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Psicologia, Saúde & Doenças

versão impressa ISSN 1645-0086

Psic., Saúde & Doenças vol.13 no.2 Lisboa  2012

 

Saúde e direitos: vulnerabilidades à saúde sexual juvenil em comunidades litorâneas brasileiras

Health and rights: vulnerabilities to sexual health youth in brasilian coastal communities

Renata Bellenzani 1,2

 

1 Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Mato Grosso do Sul - Brasil (renatabellenzani@hotmail.com)

2Núcleo de Estudos para Prevenção da Aids (NEPAIDS) da Universidade de São Paulo (USP). Brasil

 

RESUMO

O trabalho reúne as considerações de alguns dos autores brasileiros que têm discutido a relação entre Saúde e Direitos Humanos, alinhavando-as à análise dos dados qualitativos de um dos estudos desenvolvidos pelo Núcleo de Estudos para Prevenção da Aids (NEPAIDS/USP) sobre a temática “DST/HIV, saúde sexual e cidadania de jovens residentes em comunidades turísticas litorâneas no Brasil”. Descreve o Quadro da Vulnerabilidade e Direitos Humanos (V&DH), fazendo uma retrospectiva sucinta de alguns marcos históricos na construção da noção de saúde-doença; na positivação da saúde como direito social e em sua compreensão enquanto fenômeno psicossocial atravessado pelos contextos político, social, jurídico, econômico e cultural. A vulnerabilidade de jovens de comunidades litorâneas às doenças sexualmente transmissíveis, em especial o HIV, e às violências sexuais constituem objetos analisados sob a ótica das desigualdades simbólicas e sociais, demonstrando a operacionalidade do referencial explicitado para as análises em saúde no plano da cidadania.

Palavras-chave- saúde, saúde sexual, sexualidade, HIV/Aids, vulnerabilidade, direitos humanos, turismo.

 

ABSTRACT

The paper presents the findings of some Brazilian authors who have discussed the relationship between Health and Human Rights, tacking them to the analysis of qualitative results by one of the studies developed by the Centre for AIDS Prevention Studies (NEPAIDS/ USP) about the theme "STD/HIV, sexual health and citizenship of young living in coastal tourist communities in Brazil." Describes the Framework of Vulnerability and Human Rights, making a brief retrospective of some landmarks in the construction of notions of health and illness, assertiveness in health as social right and your understanding as psychosocial phenomenon crossed by political contexts, social, legal, economic and cultural. The vulnerability of young people from coastal communities to sexually transmitted diseases, especially HIV, and sexual violence are the subjects examined from the viewpoint of symbolic and social inequalities, demonstrating the operability of the explicit reference to the analysis in health in terms of citizenship.

Keywords- health, sexual health, sexuality, HIV / AIDS, vulnerability, human rights, tourism.

 

O presente trabalho aglutina considerações teóricas, marcos históricos e políticos que ampliaram as noções de saúde e doença no campo da Saúde Coletiva no Brasil e o diálogo com os direitos humanos. Objetiva-se, com isso, subsidiar a discussão em sequencia sobre a promoção dos direitos sexuais e da saúde sexual de jovens brasileiros de comunidades turísticas, com base nos resultados de uma pesquisa de campo. A noção de saúde sexual foi disseminada oficialmente pela OMS desde 1998 (Arilha & Berquó, 2009) e defendida formalmente a partir das primeiras Conferências Internacionais de População e Desenvolvimento da Organização das Nações Unidas (ONU), na década de 50 (Berquó, 1998). Sua formulação, assim como da saúde reprodutiva, situa-se no campo das lutas pelo reconhecimento dos direitos relativos ao exercício da sexualidade – de caráter individual e, ao mesmo tempo, coletivo/social. Integra-se às reivindicações por políticas públicas desdobrando-se em demandas fundamentalmente voltadas ao Estado (Corrêa & Ávilla, 2003). O campo da saúde sexual e reprodutiva inclui temas como: sexualidade, concepção e contracepção, doenças sexualmente transmissíveis (DST) e HIV/Aids, pré-natal, parto e nascimento, puerpério e amamentação, aborto e violência sexual (Berquó, 2003).

Como um primeiro eixo de subsídios, destaca-se o processo histórico-social que inflexionou uma compreensão mais ampliada e dinâmica sobre o que seja saúde, forjando-se a terminologia processo saúde-doença, mais intensamente utilizada no Brasil a partir do início dos anos 70, por diversos autores entre eles Laurell (1982) e Rezende (1986). É neste cenário de ampliação da noção de saúde, que emerge a saúde sexual e reprodutiva como campo temático de reivindicações aos Estadospor políticas de saúde nessa área.

Uma segunda linha de reflexão complementar destaca as formulações políticas, éticas e teóricas de autores internacionais e brasileiros sobre a relação entre o processo saúde-doença, desenvolvimento social e direitos humanos (França-Júnior & Ayres, 2003; Gruskin & Tarantola, 2012), formulações estas possíveis, justamente, quando o reconhecimento das determinações políticas, sociais e culturais sobre os processos de saúde-doença encontra-se legitimado científica e socialmente. Comentar-se-á sobre o Quadro da Vulnerabilidade e Direitos Humanos (V&DH) (Paiva & França-Júnior, 2010; Paiva, 2007), cujos “movimentos de um tratamento mais sistemático sobre a vulnerabilidade e seu diálogo com os direitos humanos” (Ayres, Paiva & Buchalla, 2012, p.11) datam do início da década de 90.

Partindo, assim, do percurso sobre a noção ampliada de saúde entendida enquanto processo saúde-doença e sua relação com os direitos humanos e a cidadania, o trabalho desliza desses subsídios para a apresentação e a discussão dos resultados qualitativos de um estudo desenvolvido entre 2005 e 2008 (Paiva, Santos, Blessa & Bellenzani, 2007), sobre a saúde sexual e os direitos sociais de jovens de comunidades litorâneas, de um município brasileiro no estado do Rio de Janeiro. Investigaram-se os fatores sociais e culturais que integravam a vulnerabilidade de jovens a determinados agravos e fenômenos que comprometem sua saúde sexual e sua cidadania, tais como o HIV e o aliciamento para o mercado turístico sexual. Desse modo os leitores poderão visualizar, nos termos dos próprios atores sociais, os aspectos do cenário sociocultural e a relação entre o gozo dos direitos (ou o não acesso a esses) e as vulnerabilidades envolvidas no processo saúde-doença, no que se refere à saúde sexual e à sexualidade.

Almeja-se dialogar com pesquisadores da área e, também, contribuir com a formação de profissionais “não advogados”, entre eles educadores, assistentes sociais, psicólogos, gestores, profissionais da área social em geral e da saúde, ligados à execução de políticas e programas. Entende-se que para a compreensão da produção social dos agravos em saúde sexual, alguns insumos teóricos são relevantes: a noção ampliada de saúde-doença, assim como a discussão sobre as vulnerabilidades em saúde relacionadas aos contextos em que os direitos humanos não são protegidos e promovidos, seja pela ausência de políticas e programas, seja pelas práticas dos profissionais que nestes atuam. Por vezes, predomina a insegurança ou o não reconhecimento por parte destes, das implicações de suas ações técnicas e condutas na proteção dos direitos das pessoas para as quais suas ações se dirigem: alunos, usuários do SUS, mulheres, adolescentes e famílias - geralmente referidos como “vulneráveis”. Mais grave ainda é a desatenção acerca das consequências de eventuais omissões (eximir-se de condutas profissionais técnica e politicamente recomendadas ou referendadas legalmente), que no plano da cidadania se configuram como negligências na promoção e proteção dos direitos humanos, ou até em violações dos mesmos. Seja por despreparo, por desconhecimento sobre os direitos humanos, ou ainda, pelo exercício profissional se dar em condições que impossibilitam ações intersetoriais e multidisciplinares com foco na cidadania plena, o que se constata é que “a linguagem e as práticas dos direitos humanos e da saúde têm se mantido exóticas umas às outras” (França-Júnior & Ayres, 2003, p.1). Ressaltamos, contudo, que os subsídios conceituais apresentados, assim como o aprimoramento técnico dos trabalhadores, não são as únicas ou principais estratégias para a promoção da saúde e a proteção dos direitos humanos em diferentes situações de vulnerabilidade; devem, no entanto, ser compreendidos enquanto componentes de um conjunto de mudanças programáticas de caráter estrutural.

A produção social do processo saúde-doença e a saúde como direito

O desenvolvimento das ciências biomédicas, da epidemiologia e a introdução das ciências humanas e sociais no campo da saúde têm caminhado no sentido de compreender o corpo e os processos de saúde-doença, evoluindo das explicações mais reducionistas e universalistas, ou seja, com base no nível orgânico, válidas para todas as pessoas e em todos os momentos históricos, para abordagens mais complexas, situadas no tempo e que levam em consideração os modelos socioeconômicos vigentes e aspectos psicossociais. Segundo Rezende (1986) a compreensão acerca do adoecer, nas sociedades, passou a ser, progressivamente, um evento não somente de ordem fisiológica e orgânica, para um fenômeno que também guarda historicidade, é construído social e culturalmente, e tem multideterminação, ou seja, um fenômeno social, além de biológico.

Muito se caminhou da teoria unicausal da doença no século XIX, da história natural da doença (HND), passando pela epidemiologia e os determinantes sociais do processo saúde-doença, pela promoção da saúde, até a proposta da vulnerabilidade (Ayres et al., 2003; Ayres, Paiva & França-Jr, 2012) no final do século XX e a emergência, um pouco mais recente, do Quadro da Vulnerabilidade e Direitos Humanos (Paiva, Ayres & Buchalla, 2012; Paiva & França-Júnior, 2010). No século XIX, Marx e Engels denunciaram que o corpo não era “somente do biológico”, pois se transformara em instrumento do sistema produtivo; lançaram os germes para o reconhecimento da saúde e da vida como assuntos de interesse coletivo e de que sobre elas incidem influências econômicas e sociais, carecendo para sua proteção frente às doenças e seus determinantes, de medidas que vão além da clínica médica (Nunes, 2006).

A Organização Mundial da Saúde em 1948 definiu saúde como “[...] um estado de completo bem-estar físico, mental e social, não consistindo somente da ausência de uma doença ou enfermidade” (OMS, 2002, p.30) corroborando um posicionamento mundial institucional desde então, no sentido de ampliar o conceito de saúde, imprimindo-lhe maior complexidade do que somente a ideia de “oposto de doença”. Um avanço, embora não suficiente para dirimir a polêmica sobre a relação entre saúde e doença.

Desde o final dos anos sessenta, intensificou-se a polêmica sobre o caráter da doença. [...] se a doença é essencialmente biológica ou, ao contrário, social. Ocorre, assim, um questionamento profundo do paradigma dominante da doença que a conceitua como um fenômeno biológico individual. As razões do aparecimento ou, melhor dizendo, do ressurgimento desta polêmica devem ser buscadas tanto no desenvolvimento da medicina, como na sociedade com a qual ela se articula (Laurell, 1982, p.2).

A ampliação da noção de saúde pretendida pela terminologia processo saúde-doença proposta entre outros por Laurell (1982) e Rezende (1986), se deu mais intensamente a partir do início dos anos 70 no Brasil com: 1) o reconhecimento das contradições do modelo de Saúde Pública Desenvolvimentista - que postulava que um dos efeitos do crescimento econômico seria a melhoria das condições de saúde, o que não se mostrou na prática; e 2) com a intensificação das evidências, segundo Nunes (1994), de que “os fatores estruturais e conjunturais associavam-se para marcar a premência de um repensar a saúde em uma dimensão ampliada” (p. 15). Segundo o autor “os anos iniciais da década de 70 [viriam a ser] extremamente férteis em discussões teóricas sobre as relações saúde-sociedade” (p. 12), embora, “especificamente em relação às contribuições das ciências sociais, [...] há antecedentes, desde os anos 40, de investigadores que procuraram pesquisar fatores sócio-culturais da saúde” (p. 17).

Concomitante à ampliação das compreensões sobre o processo saúde-doença, tem-se o percurso histórico e político que culminou com a normativa de que a assistência em saúde constitui um direito social. Um marco, entre outros, na Declaração de Alma-Atá, na década de 70, que sistematizou esse “consenso mundial”. Se a saúde é um direito social, portanto, um direito humano, há a responsabilidade dos Estados em sua proteção e recuperação, mediante a criação de sistemas públicos de saúde. No Brasil isso se deu entre as décadas de 70 e 90, com os movimentos sociais em prol de diversas reivindicações no plano da cidadania, entre elas pelo acesso às ações e programas de saúde pública, que culminaram na aprovação de leis que instituíram nosso atual Sistema Único de Saúde, o SUS. O momento era de mobilização pela redemocratização do país, a retomada dos direitos políticos cerceados no período da ditadura militar, e a construção da cidadania plena que convergisse para a tão sonhada justiça social (Carvalho, 2001). Esses anseios foram representados na Constituição Brasileira de 1988 que consolidou legalmente os direitos civis, políticos e sociais, dentre esses o direito à saúde. Note-se que desde a Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU, em 1948, os direitos sociais já eram reconhecidos como direitos humanos (Telles, 2006). O artigo 196 da Constituição Brasileira diz que

[...] a saúde é direito de todos e dever do estado, garantindo mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

Ou ainda, segundo a lei 8080 de 1990:

Art. 2º - A saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício.

Art. 3º - A saúde tem como fatores determinantes e condicionantes, entre outros, a alimentação, a moradia, o saneamento básico, o meio ambiente, o trabalho, a renda, a educação, o transporte, o lazer e o acesso aos bens e serviços essenciais; os níveis de saúde da população expressam a organização social e econômica do País.

Compreendendo os direitos humanos, sua relação com a saúde e com as vulnerabilidades ao adoecimento

O pensamento do senso comum de que “as doenças ou problemas sociossanitários não vêem sexo, cor, classe social ou nacionalidade” contribui para a crença ilusória, quando não ideológica, de que todas as pessoas têm as mesmas chances de adoecerem, de permanecerem saudáveis, de se recuperarem ou de terem alguma qualidade de vida apesar de viverem com alguma doença crônica, independentemente dos países, regiões em que vivem e de suas condições de vida. Ao contrário disto, estudos têm mostrado que “populações que não têm seus direitos respeitados e garantidos, têm piores perfis de saúde, sofrimento, doença e morte [...] [e que] a atenção em saúde, quando acessível e de boa qualidade, pode garantir a realização do direito à saúde e à vida” (França-Júnior & Ayres, 2003, p.4 e 5).

Segundo Carvalho (2001) os direitos que integram o conjunto dos direitos humanos são: os direitos civis (à vida, à integridade física, à segurança, à liberdade de ir e vir, ao tratamento digno, à igualdade, à não discriminação, a expressar opiniões, à propriedade, ao acesso à justiça); os direitos políticos (organizar partidos, votar, eleger representantes, ser votado); os direitos sociais (à educação, ao lazer, à cultura, ao trabalho, a um salário justo, à proteção social, à aposentadoria, à previdência social, ao atendimento de saúde e o acesso aos recursos para mantê-la). Esse conjunto de direitos, quando garantido, “na prática”, expressa o que se convencionou chamar de cidadania plena ou condição de bem-estar social. Do ponto de vista normativo “todo o arcabouço político e jurídico dos direitos humanos deriva da máxima expressa no art. 1º da Declaração Universal dos Direitos Humanos ‘Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos’ ”(Ciconello, 2012, p.80).

Telles (2006) ressalta os embates na realidade social brasileira, marcada pela pobreza e pela desigualdade social, na constituição real da cidadania plena, em meio aos imperativos de uma economia globalizada. Ela é contrária à assunção da impotência frente ao capitalismo mundial e à resignação frente às violações dos direitos sociais na sociedade regida pela lógica de mercado, com insuficiente intervenção do Estado na proteção dos direitos. A autora propõe

tomar os direitos sociais como cifra, pela qual problematizar os tempos que correm e, a partir daí, quem sabe, formular as perguntas que correspondam às urgências que a atualidade vem colocando [...] (uma) reflexão para colocar à prova o sentido crítico e questionador que a linguagem dos direitos contém, ou pode conter, desde que a consideremos como um modo de descrever e nomear a (des) ordem do mundo que põe em cena as aporias das sociedades modernas – e da nossa própria atualidade (Telles, 2006, p.176).

Esmiuçando mais especificamente a relação entre Direitos e Saúde, com base nas formulações de Jonathan Mann e de seus colaboradores, França-Júnior e Ayres (2003) sistematizaram três conjuntos de relações entre Saúde Pública e Direitos Humanos. O primeiro conjunto se refere à reciprocidade entre saúde e direitos humanos, ou seja, o impacto das violações e da promoção dos direitos humanos sobre a saúde de indivíduos e populações e, inversamente, o impacto das ações de saúde sobre a violação e/ou a promoção de seus direitos. O segundo conjunto expressa a responsabilidade do Estado perante o respeito aos direitos, que não os protege ao não implementar condições legais, administrativas, orçamentárias e assistenciais para garantir, proteger ou promover os direitos humanos. Por fim, o terceiro está relacionado à avaliação das condições a serem satisfeitas no caso de uma necessidade de saúde pública implicar a suspensão temporária (derrogabilidade) de um determinado direito humano. São direitos inderrogáveis, o direito à vida, a não ser discriminado, a não ser torturado, entre outros.

Embora seja instrumental e relevante analisar outros agravos de saúde segundo a noção de vulnerabilidade, é propriamente no campo da epidemia da aids e das reflexões sobre a prevenção das infecções pelo HIV que ela tem se desenvolvido mais densa e sistematicamente. Não faremos aqui um histórico aprofundado do conceito de vulnerabilidade, pois o leitor pode encontrá-lo em textos consagrados (Ayres & França-Júnior; 1999; Ayres et al., 2003).

[...] [o conceito de vulnerabilidade] pode ser resumido justamente como esse movimento de considerar a chance de exposição das pessoas ao adoecimento como a resultante de um conjunto de aspectos não apenas individuais, mas também coletivos, contextuais, que acarretam maior suscetibilidade à infecção e ao adoecimento e, de modo inseparável, maior ou menor disponibilidade de recursos de todas as ordens para se proteger de ambos [...] é aplicável, rigorosamente, a qualquer dano ou condição de interesse para a saúde pública [...] (Ayres et al., 2003, p.123 e p.118).

Por sua vez, o Quadro da Vulnerabilidade e Direitos Humanos (V&DH), nesses termos, emergente no campo da Aids, tem se expandido para outros agravos, num paradigma ampliado de saúde, compreendida como processo saúde-doença, conforme descrito acima. O quadro avança da acepção inicial do conceito de vulnerabilidade que, por sua vez, já integrava os direitos humanos em seus planos: social e programático (Ayres et al., 2003) e se investe de uma aspiração reconstrutiva das práticas de saúde e gestão dos programas, na direção deles se tornarem “mais capazes de responder às suas responsabilidades com eficácia e eficiência instrumentais, compromisso político com a justiça social e respeito às pessoas em suas singularidades e valores” (Ayres, Paiva & Buchalla, 2012, p.10). Busca explicitar, analisar e agir sobre experiências individuais e coletivas, cujas circunstâncias de proteção/promoção versus violação/negligência dos direitos humanos têm implicações sobre os processos de saúde-doença.

A referência dos direitos humanos permite analisar situações de vulnerabilidade ao HIV/Aids no plano individual, social e programático, levando em conta as relações de gênero e poder, sexismo e homofobia, racismo e pobreza; pode também orientar o planejamento, a organização e avaliação de serviços (Paiva, Pupo & Barboza, 2006, p. 110).

O quadro da V&DH integra as bases teórico-metodológicas do estudo cujos resultados são objeto do presente artigo. Ao estudar relações sociais e agravos em saúde em comunidades litorâneas, partiu-se da compreensão de que as suscetibilidades dos/as jovens aos agravos em saúde sexual e a suscetibilidade a sofrerem violações de seus direitos, se distribuem desigualmente entre os gêneros, países, regiões, segmentos sociais, grupos étnicos e faixas etárias - assim como sua contra face - ou seja, os recursos expressos no grau de autonomia, emancipação dos indivíduos e em suas condições político-sociais para o enfrentamento e as resoluções das problemáticas que produzem tais suscetibilidades. As diferentes condições de vulnerabilidade se produzem na medida em que nos diferentes cenários socioculturais, diferenças entre pessoas e populações se convertem em desigualdades de cidadania.

 

MÉTODO

Participantes

Participaram do estudo 12 jovens (06 moças e 06 rapazes). As idades das jovens variaram de 17 a 22 e dos rapazes de 21 a 24 anos. Todos eram moradores de uma cidade turística litorânea no estado do Rio de Janeiro e atuavam no segmento turístico como guias e monitores ambientais; faziam “bicos”, pois não tinham um emprego formal, não eram autônomos, nem cooperados. Alguns realizavam, simultaneamente, outros tipos de trabalhos. Somente duas moças e um rapaz tinham empregos com registro em carteira de trabalho. As condições socioeconômicas e sociais dos jovens entrevistados na comunidade estudada não diferem da maioria dos jovens brasileiros situados nas camadas sociais inferiores.Villela e Doreto (2006) destacam que no grupo de 10 a 20 anos, que representa aproximadamente 21% da população do Brasil, apenas 20% pertencem às categorias A e B e 50% são pobres ou extremamente pobres. A população entre 15 e 20 anos atinge, em média, entre seis e oito anos de estudo, com expressivas diferenças regionais e entre brancos e negros. A taxa de analfabetismo entre jovens negros é o dobro da dos brancos, e quatro vezes maior quando se considera a faixa etária de 10 a 14 anos.

Na pesquisa mais abrangente também foram entrevistados profissionais de saúde da rede de serviços de atenção primária (um da medicina, três da enfermagem e seis agentes comunitários de saúde), assim como observações de campo durante o funcionamento dos serviços de saúde. O objetivo foi investigar as interações entre jovens e profissionais de saúde, e o perfil da assistência ofertada em saúde sexual e reprodutiva. Os resultados completos são objeto de outras publicações (Bellenzani, 2008; Bellenzani, Santos & Paiva 2012), sendo aqui comentados pontualmente naquilo que esclareçam e complementem as análises desenvolvidas neste trabalho.

Procedimentos

As narrativas dos participantes da pesquisa, objeto de análise desse trabalho, foram obtidas por meio de entrevistas individuais semiestruturadas, conduzidas por entrevistadores do mesmo sexo dos entrevistados, com uso de um roteiro; foram gravadas em áudios e transcritas na íntegra. Os depoimentos dos entrevistados foram explorados pelos entrevistadores a partir da metodologia das cenas que, segundo Paiva (2012) “inclui o levantamento, a descrição e decodificação de cenas, seus cenários e contextos socioculturais [...] [e] pode contribuir para a compreensão densa da dinâmica cotidiana e de suas determinações sociais [...]” (p.165). Os entrevistados são concebidos como “sujeitos de direitos em cena” (p.169). “As cenas da vida cotidiana são a porta de entrada mais interessante para a análise da vulnerabilidade” (p.175) e “a dimensão individual [da vulnerabilidade] está inextrincavelmente integrada à programática e à social” (p. 187).

As narrativas são investigadas na forma de solicitações do tipo: “_ Me conte essa experiência como se fosse uma cena de novela, o lugar, os personagens, o que acontecia...”. Elas possibilitam que os participantes do estudo expressem suas experiências cotidianas, ou melhor, a subjetivação dessas experiências em termos de uma narrativa pessoal que dá sentidos ao próprio cotidiano e aos modos instituídos de interações sociais (eu-outros), baseadas no compartilhamento de códigos de comportamento e de expectativas de scripts de ação/interação, no plano intersubjetivo (Paiva, 2006). A análise de cenas e cenários explicita os aspectos contextuais que alicerçam as produções intersubjetivas tais como padrões de relações sociais entre população local e turistas, circunstâncias materiais, socioculturais e de cidadania das pessoas, que por sua vez integram os planos social e programático da vulnerabilidade aos agravos sexuais e às violações de direitos no exercício da sexualidade. O convite aos leitores é que exercitem a habilidade de analisar cenas narradas sobre situações cotidianas de sociabilidade entre pessoas de grupos sociais distintos: os/as jovens residentes em uma comunidade turística e os/as turistas que visitavam o local. E de reconhecer quais são, entre o conjunto dos direitos humanos, aqueles que “estão em jogo”, nessas interações.

Destacamos que as narrativas “em cena” expressam produção se sentidos sobre experiências concretas, portanto não são indicadores objetivos de bem-estar social. Entretanto, algumas afirmações do trabalho sobre o contexto geral de vida desses jovens e sobre sua cidadania se respaldam em etapa exploratória do trabalho de campo que incluiu: a) contatos com gestores, trabalhadores de saúde, do tradde turístico e com moradores locais; b) busca de informações no site oficial da prefeitura sobre a presença e a extensão de ações, programas e políticas nas áreas de saúde, educação e administração turística local. Identificou-se satisfatória aproximação entre essas fontes e as narrativas dos jovens. O estudo partiu, portanto, da premissa de que “várias instâncias sociais [estão] concorrendo para a constituição de fenômenos que analiticamente são atribuídos a uma área (sexualidade, saúde sexual e reprodutiva) e/ou a uma etapa (adolescência ou juventude), isoladas da vida em sociedade” (Rioset al., 2002, p.53), o que constitui um equívoco ou um reducionismo.

Na perspectiva de psicologia social adotada nesse trabalho, as narrativas pessoais complementadas com dados secundários da localidade pesquisada, são tomadas como “totalidades compreensivas, nas quais os significados dos diversos aspectos individuais, sociais e programáticos implicados na exposição à infecção e adoecimento sejam sempre mutuamente referidos” (Ayres, Paiva & Buchalla, 2012, p.13). Pretende-se compreender pessoas e seu cotidianos

na intersecção de sua história com a história de sua sociedade. Abandonar, portanto, a dicotomia indivíduo-sociedade retomando, em uma nova base, o debate sobre a autonomia relativa das esferas social e individual sem cair no reducionismo sociologizante (quando o indivíduo é visto como produto do mundo social que o cerca) ou psicologizante (quando, em última análise, o indivíduo é visto como um ser autônomo, produto da dinâmica de suas características individuais (Lane, 1984 citada por Spink, 1992, p.127).

 

RESULTADOS

Discorrer sobre os impactos socioambientais negativos do turismo sobre a saúde e as comunidades (Santos, 2008), um dos resultados da pesquisa realizada, extrapola as possibilidades do presente trabalho, assim como descrever as características socioculturais do cenário praiano que ampliam a vulnerabilidade dos jovens locais aos agravos em saúde sexual, como as doenças sexualmente transmissíveis, a gravidez não planejada e o envolvimento com o mercado sexual, abordados em outros trabalhos (Bellenzani, 2008; Bellenzani, Blessa & Paiva, 2008; Blessa, 2008).

Priorizamos apresentar alguns trechos das entrevistas com jovens, nos termos locais chamados de jovens caiçaras, para ilustrar o debate proposto: sobre cidadania, direitos e ampliação da vulnerabilidade no processo saúde-doença – cuja linguagem se mostra aparentemente áspera e abstrata. Isto, para possibilitar a visualização da dinâmica que opera nas cenas e cenários cotidianos, da ótica dos entrevistados.

Identificou-se que a desigualdade social era expressiva entre os/as jovens moradores/as das comunidades estudadas (todos integrantes das camadas populares) e os/as turistas dessa localidade, cujo nível socioeconômico era elevado, tanto no caso dos estrangeiros como dos brasileiros. Isto contribuía para a construção de um cenário de relações fortemente marcado pela desigualdade entre os dois segmentos populacionais – moradores e turistas – no acesso à renda, aos bens culturais, de lazer e consumo, bem como aos direitos como educação, trabalho e renda.

Na cidade pesquisada não havia políticas ou ações significativas focadas no desenvolvimento social, proteção dos direitos e prevenção aos impactos negativos do turismo sobre a saúde da população, no caso a saúde sexual, de acordo com o que pudemos observar e coletar a partir de depoimentos de gestores da prefeitura municipal e das entrevistas com os dez profissionais da Estratégia Saúde da Família. Esses, apesar de reconhecerem eventuais impactos do cenário turístico, com intensa presença de estrangeiros, sobre a sexualidade e a saúde sexual e reprodutiva dos jovens (por exemplo, aumento no número de partos nos meses de outubro e novembro, coincidindo com período de “temporada” do verão e carnaval; ou intensificação da prostituição), negavam que ocorressem ações de educação e prevenção específicas, estruturadas e contínuas, o que evidenciava a vulnerabilidade programática.

Algumas reflexões sobre a proteção dos direitos humanos, em especial os direitos sociais de crianças e jovens em comunidades turísticas, e seu efeito positivo sobre a diminuição de suas vulnerabilidades em saúde sexual podem ser encontradas em Bellenzani e Paiva (2009). Os dados sugerem que as relações sociais entre jovens locais e turistas são por vezes assimétricas, hierárquicas, mercantilizadas e marcadas pela desigualdade e pela iniqüidade no acesso aos direitos sociais, o que traz conseqüências ao (não) exercício pleno dos direitos civis (garantia de liberdade, autonomia, dignidade e integridade). Essa conjuntura se agrava e reverbera em piores níveis de qualidade de vida na medida em que os direitos sociais dessa população também não são garantidos, em especial aqueles que demandam políticas públicas, como acesso à saúde, educação, trabalho e cultura. Essa conjuntura, segundo apontam os dados da pesquisa em questão, amplia a vulnerabilidade dos jovens caiçaras, garotas e rapazes, ao sexo sem preservativo, ao abuso, à exploração sexual e ao aliciamento para o mercado sexual, questões consideradas no espectro da saúde sexual e reprodutiva, assim como dos direitos sexuais e reprodutivos. Os dados a seguir ilustram essa afirmativa.

Pouca proteção do direito à educação, à profissionalização e ao trabalho

Os dados qualitativos, como o depoimento a seguir, demonstram como a vivência de uma cidadania restrita ou marcada por desigualdades atravessa a vida dos moradores e constituem substratos para seus processos subjetivos e intersubjetivos, entre estes suas visões sobre si mesmos, suas vidas e sobre suas comunidades, aspectos que se configuram na intersecção dos planos individual e social da vulnerabilidade.

Trabalhamos com a pesca. E baixa temporada é assim, o que a gente tem a gente ganha com a pesca. Alta temporada, a gente deixa a pesca de lado e vai trabalhar com turismo que tem mais recurso. Eu moro com a minha mãe, com meu pai, [...] ainda não tenho casa própria, moro com a família ainda. Não sou muito independente ainda apesar de ter quase 25 anos já. (jovem do sexo masculino, 24 anos, ensino fundamental incompleto, pardo).

Esse jovem assim como os outros, exceto um rapaz, residiam com a família de origem e dependiam significativamente desta para o sustento pessoal. O rapaz retoma a reflexão acima sobre sua trajetória educacional prejudicada pela necessidade de trabalho no seio familiar, levando ao ingresso precoce ao mundo do trabalho na área de construção civil, caracterizada pela pouca necessidade de qualificação formal.

Parei de estudar lá na sétima série. Porque estava em construção a casa, então muito trabalho. Chegava da escola umas duas horas da tarde e quando saia pra escola era umas seis horas da manhã. Chegava umas duas horas da escola e já emendava no serviço, acordava cansado no dia seguinte pra ir pra escola. Cansado, muito cansado, aí já [...]. Tinha dia que eu nem acordava, aí, nem ia estudar [...]. Eu era pedreiro, era servente de pedreiro. (jovem do sexo masculino, 24 anos, ensino fundamental incompleto, pardo).

Do ponto de vista de uma das garotas, vejamos sua avaliação da comunidade onde vive e as implicações de seu local de moradia em sua trajetória educacional:

Ah, é legal, é boa [a vila onde ela mora, numa praia na região rural, onde não há acesso por estrada] só que falta muita oportunidade também, de trabalho, de estudo, de [...]. Ah, deixa eu ver [...]. Ah, mas é legal. A gente vive bem, só o que falta mesmo é estudo, oportunidade de o pessoal estudar [...]. Que aqui, termina a 5ª série, ninguém vai mais pra escola, isso é um absurdo. Porque é falta de oportunidade também do pessoal ter um [...]. Sei lá, se tivesse uma estrada, talvez o pessoal, as crianças iam estudar. (jovem do sexo feminino, 20 anos, ensino fundamental completo, negra).

Vale informar que a comunidade em questão, conta somente com uma escola pública que oferece as séries iniciais do Ensino Básico (até a antiga quarta série, atual quinto ano). Para cursar esse ciclo completo e o Ensino Médio, as/os adolescentes dessa comunidade têm que caminhar por uma trilha, por aproximadamente uma hora, e ainda seguir de ônibus por mais trinta quilômetros até o centro da cidade.

A associação entre desemprego ou dificuldades de obtenção do próprio sustento e a saúde sexual de jovens de camadas populares não é uma discussão nova, já foi realizada, por exemplo, por Calazans (1999). A falta de políticas que protejam o direito ao trabalho e a não promoção do direito ao trabalho digno aumentam a vulnerabilidade da juventude das comunidades às interações que envolvam trocas sexuais (Moraes, 1998) com as pessoas de fora, geralmente de nível socioeconômico superior. Tais interações podem em algumas circunstâncias expressar subalternidade e dependência da população local ao fluxo de turistas, quando, por exemplo, os informantes dizem que sem os turistas não há trabalho, que se não fosse o turismo muita gente ia passar fome, entre outros comentários recorrentes nas entrevistas.

Direito ao lazer e à cultura são pouco promovidos. O desejo pelo mundo dos turistas

A seguir temos os depoimentos de duas garotas, expressando suas motivações e os significados associados ao desejo de interação social com os/as turistas.

Eu vejo isso como uma coisa boa [o contato com turistas e o turismo] Eu acho legal, que é uma oportunidade para as pessoas que moram, que ficam só ali naquele mundinho, sem muitas coisas, só vivem ali, daí acabam passeando, trocando passeio. _ Eu vou morar na sua casa, você vai na minha [...] poder ir pra outros países [...]. Acho legal, eu acho bom [...]. Porque pra gente, falta muita coisa, diversão, conhecimento [...]. (jovem do sexo feminino, 21 anos, ensino médio completo, branca).

Tem umas amigas que, nossa! Só fica, só se for gringo [...]. Tem que falar enrolado [...] vai vê que é por que... Ah, elas gostam porque ele leva pra jantar [...] Talvez seja mais romântico né, tomar bons vinhos. Talvez interesse de ir embora também, né? [...] Tive várias amigas assim que também começaram a namorar com gringo e foram embora. Então [...] A galera se ilude, né? (jovem do sexo feminino, 21 anos, ensino médio completo, negra).

O depoimento da segunda jovem evidencia o sentido da interação afetiva com homens turistas, entre outros, o de abrir um leque de oportunidades para a própria vida que compensem ou supram as faltas vivenciadas ou assim representadas, mesmo que isso implique a mudança de país.

A vida dos/as jovens é atravessada pela percepção da diferença e da desigualdade social durante as interações com as pessoas de fora. No polo da alteridade comparam a si mesmas e à própria vida com a vida dos turistas; nessa equação aquilo que é local é desvalorizado e significado como restrição de horizontes e de possibilidades potenciais, viver no mundinho. Isso se mostrou mais presente nas narrativas femininas. Os rapazes turistas nessas comunidades tendem a introduzir as garotas caiçaras em estabelecimentos de entretenimento e lazer organizados, principalmente, para atender à clientela turística e não à população local, pelo seu alto custo. Ou, ainda, seus convites proporcionam experiências pouco acessíveis a sua classe social, como passeios em iates particulares, bens valorizados pela sociedade de consumo e acessíveis para poucos.

Mas, eu prefiro me envolver com os turistas de [nome da cidade, região urbana, onde se concentram os turistas de maior poder aquisitivo] que são gringos, são bem interessantes; de pagar todas, de chamar a gente para ir nas ilhas, no outro dia passear de barco, isso a gente faz muito. Nossa, a gente conhece muito gringo aqui (...)! E eu... A minha irmã então, louca por gringo. A gente adora conhecer eles (...) (jovem do sexo feminino, 20 anos, ensino fundamental completo, negra).

Ao refletirem sobre as interações sociais e os contatos que estabelecem com as pessoas de fora de suas comunidades (turistas de ambos os sexos), os/as jovens percebem a vida dos turistas como uma vida que contrasta com a sua, sendo esta desfavorável e inferior. O turista é “mais rico”, “pode mais”, “tem vida boa”. Maior ainda é a distância social entre brasileiros e estrangeiros e estes são visto como economicamente mais abastados ainda.

A jovem que reside na zona rural cujo acesso ao centro é somente a pé por trilha ou pelo mar, e que julga haver falta de oportunidades de estudo em sua comunidade (depoimento apresentado acima), constrói seus planos sobre sexo, namoro, casamento e família com base nessas percepções dos contrastes socioeconômicos, alimentados, também, pelo sonho de romper as restrições sociais, culturais e educacionais reais experimentadas na vida cotidiana. Isso se repetiu nas narrativas das outras entrevistadas.

[...] Eu não tenho namorado aqui [...]. Homens daqui, assim, eu não fico. Eu costumo mais ficar com cara de fora mesmo, assim, né? Porque, sei lá, não me interessa nenhum caiçara daqui, não me interessa assim [...] de ficar. Já fiquei, assim, mas [...]. Não de querer casar, de ter filhos aqui, não sei. (jovem do sexo feminino, 20 anos, ensino fundamental completo, negra).

Nesse sentido, há um interesse das garotas pelos rapazes ou homens mais velhos que estão temporariamente em sua comunidade, uma espécie de fascínio pelo seu mundo “mais colorido” que contrasta com as poucas possibilidades de entretenimento, lazer, educação, cultura e trabalho para jovens de comunidades com investimentos insuficientes nessas áreas.

As implicações intersubjetivas do cenário turístico sobre o exercício da sexualidade

Esse fascínio pelo turista e por aquilo que ele pode vir a proporcionar mostrou-se, segundo as entrevistas, “concorrer” com a idéia de se prevenir das DST/HIV ou até mesmo como mobilizadores do desejo pela gravidez ou do sexo sem proteção. Seja por não pensar em camisinha na hora, seja pela aura de romantismo que envolve o sexo com o “príncipe”, pelo clima de paixão e pelo status superior da relação com um turista quando ele se torna um namorado ou alguém com que se está “ficando” durante a temporada de verão. É o caso de uma das jovens que nos contava a respeito de sua primeira relação sexual, vivida com um rapaz turista que passou a morar na cidade.

A minha primeira vez foi com um turista! Ele estava morando aqui. Ele morava [...] na casa da minha irmã, de aluguel, e a gente se envolveu, ele tava há um ano e pouco [...] Nem passou pela minha cabeça (usar o preservativo). Na época, eu nem pensei nisso, na importância. Mas foi um risco que eu corri (...) de pegar uma doença mesmo, porque a gente não conhecia ele [...]E acabei me envolvendo com ele. Acabei me apaixonando. Me apaixonei, gostei [...]

Além da paixão, emergiu de modo recorrente nas entrevistas de ambos os sexos, o uso do preservativo inicialmente, nas primeiras relações sexuais entre os parceiros, e sua suspensão, conforme a intimidade e a confiança na pessoa vão aumentando, durante o namoro de verão entre jovens locais e jovens turistas.

no trabalho mesmo [como guia turístico ou monitor ambiental] a gente conhece o pessoal, aí já marca pra noite e acaba rolando. O que acontece muito é que você conhece uma mina bonitinha... Primeira vez usa camisinha, segunda vez usa camisinha, terceira vez você acha que já conhece a menina, a menina é legal, pá, já vai sem [camisinha]. E assim vai indo, acontece muito. Você olha assim: “a menina é maior gatinha, não deve ter nada”. Primeira noite vai, segunda noite vai, terceira já: “a conheço a menina já”. Você conhece a menina no seu trabalho... A gente trabalha com a praia, com o turismo. Conhece ali, dali já marca pra noite e assim vai. Às vezes na comunidade mesmo rola uma festinha, chama um pessoal diferente... [...] (jovem do sexo masculino, 24 anos, ensino fundamental incompleto, pardo).

Os significados atribuídos ao encontro (paixão, romantismo, curtição, diversão, novidades) ou ao parceiro/a (namorado, pessoa de confiança, príncipe, gatinha) se articulam às sensações de inferioridade ou subalternidade (“ter menos” ou “ser menos”) das pessoas locais, caiçaras, em relação aos turistas. Mais presente, possivelmente, em contextos de piores indicadores sociais, a vivência intersubjetiva da inferioridade pode favorecer relações de subserviência e submissão de um grupo social na relação com outro, comprometendo o exercício da cidadania, da autonomia de decisão e de relações sóciossexuais mais horizontais, negociadas entre pessoas de “igual valor”. Por vezes, essas dimensões psicossociais e sociológicas parecem estar na base de algumas problemáticas ligadas à sociabilidade entre turistas e moradores locais em comunidades turísticas e devem ser objeto de atenção de programas direcionados à proteção social de adolescentes e jovens frente aos mercados da prostituição e da exploração sexual que integram o chamado turismo sexual. As circunstâncias de escassez social e desigualdade, numa sociedade de extremo desejo de consumo, impedem ou dificultam a experiência dos jovens de se sentirem igualmente sujeito de direitos e sujeitos sexuais (Paiva, 2006) quando se comparam às pessoas de fora.

Eu acho que acontece bastante [prostituição nas comunidades]. Rola, porquedo dinheiro. Às vezes a menina não tem trabalho, não tem pai ou a mãe que dá dinheiro, e ela precisa desesperadamente, porque ela viu uma coisa que gosta e ela quer, e ela fica pensando: “_ Ah, vou me prostituir, porque eu ganho dinheiro fácil” [...] Só que ela não é pobre. Ela tem pai, tem mãe, tem dinheiro. Só que mesmo assim, ela quer algo mais do que a mãe e o pai podem dar, então ela se prostituiu. (jovem de 21 anos, sexo feminino, ensino médio completo, branca).

Vulnerabilidade das garotas e dos rapazes à violação do direito à dignidade, liberdade e integridade: riscos do mercado sexual

Na tentativa de se relacionarem com homens turistas, muitas vezes as experiências adquirem conotação de exposição às situações opressivas e de caráter exploratório, ou mesmo ofensivas. Segundo a ótica de todas as entrevistadas, elas não gostam de ser confundidas com garotas de programa. O fato de desejarem obter vantagens materiais na interação com turistas, não implica necessariamente na posição de profissionais do sexo para a maioria delas.

Em algumas dessas ocasiões, seus direitos civis ficam em risco, estando os turistas na posição de iminentes violadores de seus direitos, ao interpretarem de modo machista que se as garotas estão a fim de aproveitarem, elas se interessariam por programas sexuais, por drogas e álcool, ou ainda, que merecem menos respeito como cidadãs. Essas considerações nos auxiliam a compreender a vulnerabilidade das garotas, principalmente negras e pobres, ao mercado sexual e à exploração sexual, ilustrado pela narrativa a seguir:

Ele achou que a gente era mulher de programa porque a gente estava paquerando e olhando ele sabe? E ele tava sozinho no bar [...] e chamou a gente para ir na pousada, e a gente foi! [...] Não era muito novinho não [...] já, mais para coroa. Ele achou que a gente tava paquerando ele, nós três juntas, ele achou que a gente queria, não sei, dinheiro [...]. Ele falou que dava o dinheiro que a gente quisesse pra ficar com ele. As três juntas. [...] Tava a fim de pagar o dinheiro que a gente quisesse [...]. Ofereceu dinheiro mesmo. (jovem do sexo feminino, 20 anos, ensino fundamental completo, negra).

Para as garotas, a idéia de aproveitar o contato com turistas homens para acessar bens de consumo, situações de lazer/prazer, mudanças de vida, e não necessariamente a obtenção imediata de dinheiro, atravessa o exercício de sua sexualidade, constituindo-se como um aspecto relevante no plano da vulnerabilidade social às diferentes formas de exploração, entre elas a sexual, com subseqüentes riscos à sua dignidade e integridade pela violência a que ficam expostas, caso as situações evoluam para conflitos. Intensificados pelo abuso de álcool e drogas ilícitas, podem produzir-se desacordo, desencontro de interesses e expectativas, e conseqüentes frustrações - olhar insistentemente para o turista, paquerando-o e ir à pousada é interpretado por ele como possibilidade de sexo a três, entretanto diante da proposta a jovem se sentiu ofendida, “aproveitada” e negou o convite. Explicou à entrevistadora:

[...] ele achou que a gente queria, não sei, dinheiro... Ele achou estranho (que as três estivessem paquerando ele ao mesmo tempo). A gente queria mesmo conhece e leva ele pro barzinho, tipo, pagar, pagar todas pra gente. A gente queria mais isso mesmo, se aproveitar, e ele que se aproveitou da gente. Ofereceu lá um dinheiro: “pra ver se é isso que elas querem”.

Mostra-se tênue, portanto, a fronteira entre o exercício da autonomia na busca por experiências prazerosas (com “escolher” se relacionar com homens gentis, bonitos e inteligentes) e o engajamento num jogo de interesses e trocas de sexo por lazer e entretenimento, o que pode ampliar a vulnerabilidade à exploração ou abuso sexual. Somente uma das jovens, mesmo em dúvida, associava interesse e ganhos materiais ao “ficar” com o turista à prostituição.

(...) Assim, eu acho que você gostar de gringo é uma coisa. Agora você, sei lá, querer uma troca para ficar com ele, já é uma outra coisa. Você gostar deles, porque eles são gentis, tudo bem. São uns caras bonitos, inteligentes. Mas a partir do momento que você aceitou uma coisa para ficar com ele, é diferente. Ah, eu acho que se envolve meio que interesse, é prostituição de uma certa forma. (jovem de 21 anos, sexo feminino, ensino médio completo, branca).

Para os rapazes caiçaras, o acesso aos bens de lazer e entretenimento não se mostrou tão mobilizador de seus interesses pelas garotas e mulheres turistas, como observado com as garotas locais em relação aos homens e aos rapazes turistas, havendo, portanto, uma vulnerabilidade distinta ao mercado sexual, de acordo com o gênero. Havia, no entanto, semelhanças entre a vulnerabilidade masculina e a feminina no que se refere à interação dos rapazes com as mulheres turistas mais velhas, especialmente as estrangeiras, referidas como as tias. As iniciativas de abordagens explícitas envolvendo trocas sexuais (hospedagem em hotel, jantares) ou pagamento em dinheiro por sexo não eram das garotas turistas jovens e sim das mulheres mais maduras.

A vulnerabilidade dos rapazes ao mercado sexual e ao envolvimento em relações de exploração, desrespeitos ou acuações mostrou-se mais frequente na interação com homens gays ou que fazem sexo com homens, em especial no caso de jovens negros na interação com turistas estrangeiros. Recebiam convites para programas sexuais e, também, para participação em práticas sexuais menos convencionais como sexo grupal, voyeurismo a produção de filmes pornográficos, segundo relatos dos informantes.

me chamou num canto e me convidou: “_ Se você quiser ganhar dinheiro, eu venho aqui te buscar. A gente tá fazendo um filme pornô pra levar lá pra Bélgica, [...] clandestino. Ele fazia a fita aqui e levava lá pra Bélgica, dentro do galpão. Eu nem cheguei lá. Aí ele me convidou, aí eu falei pra ele assim, quanto tu vai me pagar por hora? [...]. Ele: “_ Não, durante meia hora tu ganha cinqüenta reais. Falei: “_ Nossa, tá bom de mais” (risos). Aí ele falou assim que não era pra fazer sexo, era só pra fingir. Eles queriam que eufizesse sexo numa cachorra. [...] Aí chegou na hora e eu falei: “_ Vou não.” Aí quando a gente foi lá [...] Aí ele me chamou dentro do galpão. Dentro do galpão tinha uma égua, tinha um cachorro, uns viado, a mulher dele, uma câmera grandona de filmadora, um som grande e bebida lá era o que não faltava. E ficava lá. Aí eu falei: “_Cavalo bom, que esses cavalos tão fazendo aqui?” “_ Então, é pra fazer esse negócio, de filme pornô”. Só que os caras já tinham feito. Aí ele falou: “_ Você até perdeu, perdeu seu dinheiro”. Aí eu falei: “_ Não esquenta não, eu mesmo não vou ver minha fita, ceis vão levar lá pra Bélgica, pra vender” [...] Aímorreu ali mesmo e fui embora [...](jovem do sexo masculino, 24 anos, ensino fundamental incompleto, negro).

Acerca da categoria cor/etnia é importante destacar que esta apareceu como estruturante tanto de relações heterossexuais, como homossexuais, articulando-se às expectativas de gênero e à categoria nacionalidade (brasileiro-estrangeiro). A negritude da mulher brasileira, - com todos os significados associados: “mais caliente”, com “mais gingado” - é tida como atributo que atrai, “fascina”, “pira” o turista estrangeiro, caracterizado pela branquitude, e por ser meio “bobão”, interessado em gastar a maior grana com diversão, na companhia de garotas e mulheres diferentes do perfil que ele está acostumado. A negritude do rapaz caiçara também se mostrou com valor simbólico dentro da sociabilidade e das trocas sexuais. Além do porte atlético, ser negro corrobora a imagem de virilidade e exotismo, que se transfigura em erotismo, na relação dos jovens caiçaras com turistas homens ou mulheres, descritos, de modo geral, como brancos e de status social elevado, portanto diferentes dos informantes.

Há indicativos de que a vivência contínua por parte de alguns sujeitos (e isso não acontece somente com as garotas, com os rapazes também) de interações sociais semelhantes às descritas, caracteriza uma maior exposição às situações mais graves do ponto de vista do risco à integridade física e moral. É o caso daquelas situações em que pessoas são transformadas em produtos ou objetos em redes sociais mais complexas, seja de produção pornográfica ilegal, como a rede de tráfico de mulheres para fins sexuais. Vejamos o depoimento seguinte:

Tem uma menina [...], conheceu um italiano e foi pra lá, pra Itália; conheceu, um mês, aí no outro mês ele prometeu mundos e sonhos pra ela. Aí ela foi pra lá e era mentira. Chegou lá, ele prendeu o passaporte dela [...] batia nela, batia [...]. E ela ficava com vergonha de voltar pra cá por causa que [...]. Saiu achando que ia se dá bem, chegar aqui sem nada assim, assim [...]. E ela ficou um tempão nessa situação, dele bater nela, não deixava sair de casa, não deixava conversar com ninguém. Até que ela tomou coragem assim, a mãe dela deu uma força, aí ela voltou. (jovem do sexo feminino, 21 anos, ensino médio completo, negra).

 

DISCUSSÃO

A transmissão do HIV, o envolvimento de jovens de comunidades litorâneas em trocas sexuais que os expõem ao mercado sexual ou à circulação internacional de mulheres para fins sexuais são fenômenos psicossociais que guardam relação com a cidadania e com a saúde, podendo ser mais bem compreendidos em sua complexidade, quando analisados segundo os aportes do Quadro da Vulnerabilidade e Direitos Humanos, tendo como pano de fundo a noção ampliada de processo saúde-doença. Esses referenciais possibilitam a explicitação de que tais fenômenos, assim como outros eventos ou agravos, embora vividos individualmente na experiência da corporalidade e/ou da subjetividade singular, são conformados pelos cenários social, econômico, cultural, jurídico e político.

A relevância conceitual e metodológica do quadro da V&DH está, principalmente, em deslocar o sujeito do centro das explicações causais do adoecer ou do preservar-se saudável, como se isso fosse resultante somente de “informação + vontade” (Ayres et al, 2003), idéia fortemente veiculada pelo senso comum, pela mídia e por determinadas correntes psicológicas que pensam um sujeito “sem contexto”, universal e a-histórico, descolado de seu tempo histórico, da materialidade social e de sua cultura.

As situações apresentadas nesse trabalho se referem ao estabelecimento de interações sociais entre grupos distintos, ou seja, a sociabilidade cotidiana e suas trocas intersubjetivas. Entretanto essa sociabilidade se dá em determinadas circunstâncias objetivas (relativas ao grau de proteção social por parte de ações e programas de promoção da cidadania, incluindo o acesso à saúde; diferenças socioeconômicas e de status social, de acesso à educação e cultura, ao trabalho e à renda, etc.). Interatuando com as circunstâncias objetivas, têm-se as intersubjetivas (convenções, expectativas, padrões de relações compartilhados simbolicamente no cenário sociocultural de cidades litorâneas brasileiras). Configuram-se, assim, modos de ser, de agir e de interagir que ampliam a vulnerabilidade individual (configuração de escolhas, atitudes, comportamentos e crenças dos indivíduos), conforme as características dos cenários: social e programático. Cooperam, sinergicamente, os três planos, na produção da saúde das pessoas ou em sua exposição aos agravos e às violações de direitos. O plano individual, portanto, deve ser tomado sempre

como intersubjetividade, isto é, como identidade pessoal permanentemente construída nas interações eu-outro; [...] o [plano] social já sempre como contextos de interação, isto é, como os espaços de experiência concreta da intersubjetividade, atravessados por normatividades e poderes sociais baseados na organização política, estrutura econômica, tradições culturais, crenças religiosas, relações de gênero, relações raciais, relações geracionais, etc. (Paiva, 2012, p.13).

Como já mencionado, o agente diretamente responsável pela promoção de boa parte dos direitos previstos pela Constituição Brasileira é o Estado, representado pelos órgãos executivos (Secretarias e Ministério da Saúde, por exemplo), legislativos e judiciários. Isso pode nos induzir ao equívoco de achar que somente instituições públicas violam ou respeitam os direitos. Isso não é verdadeiro, embora estas sejam as principais responsáveis pelo provimento dos direitos sociais (plano programático da vulnerabilidade), o que incide sobre a melhoria dos padrões de desenvolvimento das comunidades, da saúde e da qualidade de vida dos diferentes grupos sociais, especialmente aqueles mais fragilizados pela estrutura desigual das sociedades capitalistas. No entanto, os depoimentos de jovens e dos profissionais de saúde entrevistados explicitaram que pessoas, individualmente falando, também protegem, promovem ou violam direitos de terceiros. Sejam os turistas, conforme os dados sugerem, ou aquelas que estão na posição de executores de práticas ou na condução de tecnologias de atendimento que integram programas ou políticas públicas. Por exemplo, o Estado (no caso o Ministério da Saúde) é responsável por subsidiar preservativos para a população enquanto uma medida/política de saúde pública, entretanto, se gestores locais ou trabalhadores dos serviços não coordenarem sua distribuição, armazenamento adequado ou a incorporação desse insumo nos serviços de saúde e no atendimento à população, eles estão efetivamente violando ou negligenciando o direito da população aos recursos necessários à proteção de sua saúde. Exemplos não faltam: não solicitar insumos quando os estoques estão baixos, mantê-los fora do alcance das pessoas, exigir cadastro ou documento de identidade, limitar quantidade por motivos não justificáveis (crenças pessoais e religiosas ou por preconceitos). Outro exemplo se refere aos protocolos já instituídos pela Política Nacional de DST/Aids, entre eles o teste de HIV a todas as gestantes e a profilaxia em caso de diagnóstico positivo, para evitar a infecção da mãe para seu bebe. Segundo depoimentos de mais de um informante, ocorriam graves falhas na coordenação dos exames sorológicos de gestantes (as análises eram feitas em outro município e os resultados atrasavam muito, a ponto de ocorrerem partos sem que a condição sorológica da gestante fosse sabida, culminando em infecções que poderiam ter sido evitadas). Isso demonstra a responsabilidade de gestores e trabalhadores do SUS que “encarnam” o Estado, pela efetivação de determinados direitos “em jogo” em diversas situações de atenção à saúde, exigindo que atuem com humanidade, ética, respeitando a legislação e as normas técnicas.

Finalizando, os resultados apresentados sugerem que na comunidade litorânea pesquisada, os jovens vivenciavam barreiras de acesso aos direitos humanos (à saúde integral, à educação, ao lazer, à cultura e à profissionalização) que fragilizavam sua cidadania e ampliavam sua vulnerabilidade aos agravos em saúde sexual. Isto foi detalhadamente descrito neste trabalho no que concerne às suas interações com a população visitante de suas comunidades, embora os dados completos obtidos por observações dos serviços de saúde e entrevistas com os profissionais tenham sido brevemente comentados, uma vez que são abordados em outras publicações e extrapolariam o espaço.

Privilegiou-se, portanto, apresentar densamente as narrativas dos jovens sobre suas vidas, incluindo as interações com turistas em cenários ligadas ao mercado turístico (bares, restaurantes, praia, hotéis, passeios). Em determinadas situações as pessoas de fora emergiram como potenciais violadores de seus direitos, em especial quando as relações se configuravam intersubjetivamente assimétricas (desigualdades de status por gênero, nacionalidade, cor/etnia e socioeconômicas). Em outras narrativas, se explicitavam as negligências do Estado na garantia à cidadania, por meio da promoção dos direitos sociais.

Vale esclarecer que nos referimos a esses dados de modo ilustrativo, sem nenhuma pretensão generalizante, e sim de promover o debate e possibilitar eventuais aproximações entre essa localidade e outras comunidades turísticas de perfil semelhante, guardando os devidos cuidados contra simplificações excessivas ou naturalização de aspectos de ordem sociocultural e histórica.

O Quadro da Vulnerabilidade e Direitos Humanos articula análises de vulnerabilidades aos adoecimentos ou a preservação da saúde, às condições de cidadania ou à falta desta. Tem potencial não somente analítico, mas também de inspirar intervenções “ajustadas” aos contextos, com a participação dos grupos e populações envolvidas, para dar conta de desafios técnicos, éticos, socioculturais e políticos. Mitigar as vulnerabilidades programáticas e sociais, promovendo e protegendo direitos, repercutirá nas trajetórias pessoais e de grupos específicos mais vulneráveis, como adolescentes e jovens pobres e negros, por exemplo. O quadro da V&DH pode ser instrumental, inclusive, em outras áreas da Saúde Coletiva, além das aqui discutidas (atenção em DST/Aids, sexualidade, exploração/turismo/mercado sexual) para integrar a promoção da saúde com a promoção dos direitos humanos. É necessário, pois

“observar sinergias e conflitos de decisão entre saúde e direitos humanos e trabalhar em sistema de transparência e responsabilização de modo a alcançar o mais alto padrão de saúde possível. Os princípios centrais são [...] a não discriminação, igualdade e, na medida do possível, participação genuína das comunidades afetadas. (Gruskin & Tarantola, p.28)

 

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Recebido em 23 de Setembro de 2011/ Aceite em 10 de Novembro de 2012