi o patrocinador da nossa revista durante o ano de 2001, o comendador Rui Nabeiro. A ele e aos cafés Delta, o nosso profundo agradecimento!