1. INTRODUÇÃO
Como parte integrante da vida nas cidades, os cemitérios são simultaneamente lugares físicos sagrados e arquivos de memórias de uma comunidade. A urbanização e a secularização da sociedade são transformações que se refletem tanto na conceção dos cemitérios e da religiosidade, como no deslocamento de setores da sociedade, na transformação cultural, ou nas representações sociais da morte (Dillmann, 2016). Por isso, são um reflexo e condição da sociedade e, enquanto objeto de pesquisa, constituem inestimáveis fontes de conhecimento sobre a memória da vida e a morte, inscrita em bustos, túmulos, jazigos, capelas e outras materialidades (Pegas, 2013). Enquanto espaços dedicados aos mortos e aos vivos, os cemitérios são sagrados, mas relativamente comuns, pois podemos sempre encontrar um perto de um aglomerado urbano (Wright, 2005). E, por isso, os cemitérios são lugares (materiais) que abrem também possibilidades para interpretar a vida urbana, pois espelham símbolos, construções (imaginários) e práticas em torno da religião, cultura, classe, profissão, educação e género, entre outros marcadores sociais (Corbett, 2018; Wright, 2005).
Na historiografia dos cemitérios, embora sempre presentes, quer no papel que desenvolveram, quer na forma como têm sido retratadas, as mulheres, quando comparadas com os homens, ficaram frequentemente esquecidas. O estudo do ambiente cemiterial permite aprofundar a ordem cultural, as representações sociais no seu aspeto relacional, domínios onde se manifesta a construção histórica e se evidencia o papel da mulher na família e na sociedade. Se bem que as figuras femininas, ligadas a ideais e emoções, surjam bastante simbolizadas diante da morte em espaços cemiteriais, as mulheres reais, no quotidiano da vida pública e o seu papel na memória da vida nas necrópoles, não têm sido suficientemente estudadas. Geralmente, encontramo-las nos cemitérios como mulheres que individualmente “nada alcançaram, salvo terem criado a prole, organizado os seus lares e sido responsáveis pelas tarefas diárias” (Wright, 2005, p. 56).
Esta pesquisa identifica a inércia quanto aos estudos sobre os papéis femininos no que concerne à materialidade dos cemitérios em contexto urbano contemporâneo. O caso de estudo incide sobre o Cemitério Municipal de Loures (inserido na Área Metropolitana de Lisboa), não romântico, fundado em 1890, onde se encontram sepulturas de conhecidas figuras masculinas locais. Teve por base a pesquisa documental efetuada no Arquivo Histórico Municipal de Loures e Livros de Inumação, literatura publicada sobre as formas de assistência na morte e entrevistas a familiares e pessoas da comunidade.
No referido cemitério, situa-se uma capela, e a sua existência resulta de uma iniciativa concertada por doze mulheres. É sobre este processo e a sua materialização, em 1958, que se centra esta pesquisa, procurando compreender o papel na sociedade local de mulheres arrojadas, num período ditatorial, ainda muito controlado pela igreja e valores tradicionais, em que muitas se limitavam a cuidar dos maridos, dos filhos e das lides caseiras. Esta ocorrência constitui um marco importante na história do desenvolvimento do cemitério de Loures, para o qual certas mulheres tiveram um papel relevante no que se refere à alteração das práticas relacionadas com o luto e o velório, e assinala uma transformação sociocultural, constituindo uma fonte valiosa e pouco explorada de interpretação da vida urbana.
O artigo começa por refletir sobre os cemitérios e a sua similitude com a cidade, em termos de reprodução de valores, hierarquias e papéis de género na sociedade ocidental. É dada especial relevância à presença figurativa das mulheres na arte das necrópoles, sobretudo no período romântico, enquanto seres resignados e piedosos. Observa-se ainda a sua posterior “subtração” identitária nos cemitérios não românticos, muito embora a presença material e o seu papel nunca tenham desaparecido. Seguidamente, apresenta-se um episódio que teve origem num coletivo de mulheres e que dá origem à edificação da capela do cemitério de Loures. Esta circunstância parece não ter importância e a história quase a oblitera, mas salienta o papel das mulheres na passagem dos rituais fúnebres do lugar privado da residência para o espaço público do cemitério. Este serviço público e o devido contributo destas mulheres não mereceram (até recentemente) um reconhecimento público; por isso, as secções seguintes tratam de as dar a conhecer e de demonstrar que este episódio revela alterações importantes nos figurinos tradicionais do velório e do luto. As reflexões finais dirigem-se ao contraste entre a obra material, mas invisível de mulheres nos cemitérios e a sua omnipresença nos atributos artísticos e visíveis que as celebram.
2. AS NECRÓPOLES ENQUANTO LUGARES DE IDENTIDADE E ACEITAÇÃO DA ORDEM SOCIAL URBANA
A necrópole em muito se assemelha à cidade, pois é desenhada de acordo com a ideologia dominante e as mesmas orientações urbanísticas. Segundo Sáez (2011), “com a diferença de que os mortos ocupam menos espaço e são muito menos irrequietos” e “dispostos de acordo com o modelo” e ordem social (p. 429). Por detrás dos muros, a cidade dos mortos na sociedade ocidental afirma-se como o decalque tranquilo e seguro da cidade dos vivos. Tem ruas e setores ou “bairros”, sendo a sua separação estruturada através da hierarquia incontestada da concessão perpétua que distingue socialmente os corpos que ali se encontram. Intenção de uma elite, esta hierarquia marca a paisagem com os seus monumentos, estatuária e epitáfios, alargando o direito à ostentação póstuma ao nível da intimidade familiar e do imaginário coletivo (Vovelle, 2000). Com efeito, a cultura material da morte reclama a imaginação organizadora do desaparecimento através de figurações e símbolos, sugerindo uma ordem social, uma estabilidade emulada e seguindo a lógica da diferença, como notou Urbain (1978, 1989). E de acordo com este autor, o cemitério enquanto objeto funerário, diferencia-se pela localização e ocupação espacial, pela riqueza e uso dos materiais, pelo estilo e formas utilizadas e por um discurso de classe (Urbain, 1978), predominantemente masculino (Corbett, 2018), no qual falta considerar a presença da mulher enquanto pessoa histórica (Fernández Valencia, 2011).
Acrescenta Catroga (1999) que, na memória estabelecida nos rituais nos cemitérios, como as visitas regulares, a deposição de flores, a colocação de lápides e jazigos com epitáfios, símbolos vários, envolvendo o monumento/documento construído, as pessoas saem do anonimato para serem parte de um passado registado, que se vai perpetuando, como uma metáfora da vida. E porque o silêncio das ruas e dos túmulos “é apenas aparente”, pois aquelas estruturas “discursam tanto que exprimem o que desejam, mas também o que não querem” (Sáez, 2011, p. 431), vale a pena refletir sobre os espaços da memória e identidade que são os cemitérios contemporâneos na sociedade ocidental.
A partir da segunda metade do século XIX, o cemitério romântico, enquanto espelho de uma burguesia em ascensão, enaltece o luto e a família, sobretudo o lado masculino da sociedade, e traduz a condição feminina da época. Nele espera-se que a mulher seja contida, apenas revelando emoções dissimuladas, votada à religião e à família, determinada a exaltar as conquistas masculinas, dos chefes da família - uma conceção fortemente conservadora dos finais do século XIX e primeiras décadas do século XX. Estas são representações imbuídas de forte significação simbólica, assim como de pressupostos ideológicos, normativos e educativos que figuram nos cemitérios.
Contudo, foi nestes espaços de projeção masculina, “de ligação entre o tempo quotidiano e o tempo histórico” (André, 2006, p. 68), que as mulheres foram, no século XIX, as principais responsáveis pela eleição e encomenda de túmulos-campas, jazigos e capelas. Mas tal procedimento não marcou de forma diferenciada a obra do jazigo enquanto casa simbólica, como concluiu Queiroz (2006-2007), ao afirmar que a influência dos executantes devia ser esmagadora, condicionando a escolha das encomendadoras. De facto, em termos estatísticos, não se encontram diferenças evidentes nos cemitérios entre monumentos fúnebres comprovadamente encomendados por homens e monumentos comprovadamente encomendados por mulheres. As diferenças encontram-se sobretudo nos seus elementos decorativos. A par de estatuárias, brasões, medalhões e cruzes, as rosas, as pombas e as crianças chorando parecem ser mais comuns em monumentos sepulcrais românticos dedicados a mulheres (Queiroz, 2006-2007; Urbain, 1989).
Enquanto símbolo e figuração, a presença da mulher é incontornável na arte dos cemitérios românticos (séc. XIX), ornamentados com obras arquitetónicas e escultóricas notáveis. Como refere Vovelle (1997), “as imagens femininas em esculturas evocam sensualidade e transbordante feminilidade, através do mármore em que são esculpidas” (p. 331). As lápides aparecem frequentemente rodeadas de anjos de aparência feminina, decoradas com detalhes delicados, sensíveis e afetuosos, como o pranto da perda eterna, ou o beijo que não se repetirá, evocando o universo silencioso da morte: a mulher prefigura este sentimento de vazio (Figura 1). Apesar da presença do ícone feminino nas necrópoles da sofredora e piedosa, das personagens tidas como relevantes na vida pública, poucas são mulheres (por exemplo, de trinta e cinco protagonistas em destaque no cemitério monumental de Milão para visita, apenas duas são mulheres).
Nas primeiras décadas do século XX, nos cemitérios não românticos, “gente comum” ganharia relevância. Nestes, menos prestigiosos, a imagem da mulher surge associada à família, onde ganha o estatuto de campa partilhada, ou jazigo e nome. Através da análise sintática de numerosos epitáfios, Urbain (1978) demonstra que, após o Romantismo, o cemitério ocidental apresenta uma similitude estrutural entre a família e a sociedade, tornando-se evidente o fenómeno de renúncia da pessoa à expressão da sua individualidade, em proveito da expressão da homogeneidade do grupo familiar, através do nome de família.
Apesar de menos estudado, o conjunto das imagens existentes no cemitério não romântico é um importante material de reflexão sobre a condição das mulheres na sociedade e, em particular, na perspetiva dos homens. Nele não se encontram com facilidade “mulheres célebres” ou “heroínas”; os epitáfios são antes utilizados no contexto de memórias do coletivo familiar, em que a virtude feminina consiste em ter sido “boa esposa” e “mãe”, pouco mais as distinguindo. As fotografias das mulheres surgem muitas vezes no conjunto familiar com o marido ou os filhos. Nos poucos contextos da vida pública, centram-se nos meios laborais e surgem associadas a apetrechos de trabalho. Assim se conclui que os atributos sociais cultivados em cemitérios (românticos e não românticos), na cultura ocidental e católica, funcionam como mecanismos de regulação das expectativas e desempenho de mulheres e homens em sociedade.
Se a iconografia feminina “naturaliza” a representação da dor da saudade, perda e morte, ela ainda se reforça pela associação a figuras sacrais, de santas e anjos, estes de masculinidade difusa, convertidos em figuras frágeis, com traços finos, imberbes e cabelos longos. O contraste com os santos e profetas, “de olhares austeros e longas barbas” (Melo, 2018, p. 17), revela que os papéis e valores atribuídos à representação iconográfica feminina, associados aos anjos, diferem dos masculinos. Quanto às imagens não religiosas, de bustos e medalhões, elas retratam figuras públicas masculinas, outrora relevantes na sociedade. A cidade dos mortos é então um espelho da cidade dos vivos: o patriarcado evidencia-se pelo destaque e domínio da masculinidade. Ainda a demonstrá-lo, os homens são eternizados através de referenciais sobre as suas obras, os seus grandes feitos e atividades, sobretudo os mais abastados e poderosos, nos mausoléus e nas ruas principais da necrópole, sendo atribuída às mulheres a ideia da passividade e virtuosismo de serem esposas e mães (Melo, 2018). Tal como na vida, na morte, os homens são comparados à força do espírito da razão, do seu poder de decisão e de ação, destinados à realização; as mulheres são vaticinadas com o dom da emoção sentida através do simbolismo dos seus corpos associados à natureza, portanto, à função de suporte (Brazão, 2017). Os muros dos cemitérios não travam a reprodução de valores e papéis da sociedade dos vivos; muito pelo contrário, são a mesma imagem, mas no inverso da vida.
Muito embora a exaltação da memória e identidade de mulheres “notáveis” seja reduzida nas necrópoles românticas, é nelas que o imaginário sobre o feminino surge fortemente materializado em atributos ligados simultaneamente ao eterno, à piedade, resignação, contemplação e dor, mas onde as vidas reais, as lutas e os ideais das figuras femininas que neles jazem pouca relevância têm. Já em cemitérios não românticos, a identidade da mulher simplesmente desaparece no grupo familiar: segue-se a ordem patriarcal ao mencionar apenas o apelido do marido, subtraindo a identidade feminina. Assim, nos cemitérios não românticos esvazia-se a presença da mulher, quer na dimensão “visível”, quer na dimensão “invisível” da sociedade. A Igreja e o Estado, por razões diversas, fizeram uso destas metáforas para regular o lugar social da mulher (Brazão, 2017).
Contudo, as mulheres tiveram papéis marcantes para a riqueza monumental e prática religiosa e higienista nos cemitérios. Um dos exemplos que merece referência associa-se ao episódio que teve lugar no cemitério (não romântico) de Loures. Foi nesta necrópole que se materializou a iniciativa de um grupo organizado de mulheres “comuns”, que, em 1954, redigiram um abaixo-assinado dirigido ao Presidente da Câmara Municipal de Loures, propondo a construção de uma capela no cemitério. O pedido foi atendido e a capela foi construída. Este episódio parece pouco relevante, todavia, três inferências se podem retirar: (i) uma “incursão pelo desvio”, expresso por um coletivo organizado para reivindicação, expressando um comportamento não conformado com os ideais sociais recatados e passivos do “ser feminino”; (ii) o relevante papel das mulheres na passagem do culto privado e íntimo do falecimento para o tributo público; (iii) a laicização do espaço fúnebre, mas nunca afastada da Igreja. Aquelas mulheres permaneceram, até recentemente, ignoradas.
3. ORIGENS, SIGNIFICADO E FUNÇÃO DA CAPELA DO CEMITÉRIO DE LOURES
Em 1893, o Primeiro Regulamento do Cemitério de Loures refere que é necessária “a criação de uma sala que sirva para oratória, mas que se coloquem duas meias portas que, quando fechadas, permitam que se guarde os corpos a inumar no dia seguinte e a realização de autópsias, quando necessário” (“Ata da reunião de Câmara Municipal de Loures”, 1893). A notícia do Diário Ilustrado, de 3 de maio de 1894, permite inferir a existência de uma casa de autópsias que funcionou, teoricamente, com uma oratória como recurso partilhado (Figura 2), no cemitério de Loures. A importância da sala de autópsias e da nomeação de um subdelegado de Saúde contextualiza-se no concreto de epidemias e do medo a elas associadas: as lavadeiras saloias, que traziam a limpeza à cidade de Lisboa, também foram alvo de rigorosa atenção, como refere um ofício do Governo Civil (expedido pela 1.ª repartição, a 7 de dezembro de 1893), recomendando a esta Câmara Municipal que “providenciasse a forma que evitem os abusos praticados pelas lavadeiras de se servirem na lavagem de roupas de matérias corrosivas - Resolveu a Câmara se estude a maneira prática de obstar a esse abuso” (“Ata da Reunião de 7 de dezembro”, Câmara Municipal de Loures).
Não se encontrando documentos posteriores referentes à construção, a data de 1915 abaixo dos degraus da (atual) capela do cemitério municipal de Loures conduz a equacionar se esta data não se refere de facto a uma efetiva sala de autópsias (grande prioridade nos finais do século XIX) e à sala para oratória (Assunção, 2015). Além do mais, um documento assinado por mulheres propõe aquela estrutura como base para uma capela (Figura 3). Com efeito, conforme o dossier do Processo/4.759, Obras, da Câmara Municipal de Loures (1954c), encontra-se arquivado um abaixo-assinado de 1954 sugerindo a construção de uma capela no lugar onde existia a sala de autópsias/oratório. Nele pode ler-se: “Porque no cemitério Municipal de Loures não existe uma capela, vêm as signatárias solicitar, com todo o interesse, e boa vontade de V.Ex.ª no sentido de que seja adaptada a tal fim uma construção que existe no referido cemitério (…)”.
Trata-se de um documento oficial, o típico “papel azul de 25 linhas” obrigatório em situações de requerimento, escrito e assinado, onde se identificam doze nomes de mulheres. Sobre esse documento regista-se a ordem manuscrita do Presidente da Câmara, António de Oliveira Mata, para se averiguar as possibilidades de resposta. Seria o encarregado a indicar a existência de uma casa mortuária com 55,75m2, disponível para essa adaptação na condição de ser edificada uma arrecadação (Figura 4). Existiam ruínas, parte de paredes, telhado, pavimentos e demolições a fazer, argumentos que confirmam a existência de um edifício; desta forma se inicia, naquele local, a construção da capela do cemitério.
O arquiteto Luís Soares Branco (1919-1997) concebe um conjunto harmónico, com uma visão humanizada e funcional do espaço (Figura 5), utilizando materiais tradicionais como o azulejo e o vitral. Dirige, em 1956, um pedido de informação ao chefe dos serviços de Urbanização e Obras, a fim de se definir se a obra será ou não levada a efeito e se a construção avança. As janelas da capela foram decoradas por vitrais encomendados a Ricardo Leone (1891-1971), principal responsável pela revitalização da arte do vitral em Portugal, nas primeiras décadas do século XX, conjugando a luz com a simbólica cristã escolhida para a vocação da capela no cemitério.
O edifício foi concluído em finais de 1958 (Figura 6), sendo acrescentados à capela um escritório e uma morgue. Figura no Relatório de Atividades de 1959 como “uma das grandes obras” da Câmara Municipal de Loures. A função da capela ficou completa e a solicitação do abaixo-assinado foi cumprida. Frisa-se que não existe nenhuma referência ao documento inicial e fundador da capela em todo o processo da obra.
E assim se edificou a capela mortuária, onde se velam os mortos antes do sepultamento, acompanhando uma profunda transformação da realização do luto, que, a partir de final da década de 50 do século XX, já não ocorre em casa e com transporte do caixão em carreta (Assunção, 2015) ou em auto fúnebre para o cemitério1.
A este propósito, importa referir que os rituais funerários (no Ocidente) aconteciam no espaço privado das famílias, procurando cumprir, entre outras, a função de lembrar à sociedade quem fora a pessoa e onde vivera; esse espaço privado tornava-se público no acompanhamento do processo de luto. Franqueira (2019), referindo Ariès (1989), afirma que, desde a Alta Idade Média, o ritual da morte (quando esperada) era explicitamente acompanhado de um cerimonial público centrado no espaço (lar) da família; porém, em meados do século XX, esta forma de ritual tende a desaparecer, assim como a sua carga dramática. A separação entre a vida e a morte era ténue, por aceitação coletiva da ordem natural (Ariès, 1989). Estas mudanças que expressam o entendimento da dor e da perda, do lar para o cemitério material/físico (e atualmente para os espaços virtuais), sinalizam transformações na relação vida-morte (Fuchs, 2019). E se o sepultamento era efetuado nos locais religiosos e nas proximidades (para garantir a salvação e assegurar a segregação social), essa forma foi perdendo expressão, talvez pelas ideias higienistas resultantes de episódios de epidemias e a consequente apropriação da morte pelo campo da medicina (Fuchs, 2019).
A laicização das relações sociais, a negação da morte e o discurso médico sobre os miasmas (através de manifestações de uma nova consciência higienista e urbanística) dão origem a regras baseadas em questões de saúde pública, limitando os rituais fúnebres a cerimónias mais circunscritas à família e, de certa forma, fomentando o distanciamento/ocultação da pessoa falecida (Fuchs, 2019). A transferência do culto e do lugar dos mortos confere importância aos locais exclusivos, de acolhimento e de abrigo no cemitério, lugares de memória, apropriados pela família. Os cemitérios municipais do século XX, cercados por muros e nos arredores da cidade, revelam transformações profundas em relação ao culto da morte; porém, as influências secularizadoras não conseguiram afastar as hierarquias e poderes patriarcais instalados, nem as conceções religiosas do mundo. A capela da necrópole de Loures, solicitada através de um abaixo-assinado e construída pela autarquia, enquanto “local de acolhimento intermédio”, é disso testemunho.
4. DAS MULHERES SUBSCRITORAS DO ABAIXO-ASSINADO
Enquanto “local de acolhimento intermédio”, a capela surge como um desafio para abrigar velhos simbolismos e novas exigências junto à morte. A sua origem deve-se a uma iniciativa coletiva de mulheres - sobre as quais pouco se sabe - conhecida através de um abaixo-assinado encontrado no Arquivo Municipal de Loures. Considerando a importância deste ato, procurou-se pesquisar sobre a sua identidade. Para a identificação das referidas mulheres, foi realizada a leitura dos Livros de Inumação do Cemitério Municipal de Loures e dos processos de óbito da Divisão de Serviços Públicos Ambientais da Câmara Municipal de Loures e consultada documentação no Arquivo Municipal (Câmara Municipal de Loures, s.d.) (Figura 7). Das doze mulheres, apenas uma (7) ainda vive. No caso da primeira assinante (1), com campa levantada, não se possui mais informação para além do registo de óbito; o mesmo relativamente à catequista (9). Amélia Veiga dos Santos (12) mereceu uma fotografia na sua sepultura. As informações sobre as restantes mulheres - funcionárias da Câmara Municipal - foram obtidas no Arquivo Municipal, nos processos individuais e familiares. Quanto às restantes quatro mulheres, sem vínculo municipal, os elementos sobre a sua vida foram obtidos com o apoio de familiares e amigos.
Apresentam-se, no Quadro 1, as narrativas de identidade que se conseguiram obter (através dos Processos individuais de trabalhadores da Câmara Municipal de Loures e de Atas de reuniões de Câmara), não se seguindo propositadamente a ordem das signatárias assinaladas na Figura 7.
A | Residia em Lisboa com a família; tinha uma casa em Loures. Filha de um dos membros da Junta Revolucionária de Loures, de 4 de outubro de 1910. Faleceu em 1987, em Loures. Era amiga de Maria Emília e de Antonieta Simões Fernandes. Tinha cerca de 40 anos em 1954. |
B | Nasceu em Loures, em 1920, e faleceu em 2010; tinha a 4.ª classe. Entrou para a Câmara Municipal de Loures como arrumadora do Arquivo e foi nomeada encarregada do mesmo a partir de 1970. Foi Técnica Auxiliar de Bibliotecas, Arquivos e Documentação, sendo Técnica Auxiliar Principal, em 1988, quando se reformou. Era viúva e tinha 34 anos em 1954. |
C | Nasceu no Alandroal, Redondo, em 1930. Fez o curso geral do 2.º ciclo no Liceu Rainha Santa Isabel, no Porto. Veio para a Câmara Municipal de Loures em 1949 como escriturária de 2.ª classe. Foi para a Câmara de Almeirim, em 1955. Em 1954 tinha 24 anos e era solteira. |
D | Natural de Lisboa, Lumiar, nasceu em 1909 e faleceu em 1997, em Loures. Sabia ler e escrever; trabalhava em costura a fazer vestidos em Lisboa, onde conheceu o futuro marido. Foi morar para Loures, onde era modista de primeira, e ensinou muitas raparigas a costurar. Ficou viúva ainda nova. Em 1954 tinha 45 anos. |
E | De família de Portalegre, nasceu em Soure, em 1923, onde estudou até ao 5.º ano. Era casada com um secretário da Câmara Municipal de Loures, também vindo de Portalegre. Tinha 31 anos em 1954. |
F | Nasceu em Loures, e aí faleceu em 1984. Era solteira e foi catequista na paróquia deste concelho, onde era pároco o Padre Antero Jacinto Marques. Foi governanta na Quinta das Terras, Loures. Em 1954 tinha 45 anos. |
G | Nasceu em Loures, em 1928, e fez o Curso Comercial no Instituto de Odivelas como aluna externa. Entrou para a Câmara Municipal de Loures em 1945, com 17 anos. Em 1948 era escriturária de 3.ª classe. Chegou ao lugar de chefe de secção de Contabilidade. Foi casada e faleceu em 2008. Tinha 26 anos em 1954. |
H | Nasceu a 4 de junho de 1931, em Loures, e faleceu em 2019. Viveu um período em Lisboa, mas regressou a Loures, morando perto de Amélia Veiga dos Santos, sua amiga, e também de sua mãe. Tirou o curso de Enfermagem na Escola de Enfermagem de São Vicente de Paulo. Entrou em espetáculos de teatro em Loures. Era solteira e ajudava a mãe nos trabalhos de costura. Quando o pai adoeceu, ocupou o seu lugar no Grémio da lavoura; depois de se casar, deixou de trabalhar. Em 1954 tinha 23 anos. |
I | Natural de Loures, nasceu em 1931; fez a 4.ª classe. Foi telefonista de 1.ª classe da Câmara Municipal de Loures, em 1960. Encontra-se reformada. Tinha, em 1954, 23 anos. |
J | Solteira, residia em Lisboa em 1951; com 23 anos foi da Câmara Municipal de Sines para a Câmara Municipal de Loures, tendo obtido autorização para tal. Em 1954, com 26 anos, já vivia em Loures. Era aspirante do quadro da secretaria e em novembro de 1955 foi, como 3.ª oficial de secretaria, para a Câmara Municipal de Oeiras. |
L | Nasceu em Lisboa, em 1915, e faleceu em Loures, em 1990. Em 1947 ocupou o lugar de tesoureira, proposto na Câmara Municipal de Loures. Tinha o 3.º ano da Escola Comercial Patrício Prazeres, em Lisboa. Em 1954 tinha 39 anos e era casada. |
M | Nasceu em Almoster, Alvaiázere, em 1923, e faleceu em 1984. Fez o curso geral dos liceus. Começou a trabalhar na Câmara de Loures em 1949 e, em 1952, já era escriturária de 2.ª classe. Morava no concelho. Em 1957 foi para a Câmara da Guarda e, em 1962, para a Câmara de Faro. Regressou a Loures em 1965 e terminou a atividade profissional como tesoureira. Era solteira e tinha 32 anos em 1954. |
*Para manter a privacidade dos dados pessoais das mulheres signatárias do pedido, a síntese apresentada não se encontra associada à ordem das assinaturas.
O abaixo-assinado surgiu de uma iniciativa conjunta, onde certamente pesou uma catequista católica que coadjuvava o Pároco de Loures, Antero Jacinto Marques, e um grupo de mulheres católicas, com formação escolar acima da média para a época; pertenciam a “boas famílias”, tinham emprego, na sua maioria na função pública, e estavam relativamente bem colocadas a nível social.
Aboim (2011) refere que em Portugal, nos anos 1950 e 1960, as mulheres começaram a substituir a força de trabalho dos homens, emigrados na Europa ou destacados para a guerra do ultramar. A assistência social, o ensino primário, a enfermagem e o secretariado foram as “vocações” naturalizadas, expressando a feminização do trabalho. A mobilidade interna e a proximidade a Lisboa tiveram importância num contexto de mudança social, com aumento de escolaridade e maior oferta de emprego nos serviços públicos, que davam assim oportunidades às mulheres, enquanto educadoras e portadoras de uma “sã moral”. Estes fatores trouxeram novos olhares e comportamentos que, embora considerados ousados, eram comedidos na sua exigência e, perante o espaço de poder, não traziam significativo perigo. Aliás, Portugal vivia um período de bom relacionamento com a Igreja e, numa primeira leitura, o abaixo-assinado simplesmente requeria a construção de uma capela. Por outro lado, existia o segredo, um dos fundamentos da estabilidade social (Vincent, 1991), uma combinação, privada, que não saía do edifício da Câmara ou da Igreja Matriz de Loures, numa cumplicidade tecida de silêncio.
De salientar que, na época, a administração pública e as pessoas que aí trabalham detêm especial notoriedade, prestígio e estatuto. Existe um sentido de identificação do lugar, comum a todas as pessoas da comunidade, como se traduzisse todas as características singulares do local. É nessa singular geografia do poder que estas mulheres, partilhando também o conhecimento, se unem. Além do mais, das signatárias do documento, sete são funcionárias especializadas da Câmara Municipal de Loures. A proximidade social é ainda reforçada pela proximidade ao local de trabalho (todas elas vivem nas proximidades da Câmara Municipal) e pela partilha de espacialidades do quotidiano no centro de Loures - bem como pela facilidade de acesso ao poder efetivo.
5. ALTERAÇÕES AO FIGURINO TRADICIONAL DO LUTO E DO VELÓRIO EM LOURES
Como referido, a evolução dos espaços fúnebres regista transformações na vida familiar face à morte, introduzindo-se alterações em figurinos tradicionais no contexto do velório e do enterramento. Até ao final dos anos 1950, as pessoas falecidas eram vestidas pela família e apresentadas numa sala ou quarto, com velas acesas e pendurado na parede, à cabeceira, um pano roxo litúrgico. Aí ficavam a família, de negro, a ritualização mais antiga do luto (Ariès, 1989), e os amigos, com crianças; às quatro horas da madrugada, eram servidos café e pão com manteiga. No dia seguinte, dava-se a extrema-unção ainda em casa, se solicitada, e o corpo era transportado, na carreta funerária, com um pano por cima da urna, puxada pela força humana ou por cavalo. Lentamente, as dificuldades em tomar a cargo estes rituais de final de vida tornaram-se evidentes, sendo aconselhada a sua alteração por motivos de higiene pública. Será sobretudo com o recurso aos hospitais, para evitar ou retardar a morte, que se opera uma transformação no acompanhamento da pessoa falecida, no velório, na própria despedida e no luto. A extrema-unção deixa de se fazer em casa, e a missa passa para a capela, ou sacristia. O velório é encurtado, associado ao circuito íntimo da família, mas ocorrendo no espaço público do cemitério; as emoções contêm-se e o luto diminui (Petruski, 2006). A morte deixa de ser tão natural.
Passa-se então do espaço privado do lar para o espaço público - capela ou igreja e sacristia -, com o corpo já preparado por profissionais. A última despedida exige um local, também para pousar o caixão e o fechar. De acordo com o pensamento católico, no cemitério de Loures faltava uma capela de despedida, de oração e missa se fosse essa a opção. Também era necessária para a celebração do Dia dos Fiéis Defuntos. Assim, o abaixo-assinado pode ser entendido como a “denúncia” discreta de uma necessidade que percorre a comunidade religiosa e social de Loures, a que este conjunto de mulheres dá voz ou, não menos importante, como o completar do espaço cemiterial com a capela, introduzindo nele o ritual religioso católico e os cuidados higienistas.
Neste contexto encurtado de “publicização” do espaço do ritual fúnebre, onde o íntimo e o público se complementam, e no qual a administração pública assume um papel relevante porque impulsionada por aquelas mulheres2, assinala-se a aproximação da cidade aos lugares fúnebres, no sentido em que as necrópoles são incluídas nas preocupações do desenvolvimento urbano, seja através do fomento à produção de memórias que reforçam o sentido de identidade, seja através das preocupações com a saúde pública.
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O abaixo-assinado é um fragmento da cidade silenciosa que merece ser distinguido porque centra no cemitério parte das narrativas de pessoas, seus valores e representações, herança in situ material e imaterial, destacando a cultura e história locais. Merece ainda distinção por traduzir um desejo coletivo de doze mulheres que sentiram a necessidade de transportarem para este espaço um equipamento coletivo, mas que a história esqueceu de assinalar.
Ocorrências relacionadas com a necrópole permitem aumentar o conhecimento sobre a comunidade e suas construções (Corbett, 2018), bem como a partilha de aspetos sociais, políticos, estéticos, religiosos, que conduzem a uma história diversa, plural, relacional. Naturalmente, podemos pensar que se trata apenas de uma intervenção protagonizada por mulheres num cemitério constituído maioritariamente de campas e jazigos despojados e de ostentação contida. Mas aquele espaço é uma cidade dentro da cidade, enquanto extensão do urbano, repleto de memórias, hierarquias e episódios marcantes. Este fragmento da história mostra a omnipresença de formas femininas nos cemitérios, que contrasta com a ausência de tributos a mulheres reais sobre o seu papel na vida pública. Há um visível que não se vê no património cemiterial, no entender de Pegas (2013), e este episódio é reflexo dessa invisibilidade, porque não retrata iniciativas de figuras públicas masculinas. Tratou-se com efeito de um ato de poder de decisão e de ação em prol das crenças e da saúde da comunidade, vindo de um grupo de mulheres, que a autarquia utilizou em seu proveito.
A conclusão desta reflexão centrada no cemitério municipal de Loures vem reforçar a importância da historiografia cemiterial (os cemitérios enquanto fontes de interpretação da vida urbana), do resgate do silêncio de atos de relevância para a comunidade, como foi o caso protagonizado por estas doze mulheres. Apesar da sua iniciativa coletiva refletida em materialidade, estas mulheres não mereceram então qualquer distinção no cemitério; não lhes foi concedida referência ou memória sobre o seu contributo, não se escreveram notícias, nem louvores.
Contudo, estas mulheres estão hoje identificadas na capela (foram precisos cerca de 65 anos) e é-lhes reconhecida a iniciativa da proposta de construção deste equipamento, o qual, à época, já reflete as transformações da sociedade portuguesa (Assunção, 2019b). Não fora a demanda de dotar o cemitério municipal de Loures de história, de conhecimento sobre as pessoas locais, e nada restaria para a história da capela, senão o ter sido uma obra de grande importância para a gerência da Câmara Municipal de Loures, em 1958/59. O dever de usar a memória como elemento de compreensão da vida é determinante para criar justiça, coesão e liberdade e usufruir de um presente com raízes.