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Psicologia, Saúde & Doenças

versão impressa ISSN 1645-0086

Psic., Saúde & Doenças v.12 n.1 Lisboa  2011

 

Atraso no desenvolvimento: a imprecisão de um termo

Elisabete Melo Silva1 & Cristina Petrucci Albuquerque2

 

1 Centro Social e Paroquial de São Roque

2 Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação

 

Contactar para E-mail: calbuquerque@fpce.uc.pt

 

RESUMO

A presente investigação aborda a ausência de delimitação teórica do termo atraso do desenvolvimento. Por ser tão comummente usado na prática profissional, considerou-se importante conhecer as concepções sobre o mesmo de diferentes profissionais que contactam com crianças passíveis de se encontrarem nessa condição. Para esse efeito, foi construído um questionário que, entre outros aspectos, solicita a identificação de critérios, características e causas do atraso do desenvolvimento e que explora o uso do termo e as percepções de eficácia de profissionais face a um possível quadro de atraso do desenvolvimento. A análise das respostas obtidas junto de 114 inquiridos (professores de apoio, psicólogos, assistentes sociais e pediatras), evidenciou a dificuldade no desenvolvimento de uma linguagem comum entre os profissionais que usam o termo, o carácter geral e vago do mesmo e a tendência para a sua utilização indiscriminada.

Palavras-chave: atraso do desenvolvimento, concepções, critérios.

 

ABSTRACT

The present research addresses the absence of a theoretical delimitation of the term developmental delay. Since it is a commonly used term amongst child care professionals, it was considered important to know notions of the term that are held by different professionals who are often in the presence of children who may bear it. For this purpose, a questionnaire was designed, which amongst other items, asks professionals to identify criteria, characteristics and causes of developmental delay; and explores their use of term and self-efficacy’s perceptions when dealing with a possible case of developmental delay. The analysis of the answers obtained in a group of 114 professionals (special teachers, psychologists, social workers and paediatricians) evidenced the difficulty in developing a common language amongst professionals using the term, its general and vague nature and a trend towards its indiscriminate application.

Keywords: developmental delay , notions, criteria.

 

O termo atraso do desenvolvimento é amplamente usado por diferentes profissionais e em diferentes situações. O significado do termo, a sua operacionalização e o conhecimento das condições que levam uma criança a poder ser identificada como apresentando atraso do desenvolvimento torna-se importante por vários motivos.

Em primeiro lugar, a condição de atraso do desenvolvimento é um dos critérios para a elegibilidade da criança no domínio da intervenção precoce em diferentes países, nomeadamente em Portugal (Despacho conjunto nº 891/99) e nos E.U.A. ( Individuals with Disabilities Education Act, 1997 ).

Em segundo lugar, o grupo de profissionais que usa frequentemente o termo atraso do desenvolvimento é variado. No nosso país, a selecção dos casos para apoio em intervenção precoce é feita pelas equipas de intervenção directa, das quais podem fazer parte médicos, educadores de apoio, psicólogos, técnicos de serviço social, terapeutas, enfermeiros ou outros (Despacho conjunto nº 891/99). Porém, é importante notar que o termo atraso do desenvolvimento é muito usado, não só por estas equipas, mas também por outros profissionais que trabalham com crianças em idade pré-escolar, tais como os educadores de infância, tendo em vista, entre outros objectivos, a identificação ou sinalização daquelas que necessitam do apoio de serviços especiais. Assim, o termo em estudo adquire grande importância não só na intervenção dos 0 aos 3 anos, mas também no contexto pré-escolar.

Além disso, e apesar de segundo vários autores (Cohen & Spenciner, 1994; Ferreira, Dias, & Santos, 2006; Shevell et al., 2003; Vance, 1998), o termo dever ser usado apenas até à idade escolar, em Portugal, e de acordo com a nossa própria experiência, verifica-se um uso mais generalizado do termo, sendo comum a sua utilização em relação a crianças e jovens em idade escolar.

Em qualquer caso, o termo atraso do desenvolvimento tem sido entendido como um termo não categorial e flexível (Cohen & Spenciner, 1994), tal como o ilustra o facto de não figurar como categoria diagnóstica, nem se apresentar como tal no Manual de diagnóstico e estatística dos distúrbios mentais (4ª ed. Rev., American Psychiatric Association, 2000), nem nas suas anteriores versões DSM-IV (APA, 1994) e DSM-III-R (APA, 1987). Por conseguinte, as respectivas definições, sobre as quais nos debruçaremos mais adiante, tendem a não enunciar características, parâmetros descritivos e critérios de exclusão passíveis de assegurarem, na nossa óptica, uma aplicação fidedigna do termo por parte de diferentes profissionais.

Apesar do atraso do desenvolvimento não figurar como categoria diagnóstica na DSM-IV-TR (APA, 2000), podemos perguntar-nos se pode ser perspectivado como uma perturbação do desenvolvimento e, em particular, como uma eventual subcategoria das Perturbações Globais do Desenvolvimento enunciadas pela DSM-IV-TR (APA, 2000). No entanto, as respostas a esta questão são contraditórias e documentam alguma falta de clareza em relação ao significado do termo.

Assim, e segundo McConnell (1998), quando uma criança não adquire as “tarefas desenvolvimentais” referentes à sua faixa etária e não há um diagnóstico específico ou qualquer condição aparente que explique tal situação, existe a tendência para descrever a criança como tendo atraso do desenvolvimento. Contudo, tal não significa que a criança tem uma perturbação do desenvolvimento, já que esta implica uma alteração sequencial do desenvolvimento, uma mudança qualitativa ou um desvio do funcionamento desenvolvimental (Lieberman, Barnard , & Wieder, 2004), coisa que não acontece no caso de atraso do desenvolvimento. Com efeito, e de acordo com as circunstâncias que presidem ao emprego do termo, e que acabámos de apontar (McConnell, 1998), poder-se-á concluir que qualquer criança com alguma patologia desconhecida pode fazer parte do grupo de crianças com atraso do desenvolvimento, isto é, a ele poderão pertencer todas aquelas que não têm diagnóstico, independentemente do grau ou do tipo de dificuldades que apresentem.

Contradizendo a perspectiva de McConnell (1998), que diferencia o termo em estudo da perturbação desenvolvimental, encontramos as definições de Molofsky e Gold (1988) e de Shevell et al. (2003), nas quais o “atraso do desenvolvimento global” figura como uma subcategoria das perturbações desenvolvimentais. Molofsky e Gold (1988) definem-no como um atraso, deficiência ou regressão na aquisição das aprendizagens adequadas a uma faixa etária, encarando-o como uma perturbação, visto poder implicar a regressão e a deficiência. Por seu turno, Shevell et al. (2003) definem-no como um atraso significativo em duas ou mais áreas do desenvolvimento, sendo um termo restrito à população com idade inferior aos 5 anos. A partir dessa idade, e segundo os mesmos autores, o termo “deficiência mental” torna-se o mais apropriado para usar com as crianças anteriormente identificadas com atraso do desenvolvimento. Note-se, contudo, que tal não quer dizer que todas as crianças sinalizadas como apresentando atraso do desenvolvimento venham a ter deficiência mental (Shevell et al., 2003) ou dificuldade intelectual (intellectual disability), de acordo com a expressão mais recente e preconizada para esta perturbação (Schalock et al., 2007). Ainda assim, e face a esta perspectiva, podemos questionar-nos sobre as relações entre atraso de desenvolvimento e deficiência mental/dificuldade intelectual e, designadamente, em relação a uma eventual sobreposição entre ambos. Este último aspecto afigura-se-nos particularmente pertinente em relação ao nosso país, dado que a nossa experiência nos indica, uma vez mais, que, em situações de deficiência mental e independentemente da idade do sujeito, se tende a privilegiar o recurso a outros termos, incluindo o de atraso do desenvolvimento.

Até ao momento, debruçámo-nos sobre as eventuais fronteiras conceptuais do termo atraso do desenvolvimento. No entanto, para melhor compreendermos as acepções que lhe têm sido outorgadas, impõe-se que analisemos os critérios constantes das respectivas definições.

Estas últimas apresentam como principal característica, uma enorme variabilidade, a qual é particularmente bem ilustrada nos E.U.A., onde se permite que cada estado escolha os seus próprios critérios relativamente à extensão do atraso que tem que estar presente para uma criança ser eleita para a intervenção precoce (Demers & Fiorello, 1998; Gerken, 2004). Como refere Valvidia (1999), o termo em estudo, para além de ser estatisticamente definido, dado a sua operacionalização basear-se em comparações dos níveis de funcionamento desenvolvimental entre crianças da mesma faixa etária, acaba por ser também um constructo mediado pelas próprias expectativas sócio-culturais de cada estado.

Além disso, as definições recenseadas são passíveis de serem agrupadas em dois grandes grupos: as genéricas, que se limitam a definir o termo em apreço como a demora que uma criança apresenta em adquirir as “tarefas desenvolvimentais”, numa ou mais áreas do desenvolvimento (Boyse, 2006; Schoon, Sacker, Hope, Callishaw, & Maughan, 2005; Valvidia, 1999); e as definições que fazem referência a um (Drillien, 1977, cit. por Bellman & Cash, 1987; Bellman & Cash, 1987; Ireton, 1992, cit. por Cohen & Spenciner, 1994) ou mais critérios (Barber, 1981, cit. por Bellman & Cash, 1987; Ferreira, 2004; Shevell et al., 2003), ainda que, usualmente, de forma vaga ou imprecisa e, sobretudo, não consistente ao nível das várias definições. Assim, não se consegue identificar claramente o número de áreas que devem estar afectadas para se considerar a presença do atraso do desenvolvimento, já que tal número ou não é especificado (Bellman & Cash, 1987), ou varia entre 1 ou mais áreas (Barber 1981, cit. por Bellman & Cash, 1987; Individuals with Disabilities Education Act , 1997) ou 2 ou mais áreas (Shevell et al., 2003). Para além disso, as poucas definições que procuram operacionalizar o conceito de atraso de desenvolvimento, fazem-no tendo em conta discrepâncias relativamente à idade cronológica e expressas em termos de: meses/anos, os quais podem ser fixos (Bellman & Cash, 1987) ou variáveis de idade para idade (Barber 1981, cit. por Bellman & Cash, 1987); percentagens, as quais oscilam, nos estados norte-americanos, entre um máximo de 50% e um mínimo de 25% ( United States Government Accountability Office, 2005); e/ou em termos de um desempenho individual, numa escala de desenvolvimento, 1,5 (Brassard & Boehm, 2007), 2 ou mais desvios-padrão inferior à média do respectivo grupo etário (Brassard & Boehm, 2007; Ireton, 1992, cit. por Cohen & Spenciner, 1994; Ferreira, 2004; Luiz et al., 2006; Shevell et al., 2003). Por conseguinte, não é clara qual a dimensão do atraso que deve estar presente, bem como a respectiva operacionalização.

A ausência e/ou heterogeneidade de critérios, que acabámos de mencionar, pode estar associada à variabilidade do desenvolvimento infantil e à plasticidade cognitiva, emocional e comportamental das crianças (Bellman & Cash, 1987), o que torna a avaliação pré-escolar muito diferente e mais exigente do que a avaliação noutras faixas etárias. A flexibilidade do termo pode também estar associada ao baixo valor preditivo da maioria dos instrumentos usados para avaliar a população de idade pré-escolar (Barona & Barona, 2004; Cohen & Spenciner, 1994), ou ao carácter necessariamente arbitrário de qualquer critério psicométrico, na ausência de dados relativos à respectiva sensibilidade e especificidade (Brassard & Boehm, 2007).

Sem prejuízo destes argumentos, a variabilidade inerente ao termo atraso do desenvolvimento, as condições que presidem ao seu uso, em especial, no nosso país, onde a sua aplicação está tão disseminada, estão na origem do estudo empírico que constituirá o objecto das secções seguintes.

O principal objectivo deste estudo é o exame das concepções de atraso do desenvolvimento de diferentes profissionais que, no seu dia-a-dia, contactam e trabalham com crianças e, em particular, com crianças passíveis de apresentarem Necessidades Educativas Especiais. Assim, propõe-se responder às seguintes questões: quais as características/critérios/causas mais comuns que se destacam relativamente ao termo em estudo? A partir daí, pretende-se verificar até que ponto a lacuna existente ao nível teórico sobre os critérios que devem estar presentes numa situação de atraso do desenvolvimento, fomentam, nesse meio profissional, concepções heterogéneas sobre o que significa ter essa condição.

Em segundo lugar, colocam-se algumas questões mais específicas, referentes a parâmetros conceptuais particulares (por ex., número de áreas afectadas) e ao uso do termo em estudo (por ex., sobreposição com outras problemáticas, tais como a Deficiência Mental/Dificuldade Intelectual e as Dificuldades de Aprendizagem). Em último lugar, procurou-se avaliar as percepções de eficácia dos profissionais perante uma situação de possível atraso do desenvolvimento, ou seja, até que ponto se sentiam capazes de a detectar e identificar, bem como de nela intervir.

 

MÉTODO

Participantes

A amostra do presente estudo compreende um conjunto de 114 profissionais, sendo eles: 60 Educadores/Professores de Apoio, 27 Psicólogos, 23 Técnicos de Serviço Social e 4 Pediatras. Todos pertencem a diferentes serviços oficiais de apoio à criança do concelho de Coimbra.

Os critérios de selecção desta amostra consistiram na inclusão de profissionais com fortes possibilidades de contactarem com crianças na situação de atraso do desenvolvimento e que fizessem parte dos serviços oficiais de apoio à criança do concelho de Coimbra. A opção por este concelho justifica-se por ser sede de distrito e reunir um número elevado dos referidos serviços.

Antes de se efectuar o contacto pessoal com as entidades participantes, foi-lhes entregue um pedido de colaboração e autorização escrito, onde constava a explicação do projecto de investigação, os respectivos objectivos e a especificação dos profissionais a quem se pedia a colaboração para o preenchimento dos questionários. Após a aceitação desse pedido, realizou-se, no decurso do 2º e 4º trimestre de 2007, a entrega pessoal dos questionários nos seguintes serviços: sedes dos agrupamentos das Escolas Básicas do concelho de Coimbra; Colégio de Santa Maria – valência da APPACDM de Coimbra (Associação Portuguesa de Pais e Amigos do Cidadão Deficiente Mental); ANIP – Associação Nacional de Intervenção Precoce; Departamento de Pedopsiquiatria e Saúde Mental Infantil e Juvenil de Coimbra; Hospital Pediátrico de Coimbra; Maternidade Bissaya Barreto; Maternidade Dr. Daniel de Matos; Associação Portuguesa de Paralisia Cerebral de Coimbra.

No Quadro 1 podem-se observar as características gerais da amostra. A distribuição dos sujeitos por género apresenta uma proporção desequilibrada, com 91.2% de elementos do sexo feminino e apenas 8.8% de elementos do sexo masculino. Este facto poderá estar associado aos grupos de profissionais participantes, designadamente à predominância de mulheres em profissões na área das ciências sociais e humanas.

 

Quadro 1

Características da amostra

 

Relativamente à idade dos participantes, a maioria (56.1%) tem mais de 40 anos, sendo a idade cronológica média de 41 (DP = 8.42) e as mais baixa e elevada, respectivamente, 24 e 59 anos. Quanto ao ano de Licenciatura ou do Grau Académico, a maioria (80.7%) obteve-a/o entre os anos de 1984 e 2005.

O número de anos de exercício profissional variou entre os grupos profissionais. Para os Psicólogos e Técnicos de Serviço Social a média situou-se nos 13 anos (DP = 9.19), enquanto para os Pediatras foi mais elevada, designadamente, 19 anos (DP = 9.25). Por seu turno, os Educadores/Professores de Apoio têm uma média de 21 anos (DP = 5.53) de actividade e de 9 anos (DP = 7.12) enquanto profissionais de apoio educativo.

Medidas

Não localizámos qualquer instrumento direccionado para a avaliação de concepções do atraso do desenvolvimento, nem tão pouco qualquer investigação similar à nossa. Por esses motivos, optámos pela elaboração de um questionário especificamente para esta pesquisa.

Após a pesquisa bibliográfica e a definição clara do que se desejava medir, iniciou-se um longo processo relativo à selecção e elaboração das perguntas que iriam constar do questionário. Durante esse processo fizeram-se 3 versões do questionário até se obter a versão final do mesmo, tendo sido as três versões revistas e avaliadas por ambas as autoras da presente investigação e uma delas por uma psicóloga com ampla experiência nos domínios da intervenção precoce e das perturbações do desenvolvimento.

De referir que foram construídos 4 questionários ligeiramente distintos para os diferentes profissionais em função da sua formação prévia e da especificidade inerente ao exercício profissional. Por exemplo, a questão “Enquanto profissional, sente-se capaz de elaborar um Programa de Intervenção numa situação de Atraso do Desenvolvimento?” foi excluída dos questionários dirigidos aos Técnicos de Serviço Social e Pediatras, pois considerou-se que apenas os Educadores/Professores de Apoio e os Psicólogos podiam exercer essa tarefa na sua prática profissional.

Tendo em conta os tópicos que aborda e/ou o tipo de itens que integra, é possível identificar quatro secções no questionário. A primeira refere-se à identificação dos inquiridos. Esta é composta por alguns itens comuns e outros diferentes consoante o profissional a quem se dirige.

A segunda secção é constituída por perguntas que pretendem conhecer o que os inquiridos sabem, de uma forma geral, relativamente às características, critérios, dimensão e causas do atraso do desenvolvimento. Nesta secção, o formato dos itens é variado, mas com predomínio de itens de resposta aberta.

A terceira secção é composta, essencialmente, por itens dicotómicos (verdadeiro/falso), enquanto a quarta secção se constitui, integralmente, por itens de escalas numéricas. Os tópicos destas duas secções reportam-se a aspectos mais específicos, relativos ao termo em estudo, e que, nalguns casos, são controversos na literatura. Entre esses podem salientar-se: o tópico relativo ao atraso do desenvolvimento ser considerado, ou não, como uma perturbação; e a delimitação quanto ao número de áreas afectadas num caso de atraso do desenvolvimento. Através das questões formuladas, procura-se também compreender se existem tendências associadas ao uso do termo em estudo, como por exemplo: se os inquiridos consideram que há áreas mais frequentemente afectadas do que outras; se o termo é usado na ausência de um diagnóstico específico ou se constitui uma designação alternativa à de deficiência mental, etc.. Em relação a esta última possibilidade, não se faz qualquer referência à expressão dificuldade intelectual, dado o seu aparecimento recente e o muito provável desconhecimento dos inquiridos em relação ao respectivo significado e uso.

Para além das questões referidas, incluíram-se outras que pretendem saber quais as percepções de eficácia destes profissionais perante uma possível situação de atraso do desenvolvimento. Contudo, estas não estão apenas numa secção do questionário, tendo sido repartidas pela segunda e terceira, no sentido de evitar contaminações de respostas.

Uma vez que a ordem das perguntas é muito importante quando se constrói um questionário (Oppenheim, 1997), tivemos o cuidado de colocar em primeiro lugar questões gerais sobre o termo em estudo, como por exemplo “Tem conhecimento de critérios específicos que tenham que estar presentes para se considerar a presença de um quadro de atraso do desenvolvimento? Se sim especifique quais”. Procura-se, deste modo, avaliar o que o inquirido conhece sobre a condição de atraso do desenvolvimento, sem ser influenciado pelas questões posteriores, que são muito mais específicas. Para além deste aspecto, procurou-se usar linguagem/vocabulário acessível a todos os sujeitos e respeitaram-se as indicações referentes à redacção dos itens (Moreira, 2004; Oppenheim, 1997).

Quanto ao recurso a diferentes formatos de itens, ao longo do questionário, este está associado ao que cada questão pretende medir. Assim, o primeiro item do questionário, (item 1, sem contar com os itens de identificação), é o único com escala referenciada, isto é, inclui uma pergunta básica relativa à frequência com que os inquiridos contactam com situações de atraso do desenvolvimento na sua profissão e apresenta 5 alternativas definidas separadamente (de muito frequentemente a nunca). Este formato de item é o ideal para avaliar um referencial concreto, como é o caso da presente questão (Moreira, 2004).

O uso de itens de resposta aberta foi usado na segunda secção do questionário, na qual se pretendia que os inquiridos expressassem conhecimentos/concepções sobre o atraso do desenvolvimento nas suas próprias palavras e de forma espontânea e pessoal. A fim de evitar as desvantagens que normalmente estão associadas a estas questões (Moreira, 2004; Oppenheim, 1997), procurou-se que se referissem a aspectos claros (por exemplo, “Para que se possa falar em Atraso do Desenvolvimento, qual deverá ser a dimensão do atraso em termos de meses?”). No tratamento destas respostas recorreu-se à análise de conteúdo e aos passos que lhes são inerentes, tais como os relativos à leitura atenta e activa e à categorização/codificação dos dados (Amado, 2000).

Os itens dicotómicos, onde se oferecem apenas duas alternativas, formuladas em termos de verdadeiro/falso, foram usados em questões factuais, constantes da terceira secção do questionário, como por exemplo “O Atraso do Desenvolvimento é uma subcategoria das Perturbações Globais do Desenvolvimento classificadas na DSM-IV-TR”.

Os itens com escalas numéricas de cinco pontos foram os mais usados, embora se destaquem na quarta secção e na avaliação das percepções de eficácia, onde só são desse tipo. Esta opção radica no facto de se pretender uma quantificação subjectiva relativamente ao grau de concordância dos inquiridos em relação a determinado aspecto e, neste caso, as escalas numéricas serem a melhor alternativa (Moreira, 2004).

 

RESULTADOS

A apresentação dos resultados corresponde, em geral, às diferentes secções do questionário. Uma vez que a abordagem de todos os resultados obtidos não se afigurava viável no contexto do presente trabalho, privilegiaram-se os relativos aos itens comuns a todos os profissionais. Não obstante, abordar-se-ão, pontualmente, alguns dos resultados relativos a questões direccionadas a profissionais específicos.

No item 1, a maioria dos inquiridos (88.6%) afirmou contactar algumas vezes (35.1%), frequentemente (28.9%) ou muito frequentemente (24.6%) com crianças em situação de atraso do desenvolvimento. No âmbito da segunda secção, quando questionados sobre o conhecimento de critérios específicos que tenham que estar presentes numa situação de atraso do desenvolvimento, a maioria (67.5%) respondeu que possui esse conhecimento. A esses foi-lhes pedido que expusessem, então, os critérios que conheciam. O Quadro 2 resulta de uma análise de conteúdo (Amado, 2000) às respostas obtidas, e destina-se a permitir ao leitor visualizar o tipo de critérios encontrados e o número de menções a que correspondem.

 

Quadro 2

Análise de conteúdo referente ao conhecimento de critérios específicos de Atraso do Desenvolvimento

 

A análise de conteúdo revelou-se de grande dificuldade, pois as respostas analisadas pautam-se por um carácter geral e bastante vago, sendo na sua maioria pouco claras. Dessa análise averiguou-se a existência de três categorias.

A primeira categoria, identificação de critérios gerais, é aquela que se apresenta com maior representatividade, salientando-se no seu interior, com maior número de unidades registo, a subcategoria relativa ao número de áreas afectadas que deve estar presente num quadro de atraso do desenvolvimento. Dado o carácter impreciso das unidades de registo respeitantes a esta subcategoria, pode-se apenas constatar que os inquiridos consideram que o atraso deve ocorrer, predominantemente, em mais do que uma área do desenvolvimento. Posteriormente, com alguma representatividade, surgem os critérios associados à presença de uma discrepância relativamente à faixa etária. Neste campo, salienta-se a comparação dos desempenhos de crianças da mesma idade cronológica, sem, contudo, se identificar o grau/dimensão da diferença ou discrepância que deve estar presente para se considerar atraso do desenvolvimento, bem como quais a(s) área(s) em que tal discrepância pode ocorrer. Ainda no âmbito de um registo vago, surgem os critérios referentes ao uso de escalas/instrumentos de avaliação infantil, sem qualquer discriminação/especificação complementar.

De seguida, encontra-se a referência a critérios que se podem sobrepor/confundir com os inerentes aos quadros de Deficiência Mental e de Dificuldades de Aprendizagem. Não obstante, esta categoria é pouco representativa.

Por último, a categoria constituída por subcategorias correspondentes a critérios mais específicos, passíveis de servirem como referência da actuação dos profissionais, agrega um número bem mais reduzido de unidades de registo. Neste domínio, não se destaca, de forma pronunciada, nenhum critério como sendo o mais representativo, existindo antes, uma ampla dispersão das respostas pelas diferentes subcategorias.

Há, ainda, que salientar, que 32.5% dos inquiridos optou por não responder (21.9% porque afirmaram não conhecer os critérios do atraso do desenvolvimento e os restantes 10.5% afirmaram conhecer, porém, não os expuseram), o que nos parece um número consideravelmente elevado, tendo em conta que a maioria afirmou contactar, algumas vezes/frequentemente/muito frequentemente, com crianças nesta condição.

Em resposta à solicitação para enunciarem as características da criança com atraso do desenvolvimento, é possível verificar-se, através do Quadro 3, que os participantes indicaram a presença de uma lentificação no processo desenvolvimental e o atraso presente em mais do que uma área do desenvolvimento como as mais comuns. Sendo assim, em conjugação com a questão anterior, predomina a concepção de que se trata de uma criança que não tem um desenvolvimento correspondente ao dos pares em mais do que uma área do desenvolvimento.

 

Quadro 3

Análise de conteúdo referente à caracterização de uma criança com Atraso do Desenvolvimento

 

Para além disso, salienta-se o carácter geral das respostas e aquelas que traduzem uma possível confusão entre atraso do desenvolvimento e outras problemáticas, tal como aconteceu na análise de conteúdo anterior.

Sendo um dos possíveis critérios de operacionalização do termo em estudo, questionou-se, também através de um item de resposta aberta, sobre qual deveria ser a dimensão do atraso em termos de meses para se considerar que uma criança está nessa condição. As respostas caracterizam-se pela heterogeneidade. A dimensão com mais unidades de registo (31; 27.2%) corresponde à presença de 12 meses de atraso, seguindo-se a indicação de que depende da própria idade da criança (19 unidades de registo; 16.7%). É de salientar que 22% dos indivíduos optaram por não responder, 6.1% declararam desconhecer tal dimensão (7 unidades de registo) e igual percentagem (6.1%) revelou não concordar com a questão colocada, afirmando, em geral, que o atraso do desenvolvimento não pode ser avaliado dessa forma. Note-se, contudo, que não apontaram outros critérios, nem qualquer alternativa no plano da avaliação. Os restantes profissionais referiram dimensões bastante variadas: 6 meses (16 unidades de registo; 14%), 24 meses (5 unidades de registo; 4.4%), 18 meses (3 unidades de registo; 2.6%), e entre os 3 e 6 meses (1 unidade de registo; 0.9%).

No que diz respeito ao aspecto etiológico, começamos por assinalar que foi pedido aos inquiridos que escolhessem, a partir de uma listagem, as 3 causas que considerassem ser as principais. Através do Quadro 4, pode-se observar uma maior convergência de perspectivas do que nas questões precedentes, patente numa nítida valorização dos factores biomédicos, ainda que os de índole ambiental não sejam descurados.

 

Quadro 4

Principais causas do Atraso do Desenvolvimento

 

Como se pode observar no Quadro 5, ao analisarem-se as questões dicotómicas, constantes de terceira secção, verificou-se a presença de divergências quanto a alguns dos aspectos pertinentes associados ao termo em estudo.

 

Quadro 5

Respostas a itens dicotómicos

 

No que diz respeito ao número de áreas que devem estar afectadas para se poder considerar a presença do atraso do desenvolvimento, e tendo em conta as questões referentes a este conteúdo (“O atraso do desenvolvimento deve ocorrer em todas as áreas.”; “O atraso do desenvolvimento pode ocorrer apenas numa área.”), verificou-se que a maioria (90.4%) dos inquiridos considera que a condição em apreço não implica necessariamente o comprometimento de todas as áreas do desenvolvimento. No entanto, quanto à possibilidade deste ocorrer apenas numa área do desenvolvimento, a homogeneidade de respostas diminui, ou seja, 64.9% acha que pode ocorrer apenas numa área, enquanto 32.5% consideram que não, o que mostra a diferenciação de perspectivas existente.

Um aspecto algo surpreendente refere-se à assimilação do atraso do desenvolvimento a uma “demora temporária em atingir qualquer marco do desenvolvimento”. De facto, 54.4% dos respondentes assinalou a afirmação relativa a este conteúdo, como sendo verdadeira.

A confusão entre o termo em estudo e outras problemáticas voltou a ser verificada nestas questões dicotómicas, nomeadamente no que diz respeito à sobreposição com as Dificuldades de Aprendizagem. Assim, para 28.9% dos profissionais, valor que consideramos importante, o atraso do desenvolvimento significa Dificuldades de Aprendizagem. Quanto à Deficiência Mental, não se verificou a sobreposição, sendo que 95.6% considerou falsa a questão relativa a esse conteúdo. Este resultado vai de encontro ao verificado nos itens de resposta aberta, nas quais a menção a critérios correspondentes à Deficiência Mental assumiu uma expressão reduzida.

Relativamente ao facto do termo em apreço ser aplicado apenas a crianças, mais uma vez, as respostas dividem-se com percentagens importantes, tanto para a hipótese “verdadeira” como para a “falsa”. Assim, 64.8% considera que o termo é aplicado somente a crianças, enquanto 35.2% acredita que pode ser aplicado a outras faixas etárias.

As questões, dirigidas apenas aos Psicólogos e aos Pediatras, que se propõem determinar se os mesmos consideram o atraso do desenvolvimento como uma perturbação que consta na DSM-IV-TR, revelaram, de um modo geral, tendências heterogéneas, para além do número de respostas omissas ter sido apreciável. Ligeiramente mais de metade dos profissionais inquiridos parece saber que o atraso do desenvolvimento não existe como categoria na DSM-IV-TR, nem faz parte das Perturbações Globais do Desenvolvimento, classificadas pela mesma. Contudo, cerca de um terço mostra uma posição divergente, isto é, considera que o atraso do desenvolvimento integra a DSM-IV-TR e as Perturbações Globais do Desenvolvimento. Quanto à afirmação relativa ao facto dos critérios de diagnóstico da deficiência mental e do atraso do desenvolvimento serem comuns, a maioria (77.4%) revela saber que tal afirmação é falsa.

Na quarta secção, as questões que avaliam o nível de concordância dos inquiridos quanto a aspectos pertinentes associados ao atraso do desenvolvimento, permitiram confirmar alguns dos resultados já verificados e trouxeram novos dados respeitantes a opiniões específicas sobre essa condição. Assim, o Quadro 6 documenta que se verificou um grau de concordância elevado (65.8%) no que diz respeito à tendência para classificar com atraso do desenvolvimento a criança que não efectua aprendizagens esperadas para a sua idade cronológica e que não tem um diagnóstico específico. No mesmo sentido, a importância de criar subcategorias para o atraso do desenvolvimento, tendo em conta o seu grau de gravidade, obteve por parte dos respondentes uma posição predominantemente concordante (75.4%).

 

Quadro 6

Respostas a itens de avaliação do grau de concordância e da percepção de eficácia

 

Quanto às áreas mais frequentemente afectadas num quadro de atraso do desenvolvimento, a maioria dos inquiridos concordou que a área da Linguagem (51.7%), bem como a da Cognição (60.6%) estão nessa posição. Note-se, no entanto, que a Linguagem regista um menor grau de consenso e é, aliás, o único item da secção em que se insere que regista ausência de resposta (0.9%).

No que concerne à avaliação das percepções de eficácia, patente no Quadro 6, e tendo em conta a presença de uma resposta omissa a cada uma das 3 questões, verifica-se que 61.4% dos inquiridos se sentem bastante confiantes para detectar indicadores de uma possível situação de atraso do desenvolvimento.

Por seu turno, as percepções de eficácia para identificar uma situação de atraso do desenvolvimento, solicitadas a todos os profissionais com excepção dos Técnicos de Serviço Social, revelaram-se consideravelmente elevadas. Ao comparar-se as respostas dos mesmos grupos profissionais a esta questão e à que se refere ao conhecimento de critérios específicos que tenham que estar presentes numa situação de atraso do desenvolvimento, verifica-se um facto curioso. Com efeito, apesar de se ter verificado que um número relativamente elevado (33) de inquiridos não especificou qualquer critério alusivo ao atraso do desenvolvimento, apenas 7 profissionais se consideraram incapazes para identificar essa condição. A maioria (62.6%) mostra sentir-se suficientemente à vontade e capaz para o fazer.

Por último, os Psicólogos e os Educadores/Professores de Apoio, ao serem questionados sobre a sua capacidade para elaborar um Programa de Intervenção, revelaram níveis elevados de eficácia. Porém, salienta-se que neste item, ao contrário do que aconteceu nos outros dois do mesmo tipo, se verificou um maior número de respostas nas alternativas desfavoráveis (16% nesta questão versus 5.3% e 7.7% nas relativas, respectivamente, à detecção de indicadores e à efectiva identificação de uma situação de atraso).

 

DISCUSSÃO

Apesar do número de sujeitos que constitui a amostra do presente estudo não ser muito elevado, considera-se que permite aceder às concepções sobre o atraso do desenvolvimento de profissionais que trabalham com crianças passíveis de estarem nessa condição. A este propósito, recorda-se que a maioria dos inquiridos afirmou contactar com regularidade com a referida condição.

Através dos resultados obtidos, foi possível confirmar que a lacuna relativamente à delimitação teórica do termo em apreço, traduz-se, na prática, na presença de concepções/definições vagas e diversas, de inexactidões e equívocos que podem, efectivamente, influenciar a utilização do termo. A título exemplificativo, recorda-se o carácter vago quer dos critérios de identificação avançados, quer das caracterizações da criança com atraso do desenvolvimento. Globalmente, e conjugando as respostas às questões abertas e a uma questão fechada, pode afirmar-se que para os inquiridos a criança com atraso de desenvolvimento é a que apresenta um desenvolvimento lento em mais do que uma área de desenvolvimento, estando usualmente comprometida a cognição. Como se poderá verificar, trata-se de uma concepção generalista e excessivamente abrangente. Além disso, convém salientar que as crianças com atraso do desenvolvimento podem apresentar resultados muito diferenciados em testes de avaliação do funcionamento intelectual (Riou, Ghosh, Francouer, & Shevell 2009), pelo que não é legítimo considerar-se que os défices cognitivos estão necessariamente associados ao atraso do desenvolvimento.

Pode, também, apontar-se a diversidade verificada no que diz respeito aos critérios de identificação, à possibilidade do atraso ocorrer numa só área de desenvolvimento e à dimensão do atraso em termos de meses. Por exemplo, segundo os participantes, este último pode ser da ordem dos 3 a 6 meses, 6 meses, 12 meses, 18 meses e 24 meses.

Em termos de inexactidões, salientamos as inerentes à assimilação do atraso do desenvolvimento a uma demora temporária em atingir qualquer marco do desenvolvimento e à sobreposição com as dificuldades de aprendizagem. No que respeita à primeira, e dado que mais de metade dos respondentes consideraram a afirmação verdadeira, pode considerar-se que ignoraram, pelo menos aparentemente, que nem todas as crianças adquirem determinadas aquisições na mesma idade (Bellman & Cash, 1987; Valvidia, 1999), registando-se, antes, amplas variações interindividuais, bem como que não atenderam ao facto do desenvolvimento ser um processo dinâmico (Sameroff, 2000). Não obstante, e uma vez que o adjectivo temporário exprime relatividade, não se pode excluir a possibilidade de ter sido alvo de interpretações díspares.

No que se refere à sobreposição com as dificuldades de aprendizagem, começamos por destacar que embora esta não seja dominante entre os inquiridos, assume, ainda assim, uma expressão assinalável. Este facto remete-nos para a amplitude que o termo assumiu no contexto nacional, já que, tal como salientam Correia e Martins (1999), o termo dificuldades de aprendizagem adquiriu, no nosso país, significados distintos, sendo um muito abrangente. Este corresponde, na óptica dos autores, aquele que é predominantemente adoptado pelos profissionais e engloba todos os problemas de aprendizagem, temporários ou permanentes, que se manifestam no contexto escolar, contemplando, por conseguinte, muitas crianças em risco ou com necessidades especiais. Face aos dados recolhidos no presente estudo, poder-se-á acrescentar que este entendimento alargado do termo inclui também o contexto pré-escolar e crianças com atraso de desenvolvimento. E isto, não obstante, o diagnóstico de dificuldades de aprendizagem, nomeadamente das específicas, se efectuar, em regra, na idade escolar. Como apontam Kavale e Forness (2003), quando a diferenciação entre diferentes tipos de problemáticas desaparece, e o termo dificuldades de aprendizagem é usado como sendo passível de englobar tudo e todos, é o próprio conceito original do termo que se perde, com óbvias desvantagens para os envolvidos.

Quanto ao emprego do termo, realçamos os resultados que evidenciam que o termo atraso de desenvolvimento: não se aplica, apenas, a crianças, consubstanciando, assim, a nossa própria observação em relação ao respectivo uso, tal como mencionado na introdução a este trabalho; tende a ser utilizado quando uma criança não efectua as aprendizagens esperadas para a sua idade cronológica e não tem um diagnóstico específico, o que, por sua vez, permite supor que crianças com problemáticas muito diferentes podem estar, realmente, a ser enquadradas sob a mesma denominação, devido ao uso flexível do termo em estudo; tende, também, a ser utilizado quando uma criança apresenta um quadro de deficiência mental, visto os pais aceitarem mais facilmente este diagnóstico. Esta última verificação vai de encontro à nossa própria observação, tal como salientado precedentemente, e prende-se com o carácter estigmatizante que o termo deficiência mental adquiriu, bem como com a procura de designações alternativas e potencialmente mais aceitáveis. É, aliás, neste âmbito que se insere a recente proposta do termo dificuldade intelectual. No seu conjunto, os resultados apontados atestam um uso indiscriminado do termo, quer em termos de faixas etárias, quer em termos das condições contempladas.

Verificaram-se, igualmente, contradições nos dados obtidos, já que, face ao carácter impreciso ou à ausência de menção de critérios de identificação específicos, não deixa de ser surpreendente que os profissionais se percepcionem como capazes de detectarem indicadores do mesmo e de o despistarem. Contudo, e tal como salienta Bandura (2002), quando o conhecimento das exigências inerentes a uma dada tarefa é ambíguo ou mal definido, podem verificar-se sobreestimativas da eficácia individual. Em todo o caso, e reconhecendo-se que as percepções de auto-eficácia influenciam o modo como os profissionais se envolvem nas tarefas e ultrapassam as dificuldades (Bandura, 2002), este é, seguramente, um aspecto positivo.

Outros aspectos positivos quanto à forma como alguns profissionais parecem pensar/compreender a condição em estudo respeitam ao facto de alguns inquiridos terem exposto claramente uma posição de discordância quanto à avaliação do atraso do desenvolvimento em termos de meses ou terem indicado que tal dimensão depende da idade da criança. Ainda que minoritários, os primeiros mostraram um sentido crítico que poderá ser importante num contexto que se caracteriza pela incerteza, enquanto que os segundos expressaram uma perspectiva que coincide com a de alguns autores (Drillien, 1977, cit. por Bellman & Cash, 1987; Barber, 1981, cit. por Bellman & Cash, 1987).

A presença de uma visão multifactorial relativamente à etiologia do atraso do desenvolvimento por parte dos profissionais, bem como a concordância expressa em relação à importância de criar subcategorias do atraso do desenvolvimento, tendo em conta o respectivo grau de gravidade, também se nos apresentam como algo positivo. E isto, porque neste último caso, admitimos a possibilidade de tal se ficar a dever ao facto dos próprios profissionais estarem cientes da amplitude inerente ao termo. Além disso, e em relação a qualquer um dos casos, a perspectiva dos inquiridos vai de encontro ao apontado nalgumas pesquisas. Por exemplo, quando é possível identificar factores etiológicos no atraso do desenvolvimento, eles são, com frequência, diversificados (Shevell, Majnemer, Rosenbaum, & Abrahamowicz, 2000; Srour, Mazer, & Shevell, 2006). Por outro lado, tem-se observado que a coexistência de atrasos em mais do que uma área do desenvolvimento corresponde a uma maior gravidade ( Valtonen, Ahonen, Lyytinen, & Lyytinen, 2004) ou a um prognóstico mais desfavorável ( Shevell, Majnemer, Platt, Webster, & Birnbaum, 2005).

Tal como o termo Necessidades Educativas Especiais, também o de atraso do desenvolvimento tem como objectivo permitir o acesso de todas as crianças à educação e ao apoio de serviços especiais, promovendo um trabalho de intervenção o mais precoce possível. No entanto, por terem um carácter vago e geral, ambos acabam por se revestir também de uma simplicidade que os torna perigosamente atractivos. Tal como apontam incisivamente outros autores (Riou et al., 2009; Shevell et al., 2005), o atraso do desenvolvimento é um conjunto complexo de sintomas, sem qualquer perfil nosológico definido ou indicadores sólidos da respectiva validade. A este respeito, Riou e colaboradores (2009) consideram, inclusivamente, que o atraso do desenvolvimento se assemelha à paralisia cerebral em termos da diversidade de manifestações e etiologias.

Sendo assim, a presente investigação pode contribuir para a tomada de consciência relativa ao uso díspar do termo atraso do desenvolvimento e à existência de inevitáveis equívocos e contradições. Note-se, porém, que com esta “chamada de atenção” não queremos dizer, de forma alguma, que o uso do termo é inviável ou reduzir a sua importância. Antes pelo contrário, é tendo consciência dessa relevância, nomeadamente ao nível dos processos de despistagem e detecção, que se invoca a necessidade de cuidado e questionamento por parte dos profissionais que o usam ou que se vêm confrontados com a sua utilização, por parte de outrem, nas mais variadas situações.

No caso específico dos psicólogos, o escrutínio das concepções de atraso do desenvolvimento afigura-se essencial ao nível da comunicação e colaboração com outros profissionais, bem como com os pais e familiares das crianças. Além disso, é relevante ao nível do exercício de diversas actividades por parte dos psicólogos, tais como as de prevenção, despistagem, diagnóstico, aconselhamento, educação ou investigação. A este último respeito, não podemos deixar de chamar a atenção para o facto do atraso do desenvolvimento ter sido fortemente negligenciado em termos de investigação nacional, não obstante ser legítimo pressupor-se que, á semelhança do apontado noutros países, constitui um dos principais motivos do encaminhamento de crianças para serviços educativos e de saúde.

 

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Recebido em 12 de Marco de 2009/ Aceite em 29 de Janeiro de 2010