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Psicologia, Saúde & Doenças

versão impressa ISSN 1645-0086

Psic., Saúde & Doenças vol.15 no.1 Lisboa mar. 2014

https://doi.org/10.15309/14psd150112 

O bem-estar em cuidados paliativos: perspetiva do doente versus profissionais de saúde

Well-being in palliative care: perspective of the patient versus health care practitioners

 

Ana Carolina Silva L. C. Ponte 1 & José Luís Pais-Ribeiro 2

1 Instituto de Ciências da Saúde da Universidade Católica Portuguesa

2 Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto

 

Endereço para Correspondência

 

RESUMO

Os CP são cuidados globais, ativos, rigorosos e especializados destinados aos doentes que padecem de uma doença grave e/ou incurável, avançada e progressiva. São prestados por uma equipa interdisciplinar que atua no controlo de sintomas e responde às suas múltiplas necessidades, pretendendo auxiliar o doente a viver bem até ao final dos seus dias. O presente estudo teve como objetivo comparar a perspetiva do doente e dos profissionais de saúde acerca do bem-estar do doente paliativo. Participaram 74 doentes e 78 profissionais de saúde recrutados em quatro unidades/serviços de cuidados paliativos de diferentes regiões do país. Tratou-se de um estudo transversal, exploratório, de comparação entre grupos. Foram utilizados um item de avaliação global do bem-estar e uma questão referente ao grau de importância de nove fatores importantes ao fim de vida. Recorreu-se ao teste t de Student para comparar o nível de bem-estar e os fatores preponderantes para o maximizar. A análise de dados revelou, com exceção da importância da ausência de dor, a existência de diferenças estatisticamente significativas entre os grupos em todas as dimensões avaliadas. O bem-estar do doente paliativo é apontado como razoável pelos próprios doentes e elevado pelos profissionais de saúde. O distanciamento de opiniões também se verifica ao nível da importância de diferentes fatores para o bem-estar, pela menor importância atribuída pelos profissionais de saúde a aspetos considerados prioritários pelos doentes. Concluiu-se que os profissionais de saúde são incapazes de substituir adequadamente o ponto de vista do doente caso este não se possa expressar.

Palavras-chave- doentes paliativos, bem-estar, profissionais de saúde, comparação de perspetivas

 

ABSTRACT

Palliative care are global, active, rigorous and specialized care aimed at patients who suffer from an advanced, progressive, serious and/or incurable illness. Are provided by an interdisciplinary team that manages their symptoms and answers their multiple needs, intending to assist the patient to live well until the end of his days. This study aimed to compare the patient´s and health care practitioner´s perspectives regarding the palliative patient´s well-being. The participants were 74 patients and 78 health care practitioner´s recruited in four palliative care units/services from different regions of the country. It was a cross-sectional, exploratory, and between groups comparison study. A single item of global well-being and a question concerning the degree of importance of nine relevant factors to the end of life were used. Student´s t-test was utilized to compare the level of well-being and the relevant factors for its enhancement. Data analysis showed, apart from the importance of freedom from pain, the existence of statistically significant differences between groups in all dimensions evaluated. The palliative patient´s well-being is pointed by the patients themselves as reasonable and high by the health care practitioners.

The distancing of opinions is also observed at the level of importance of different factors for the well-being, given the less importance attributed by health care practitioners to aspects prioritized by the patients. It is concluded that if the patient is incapable to express himself, health care practitioners are unable to adequately replace the patient's point of view.

Keywords- palliative patients, well-being, health care practitioners, perspectives comparison

 

A qualidade de vida e o bem-estar são os objetivos centrais dos cuidados paliativos (CP) que proporcionam cuidados ativos, rigorosos e especializados prestados aos doentes que padecem de uma doença grave e/ou incurável, avançada e progressiva (Olthuis & Dekkers, 2005). Questionados sobre o que entendem por bem-estar dos doentes, os profissionais de saúde que exercem funções em serviços de CP referem que é um julgamento subjetivo que o doente faz da sua própria situação (Olthuis & Dekkers, 2005). Relativamente à qualidade de vida, concordam que é o principal objetivo subjacente à sua prática profissional e, que se trata de um conceito subjetivo e central para a definição de CP (Pastrana et al., 2010). Kaasa (2001) aponta a experiência clínica prévia em CP ou em outras especialidades, o prognóstico dos doentes, a profissão e o contexto clínico ou de investigação – como fatores que influenciam a observação deste conceito em CP. Atualmente, o bem-estar é considerado como o principal indicador de qualidade de vida (Olthuis & Dekkers, 2005). Esta é subjetiva, refere-se à avaliação pessoal de um dado indivíduo acerca do seu bem-estar (Mount, Boston, & Cohen, 2007) e, é sempre importante para o doente (Cohen et al., 1996). Definir qualidade de vida como bem-estar subjetivo possibilita que se efetuem considerações importantes para a prática de CP (Olthuis & Dekkers, 2005), como inferir acerca da qualidade dos cuidados prestados e melhorar as práticas em CP (Casarett et al., 2008; Tassinari & Maltoni, 2009).

Mount et al. (2007) entendem que a qualidade de vida do doente paliativo ao remeter para a apreciação que o próprio faz do seu bem-estar subjetivo presente é melhor captada pela resposta à questão “como se sente neste momento”, podendo ser avaliada num continuum entre a ausência de bem-estar e o máximo bem-estar possível. A opção por esta forma de medição da qualidade de vida percebida tem sido apontada como uma alternativa apropriada e capaz de diminuir o incómodo causado por instrumentos mais longos (Locke et al., 2007), além disso apresenta boa validade e fiabilidade (Mcdowell, 2010).

Comparativamente ao item de bem-estar de um dos instrumentos de autorrelato mais frequentemente utilizado na prática de CP a Escala de Avaliação de Sintomas de Edmonton (ESAS) possui a vantagem de ser mais facilmente compreendido pela consideração do “0” como ausência de bem-estar e o “10” como o máximo bem-estar possível, uma vez que no ESAS o item encontra-se invertido e a sua ponderação é muitas vezes influenciada pela avaliação de sintomas dos itens anteriores, colocando em questão a análise da experiência subjetiva do doente (Bergh, Kvalem, Aass & Hjermstad, 2011; Bush et al., 2010).

As investigações acerca da qualidade de vida na doença avançada têm proliferado (e.g., Cohen, Boston, Mount & Porterfield, 2001; Diehr et al., 2007; Higginson & Gao, 2008). Não obstante, os estudos que se debruçam sobre a perceção de bem-estar dos doentes paliativos são escassos (Voogt et al., 2005). Também pouco se sabe acerca dos aspetos considerados importantes por cada doente que a determinam (Echteld, Deliens, Ooms, Ribbe, & Van der Wal, 2005). Lloyd (2000) considera que o bem-estar em fim de vida deve ser compreendido e potenciado. Questionar o doente acerca da sua perceção de bem-estar é um passo importante para aumentar a compreensibilidade deste tema e avaliar o efeito da intervenção dos CP (McDowell, 2010). Além disso, uma definição clara daquilo que os doentes e profissionais de saúde observam como importante no final de vida é essencial para a melhoria dos cuidados prestados, que por sua vez potenciam o bem-estar (Steinhauser et al., 2000a,2000b).

Deste modo, o esclarecimento destas duas conceções apresenta grande aplicabilidade à prática dos CP. Ao averiguar se a perspetiva da dos profissionais de saúde segue – ou não – a mesma direção da do doente, é possível perceber se as suas necessidades e preferências podem ser confiadas aos elementos da equipa que o acompanham, caso o doente se encontre impossibilitado de as expressar ou opte por se demitir do processo de tomada de decisão, delegando essa tarefa no médico – tendência frequentemente adotada pelos portugueses perante um cenário de incapacidade pessoal decorrente de doença grave e avançada (Daveson et al., 2013).

Neste sentido foi conduzido um estudo com o objetivo de caracterizar o nível de bem-estar do doente seguido em unidades/serviços de CP e os fatores preponderantes para o maximizar, de acordo com o seu próprio ponto de vista e, segundo a perspetiva dos profissionais de saúde, comparando-as.

 

MÉTODO

Realizou-se um estudo transversal, exploratório, de comparação entre grupos, em que se considerou dois tipos de variáveis, a variável principal: o bem-estar; e as variáveis secundárias: variáveis sociodemográficas das duas amostras, e variáveis clínicas dos doentes.

Participantes

Participaram no estudo doentes seguidos em unidades/serviços de CP, em regime de internamento ou ambulatório, e os profissionais de saúde que os acompanham.

A recolha de dados decorreu em diferentes unidades/serviços de CP da região Norte (Serviço de CP do IPO-Porto), Centro (Serviço de Medicina Paliativa do Hospital do Fundão - Centro Hospitalar Cova da Beira, EPE; Unidade de CP do Hospital Nossa Senhora da Graça - Centro Hospitalar do Médio Tejo, EPE) e de Lisboa (Unidade de CP do Hospital do Mar), o que possibilitou a obtenção de um maior número de participantes, permitindo ainda uma visão mais abrangente das características dos doentes e equipas de CP portuguesas.

Recorreu-se a uma amostra de conveniência, sendo incluídos todos os indivíduos que no momento da recolha de dados preenchiam os critérios de inclusão e, após esclarecimento, e leitura do consentimento informado, acederam participar no estudo, formalizando a sua vontade por escrito. O processo de seleção dos participantes obedeceu aos seguintes critérios de inclusão: ser doente paliativo, ou profissional de saúde diferenciado em exercício de funções; estar presente em unidades/serviços de CP; ter idade igual ou superior a 18 anos; estar consciente e orientado; estar física e mentalmente capaz para compreender os objetivos do estudoe dar consentimento informado.

Caracterização Sociodemográfica-O presente estudo contou com a participação de 152 indivíduos distribuídos por duas amostras: 74 doentes paliativos (85,1% da região Norte, 5,4% do Centro e 9,5% de Lisboa), e 78 profissionais de saúde (39,7% da região Norte, 17,9% do Centro e 42,3% de Lisboa). Os participantes do grupo de doentes provieram maioritariamente da região Norte (85,1%) e distribuíram-se de forma relativamente homogénea por sexos, 39 do sexo masculino e 35 do sexo feminino. Já os profissionais de saúde, eram na sua maioria do sexo feminino (84,6%) e encontravam-se quase igualmente distribuídos entre a região de Lisboa (n = 33) e a região Norte (n = 31).

A média de idades situou-se nos 67,6 anos na amostra de doentes e nos 35,01 nos profissionais de saúde. A maioria dos doentes eram casados ou viviam em união de facto (64,9%) e apresentavam níveis de escolaridade muito variados, sendo que o mais comum era não ultrapassar o primeiro ciclo (77%). De modo inverso, a escolaridade dos profissionais de saúde situava-se ao nível da licenciatura ou mestrado integrado (82,1%) e eram na sua maioria solteiros (50,6%). A fé desempenhava um papel importante e muito importante na vida dos doentes e dos profissionais de saúde, sendo observado de forma muito semelhante pelas duas amostras. As características sociodemográficas das duas amostras encontram-se de forma detalhadas no quadro 1.

 

 

A profissão e o tempo de serviço em CP são características específicas da amostra de profissionais de saúde, apresentadas no quadro 2. Enfermeiros e médicos foram os profissionais mais representados, com 56 e 12 participantes, respetivamente. No que concerne às competências profissionais verificou-se que apenas 3,9% exerciam CP há mais de 15 anos, sendo o mais comum não ultrapassar os 5 anos de tempo de serviço.

 

 

Caracterização clínica- A descrição das características clínicas dos doentes é exibida no quadro 3, onde é possível observar que dos 74 doentes seguidos em CP que compuseram a amostra, 47 encontravam-se em regime de ambulatório e 27 em internamento. Apesar do tempo de internamento ser muito variável, tendo ultrapassado os 6 meses num caso, o mais frequente era não ultrapassar uma semana de duração n = 12 (46,2%). No que concerne à doença, é de ressaltar que contrariamente ao previsto não se observou diversidade na amostra, todos os doentes apresentavam um diagnóstico de cancro. Deste modo, optou-se por caracterizar a doença oncológica segundo a sua localização, sendo o peritoneu e órgãos digestivos n = 23 (32,9%), órgãos geniturinários n = 15 (21,4%) e mama n = 12 (17,1%) as três localizações mais frequentes. Quase metade dos participantes apresentou um prognóstico igual ou inferior a 3 meses e a maioria não ultrapassou os 6 meses.

 

 

Material

Em CP é frequente os doentes apresentarem um estado funcional tão fraco que os impede de completar questionários longos e complexos. Nos casos em que conseguem iniciar essa tarefa mas são impossibilitados de a terminar, os doentes saem prejudicados por serem novamente confrontados e recordados da sua progressiva e, por vezes rápida deterioração (Pastrana et al., 2010). A seleção do material teve, portanto, em consideração a prevenção da sobrecarga dos participantes do estudo, dadas as necessidades e vulnerabilidades dos doentes (Chochinov, 2004), e pela falta de tempo dos profissionais de saúde.

Deste modo, atendendo não só às questões de apropriabilidade e economia de tempo e energia já referidas, mas também a outras características recomendadas para a avaliação em saúde como a adequabilidade, interpretabilidade, responsividade, aceitabilidade e utilidade (Pais-Ribeiro, 2008), o material foi composto apenas por: um questionário de dados sociodemográficos; um item de avaliação global do bem-estar, e; uma questão para identificação dos fatores mais importantes à promoção do bem-estar.

Questionário de dados sociodemográficos- O questionário de dados sociodemográficos contemplou questões comuns aos dois grupos (sexo, idade, estado civil, escolaridade e importância da fé) e específicas, como as variáveis clínicas do doente; a profissão e tempo de serviço dos profissionais de saúde.

Item de avaliação global do bem-estar- Utilizou-se uma escala numérica para a autoavaliação do nível de bem-estar. Foi pedido aos doentes que respondessem à seguinte questão “quão bem se sente neste momento” pontuando entre “0” e “10” que correspondem, respetivamente, à “ausência de bem-estar ” e “máximo bem-estar”, compreendendo uma posição neutra (“5”). Já os profissionais posicionaram-se, de acordo com a mesma escala numérica, relativamente à questão: “na sua opinião qual o nível geral de bem-estar dos seus doentes?”

Questão de identificação dos fatores promotores de bem-estar- Adotaram-se os fatores considerados importantes ao fim de vida identificados por Steinhauser et al. (2000a) como os mais frequentemente referidos por doentes, famílias e profissionais de saúde, em doze grupos focais. Os doentes indicaram o grau de importância, entre “0” nada importante e “10” extremamente importante da “ausência de dor”, “estar em paz com Deus”, “ ter a presença da família”, “estar consciente”, “ver as suas opções de tratamento seguidas”, “ter as finanças em ordem”, “sentir que a vida teve sentido”, “resolver conflitos” e “morrer em casa” para o seu bem-estar. Os profissionais de saúde executaram a mesma tarefa, mas agora no âmbito do “bem-estar dos seus doentes”.

Procedimento

Com o intuito de obter uma amostra alargada, foi enviado um documento com o esclarecimento do estudo e o material de recolha de dados a cada unidade/serviço de CP portuguesa com regime de internamento, contendo um pedido de autorização aos Conselhos de Administração e um pedido de parecer para as Comissões de Ética. Das múltiplas instituições contactadas, quatro aprovaram a prossecução da investigação nas suas instalações, que para efeitos do estudo foram classificadas segundo a Nomenclatura das Unidades Territoriais para Fins Estatísticos - NUTS II. O diretor de serviço de cada unidade/serviço de internamento de CP foi contactado para agendar uma data para a recolha de dados. Os dados foram recolhidos entre o final de 2009 e meados de 2010.

A recolha de dados procedeu-se do seguinte modo: solicitou-se a colaboração do diretor(a) de serviço para indicar os doentes que se encontravam conscientes e orientados, e com capacidade física e mental para participar no estudo nalguns casos recorreu-se a um médico ou enfermeiro da equipa por ele(a) sugerido –, que estabeleceu um primeiro contacto, apresentando o investigador; pediu-se-lhes que participassem, após terem sido esclarecidos acerca da natureza e finalidade do estudo; solicitou-se às pessoas que concordaram participar no estudo que formalizassem a sua autorização num formulário de consentimento informado e por fim, após o preenchimento do questionário dos doentes, recorreu-se novamente ao diretor(a) de serviço ou a um médico ou enfermeiro da equipa por ele sugerido para efetuar o preenchimento das características clínicas (diagnóstico, prognóstico e tempo de internamento).

O investigador permaneceu sempre próximo dos doentes no decorrer do preenchimento do questionário, efetuando todos os esclarecimentos necessários e dando espaço à expressão livre de sentimentos; sendo que o tempo de preenchimento foi muito variável dependendo da necessidade dos participantes em falar sobre o tema.

O local de recolha de dados variou em função das características físicas das diferentes instituições e, consoante os doentes se encontravam em contexto de internamento (quarto) ou ambulatório (gabinete/sala de espera). Não obstante, a sua privacidade foi sempre tida em consideração, procurando-se um espaço que fosse o mais reservado possível.

 

RESULTADOS

O quadro 4 mostra os resultados da comparação entre as respostas dos doentes e profissionais de saúde relativas ao nível de bem-estar do doente seguido em CP. Pela sua observação constata-se a existência de diferenças muito significativas (t(143)= 5,55, p < 0,0001) entre as duas posições, com os profissionais de saúde a sobrevalorizarem o nível de bem-estar dos doentes (M = 7,04; DP = 1,41), face à pontuação atribuída pelos próprios (M = 5,41; DP = 2,07).

 

 

Tal como é possível verificar no quadro 5, os nove fatores foram considerados importantes pelas duas amostras. Os profissionais de saúde colocaram-nos como elevados a extremamente importantes, ao passo que os doentes chegaram a atribuir valores moderados a alguns fatores.

 

 

O fator ausência de dor é o que mais contribui para o bem-estar do doente seguido em CP, na opinião de doentes (M = 9,93; DP = 0,58) e profissionais de saúde (M =9,88; DP = 0,43), que o apontaram como extremamente importante. Os restantes fatores foram perspetivados de forma díspar, uma vez que apresentaram diferenças estatisticamente significativas no teste t de Student,colocando a ausência da dor como o único fator consensual entre as duas amostras em estudo. No entanto, apesar de lhe terem atribuído médias significativamente diferentes, os grupos também estão em acordo quanto ao fator que menos contribui para a promoção do bem-estar: morrer em casa.

Os doentes atribuíram uma importância elevada a estar em paz com Deus (M = 9,35; DP =1,87), estar consciente (M = 9,06; DP = 1,39), e ter as finanças em ordem (M = 8,08; DP = 2,80). Médias semelhantes foram atribuídas pelos profissionais de saúde aos fatores resolver conflitos, sentir que a vida teve sentido e ver as suas opções de tratamento seguidas, aspetos que recebem uma importância moderada por parte dos doentes. Ter a presença da família (M = 9,70; M = 9,19), morrer em casa (M = 5,97; M = 7,05) e ver as suas opções de tratamento seguidas (M = 7,33; M = 8,36) são os fatores que apresentaram a existência de diferenças menos extremadas, sendo o primeiro significativamente mais importante para os doentes e os restantes para os profissionais de saúde.

 

DISCUSSÃO

O nível de bem-estar do doente foi apreciado de forma distinta por doentes e profissionais de saúde. Estes apontaram-no como elevado, enquanto que para os doentes ele era apenas razoável. É compreensível que os profissionais de saúde, ao serem conhecedores das condições que a generalidade dos portugueses dispõe quando enfrenta uma doença incurável principalmente na sua fase terminal , entendam que os seus doentes usufruam de níveis elevados de bem-estar por serem seguidos até ao fim de vida por uma equipa interdisciplinar, atenta e especializada.

Por outro lado, os doentes podem derivar a sua opinião da comparação com a vida que tinham antes de a doença avançar, sem tomar em consideração o sofrimento que passam muitos doentes noutros contextos, pela má comunicação, futilidade terapêutica e abandono. Ao se focarem nas múltiplas e sucessivas perdas, em vez dos benefícios da qualidade de cuidados recebidos, entende-se que os doentes não conseguissem apreciar o bem-estar do doente seguido em CP de forma mais positiva. Neste sentido, Hall, Chipperfield, Heckhausen, e Perry (2010) verificaram que a apreciação positiva prediz melhores níveis de bem-estar subjetivo.

Este resultado confirma a tendência dos médicos (e neste caso dos profissionais de saúde de uma forma geral) para sobrestimar o bem-estar dos doentes, tal como foi identificado por outros estudos relativamente ao estado funcional e à qualidade de vida (Oliva et al., 2011; Zimmermann, 2010).

Doentes e profissionais de saúde assumem a mesma perspetiva quanto aos fatores situados nos limites superior e inferior de importância para o bem-estar do doente paliativo, ocupados pela ausência de dor e pelo morrer em casa, respetivamente. Steinhauser et al. (2000a) já tinham chegado à mesma conclusão. Mais recentemente, Lankarani-Fard et al. (2010) também verificaram os mesmos resultados relativamente a uma amostra de doentes graves, em regime de internamento. Em CP é inevitável a primazia do controlo da dor e de outros sintomas, indispensáveis à prestação de cuidados de qualidade (Engelberg et al., 2010). Os profissionais de saúde são muito sensíveis a estas questões, que constituem uma necessidade básica (Zalenski & Raspa, 2006).

O morrer em casa, apesar de ser cotado nos dois grupos como o menos importante entre os nove fatores, foi alvo de diferenças estatisticamente significativas na sua apreciação. Assumiu um grau de importância moderado na opinião dos doentes, e elevado para os profissionais de saúde, refletindo o consenso na literatura quanto ao local de eleição para a morte (Bell, Somogyi-Zalud, & Masaki, 2010; Gomes et al., 2012).

Os profissionais de saúde podem ter efetuado uma apreciação mais favorável da importância deste fator pela elevada procura de apoio domiciliário com esse intuito. Tang et al. (2008) verificaram que a concordância entre doentes oncológicos terminais e suas famílias relativamente ao local de preferência para morrer, conduzia a maiores níveis de bem-estar dos doentes. Deste modo, a melhor localização para a morte é a que corresponde aos critérios e necessidades do doente e, é simultaneamente aceitável pelo doente e sua família (Bell et al., 2010).

O resultado da comparação de perspetivas, no que concerne à avaliação da importância da manutenção da consciência para o bem-estar do próprio doente, coloca em evidência a necessidade de se tomarem medidas no sentido de assegurar a preferência dos doentes, pela atribuição de uma importância muito elevada pelos doentes, e moderada pelos profissionais de saúde. O ponto de vista do doente acerca da manutenção da consciência tem impacto na tomada de decisão acerca dos tratamentos. Uma forma de fazer respeitar a sua autonomia e direito à autodeterminação é pelo estabelecimento de diretivas avançadas de vontade. O doente, enquanto pleno das suas capacidades mentais, pode expressar as suas preferências relativas aos cuidados em fim de vida num testamento vital, ou pelo desígnio de um procurador de cuidados de saúde que receberá as suas instruções assegurando que serão aplicadas em caso de necessidade , ou ainda delegando nessa pessoa a tarefa de tomar as decisões por si (Schüklenk et al., 2011).

Wagner, Riopelle, Steckart, Lorenz, e Rosenfeld (2010) ao estudarem uma população de 400 doentes paliativos, maioritariamente oncológicos e com prognóstico inferior a um ano, verificaram que uma minoria possuía testamento vital, sendo a sua existência relacionada com níveis de escolaridade mais elevados. Também averiguaram que um terço dos procuradores, familiares e profissionais de saúde, não tinham sido informados das preferências dos doentes. Considerando uma situação semelhante em que os doentes se tenham abstido de comunicar as suas opções e, atendendo que os portugueses além de preferirem um menor envolvimento pessoal neste processo de tomada de decisão, tendem ainda a optar pelo envolvimento dos médicos em detrimento da sua própria tomada de decisão em caso de incapacidade (Daveson et al., 2013), é plausível que os doentes corram o risco de receber tratamentos indesejados. Além disso, é necessário ter em consideração que o testamento vital é relativamente recente no nosso país e que a generalidade da população não dispõe dos conhecimentos médicos necessários para acautelar uma variedade de cenários clínicos. Mesmo nos casos em que as suas preferências são manifestadas de modo informal, o doente necessita estar bem esclarecido do âmbito, efeitos, riscos e benefícios de diferentes tratamentos.

Cabe aos profissionais de saúde especialmente na figura do médico debater estas questões, que idealmente deveriam ter lugar no início da trajetória da doença (Mack et al., 2012). A antecipação da discussão de assuntos sensíveis relativamente ao fim de vida previne que o doente seja obrigado a tomar decisões num contexto de perturbação emocional, decorrente da comunicação de más notícias, geralmente um mau prognóstico (Steinhauser et al., 2000b). Possibilita, ainda, que se sinta apoiado ao receber a garantia que será acompanhado até ao final, facilitando deste modo a transição de cuidados com a progressão da doença (Cardoso, 2009). A sua elevada preferência pela manutenção da consciência pode advir de receios e mitos relacionados com a sedação paliativa. Esta temática deve, portanto, ser clarificada. O doente deve também ser esclarecido acerca do motivo pelo qual os médicos estão dispostos a sacrificar a consciência pela analgesia (Steinhauser et al., 2000a) e, em que situações essa opção poderá ser a melhor para maximizar o seu bem-estar.

Debatidos os fatores que mostraram maior unanimidade e controvérsia, resta observar a perspetiva dos dois grupos quanto aos fatores remanescentes. Ao contrário do estudo de Steinhauser et al. (2000a) em que os médicos e outros profissionais de saúde colocaram a presença da família e estar em paz com Deus em segundo e terceiro lugares de importância, neste estudo, esses lugares foram ocupados pela resolução de conflitos e pela presença da família. Este fator partilha a mesma média de sentir que a vida teve sentido, contudo foi considerado mais importante por apresentar uma menor variabilidade de respostas. Os profissionais de saúde, embora privilegiem fatores que transpõem o domínio biomédico, tendem a focar-se em itens menos importantes para os doentes, como a resolução de conflitos e o sentir que a vida teve sentido, tendo atribuído, de igual modo, uma importância muito superior ao morrer em casa. Desviam-se ainda da perspetiva do doente pela desvalorização de aspetos que eles reportam como prioritários, tais como o estar em paz com Deus e ter as finanças em ordem. Um estudo anterior concluiu que as necessidades espirituais dos doentes não estavam a ser adequadamente atendidas na maioria das unidades de CP ao longo de toda a Espanha, pela incapacidade dos profissionais de saúde em detetá-las (Payás Puigarnau, Barbero Gutiérrez, & Ramon Bayés, 2008). É possível que tenha sucedido o mesmo com esta amostra de profissionais de saúde, dado que observaram a espiritualidade como prioritária relativamente à religião, ao passo que doentes e famílias foram de opinião inversa.

As dificuldades financeiras dos doentes oncológicos em fim de vida são frequentes e, apesar de não competir à maioria dos profissionais de saúde resolvê-las, estes devem reconhecer que elas são motivo de preocupação habitual entre os doentes (Hanratty, Holland, Jacoby, & Whitehead, 2007). De modo inverso, os doentes atribuíram uma importância significativamente inferior aos fatores sentir que a vida teve sentido e ver as suas opções de tratamento seguidas. A questão do sentido não assumiu níveis tão elevados, mas não deixa de ser muito importante para os doentes. Atendendo que a maior parte da amostra foi constituída por doentes terminais, entre os quais 49,3% apresentou um prognóstico igual ou inferior a 3 meses, é percetível que muitos se encontrem numa fase de questionamento do sentido de vida, logo, não lhe tenham dado tanto valor.

Relativamente a ver as suas opções de tratamento seguidas, já aqui foi debatida a preferência pela exclusão desse processo. Pela análise do nível de bem-estar e dos fatores capazes de o maximizar constatou-se que há uma divergência entre a opinião dos doentes e profissionais de saúde. Caso a situação se apresente necessária, pelo elevado declínio funcional, distress ou incapacidade cognitiva, os profissionais de saúde podem representar adequadamente o doente na apreciação da importância da ausência de dor. No que concerne à avaliação do nível de bem-estar e do grau de importância dos restantes fatores, a informação dos profissionais de saúde não é fidedigna para poder substituir o ponto de vista do doente. Os doentes socialmente isolados poderão ser mais prejudicados, no entanto, este estudo comprovou que pelo menos a sua dor deverá ser alvo de especial atenção.

Estes aspetos, aliados ao conhecimento de que os doentes que discutem as suas preferências com a família reportam melhor qualidade de vida (Wagner et al., 2010), e fundamentados pela ausência de um representante familiar ou profissional de saúde capaz de fazer prevalecer a vontade do doente relativamente à sua manutenção da consciência, justificam a presença da família nas discussões dos cuidados em fim de vida, onde se inserem as diretivas avançadas. Detering, Hancock, Reade, e Silvester (2010) apontam como benefícios desta situação: o aumento da concordância entre os desejos do doente e o conhecimento desses mesmos desejos, a clarificação de valores e crenças do doente, assim como da sua perspetiva sobre o que é viver bem. Para além disto, os autores acrescentam que o planeamento coordenado melhora os cuidados em fim de vida, a satisfação do doente e família, e reduz a incidência de problemas psicológicos nos familiares após a morte. Com efeito, seria possível esclarecer não só a questão da importância de estar consciente, mas também perceber o grau de envolvimento que o doente deseja ter no que respeita às opções de tratamento e, até que ponto quer debater a questão do sentido de vida.

Um estudo efetuado por Nelson et al. (2010) reforça a importância da tomada de decisão partilhada, ao revelar que doentes internados em unidades de cuidados intensivos e a sua família partilham a mesma opinião acerca dos domínios de CP mais importantes, tendo identificado: a comunicação com os médicos acerca da condição do doente, tratamento e prognóstico; a tomada de decisão médica centrada no doente; a manutenção do conforto e dignidade, e; o cuidado da família. Estes aspetos são fundamentais à prestação de CP de qualidade, uma vez que estes têm por objetivo o cuidado do doente e apoio à família na prossecução do melhor bem-estar e qualidade de vida para ambos. Alcançar ou não este objetivo depende do estabelecimento de uma boa relação médico-doente, uma boa comunicação com toda a equipa de CP, e uma abordagem centrada no doente (Powers, Norton, Schmitt, Quill, Metzger, 2011). O reconhecimento das prioridades do doente é, pois, uma condição fundamental que pode exercer efeitos positivos na relação doente-família-profissionais de saúde. Contudo, os resultados deste estudo sugerem que os profissionais de saúde de CP necessitam desenvolver mais esforços neste sentido.

Conclui-se que os doentes percecionam o seu bem-estar como razoável, enquanto os profissionais de saúde apreciam-no como elevado. Os nove fatores de bem-estar em estudo foram considerados importantes pelos doentes, mas apresentam graus de importância distintos. A ausência de dor, ter a presença da família, estar em paz com Deus e estar consciente são extremamente importantes. Também assumem uma importância muito elevada ter as finanças em ordem e sentir que a vida teve sentido. Ver as suas opções de tratamento seguidas e resolver conflitos têm um grau de importância elevado. O morrer em casa é o aspeto menos valorizado, sendo observado como moderadamente importante. No que concerne à generalidade dos fatores de bem-estar demonstrou-se que os profissionais são incapazes de traduzir adequadamente a perspetiva do doente e, desse modo, não podem representá-lo em caso de necessidade, com exceção para a ausência da dor.

Os resultados do presente estudo permitem tecer as seguintes considerações e recomendações à prática de CP:

-Os CP devem estar acessíveis a todos os doentes que deles necessitem, no entanto, a grande maioria dos doentes seguidos em unidades/serviços de CP são terminais e apresentam um prognóstico muito reduzido. Este resultado coloca em evidência a insuficiência de recursos e a referenciação tardia para CP, que põem em questão a prestação de cuidados adequados. Devem ser questionadas soluções para estes reconhecidos problemas, mostrando-se necessária uma expansão célere e adequada da Rede Nacional de Cuidados Paliativos. Este aspeto é reforçado pelo facto de os doentes demorarem duas semanas de internamento até atingirem níveis razoáveis de bem-estar. Assim, pouco poderá ser feito por um doente que não teve acompanhamento de uma equipa de CP e chega até ela apenas em fase agónica;

- É imperativo discutir atempadamente a importância que estar consciente tem para o doente, uma vez que é um aspeto observado como prioritário pelo próprio, mas carece de correspondência na opinião dos profissionais de saúde. O debate desta questão poderá clarificar as diferentes posições, abordar medos relativos à utilização de opióides, desmistificar a sedação paliativa, tranquilizar e dar uma sensação de controlo ao doente;

- Seria importante avaliar a vontade do doente em manter a família informada e presente no processo de tomada de decisão, dada a subvalorização do fator ver as suas opções de tratamento seguidas face aos restantes grupos. Em caso afirmativo, é aconselhável envolvê-la o mais precocemente possível na discussão dos cuidados em fim de vida, facilitando a transição da responsabilidade decisória aquando da perda de autonomia por parte do doente;

- Por fim, e talvez o mais importante, recomenda-se o desenvolvimento de uma boa comunicação na tríade doente-família-profissionais de saúde propícia à expressão de valores e prioridades, permitindo estabelecer consensos e conhecer as necessidades de doentes e famílias. Esta é, então, uma via indispensável para que os profissionais de saúde consigam captar a perspetiva dos doentes, apoiar a família, desenvolver uma abordagem holística e aumentar a qualidade dos cuidados prestados.

Este estudo permitiu acrescentar algumas informações acerca da experiência do doente paliativo enquanto objeto de acompanhamento dos CP e da forma como ela é perspetivada pelos profissionais de saúde. Porém, o corpo de conhecimento acerca do bem-estar do doente paliativo é ainda incipiente. Sugere-se que estudos futuros:

- Incluam doentes não-oncológicos e doentes seguidos em CP por equipas intra-hospitalares de suporte e equipas de suporte comunitárias, com vista à comparação dos resultados com o presente estudo e sua generalização à população de doentes paliativos seguidos em CP;

- Estabeleçam uma relação direta entre os participantes, associando o doente aos profissionais de saúde com quem contactou. É possível que neste caso os dados sejam mais favoráveis aos profissionais de saúde;

- Tenham um seguimento longitudinal. Ao efetuar várias avaliações com os mesmos indivíduos é possível controlar diferentes variáveis (e.g., atividades realizadas; visita da família; realização de determinado tratamento) que podem influenciar o julgamento de bem-estar, analisar a existência de reconceptualização dos domínios importantes para o doente, ou a alteração do seu valor ao longo da progressão da doença e aproximar da morte;

- Adotem uma abordagem qualitativa, permitindo compreender melhor o bem-estar subjetivo dos doentes e o raciocínio por detrás da opinião dos profissionais de saúde, assim como explorar o significado que os fatores importantes para o bem-estar do doente têm para os dois grupos.

Em suma, conclui-se que a qualidade de vida percebida do doente seguido em CP é razoável. Com efeito, a principal implicação clínica extraída deste estudo é a necessidade de uma intervenção destinada à promoção do bem-estar e melhoria da sua qualidade de vida. Para tal, é necessário identificar as dimensões prioritárias para cada doente e desenvolver medidas personalizadas e ajustadas às suas circunstâncias.

A perspetiva dos doentes e profissionais de saúde é fundamental à melhoria do bem-estar e qualidade de vida do doente seguido em CP. Existem muitas diferenças entre as duas perspetivas. Deste modo, os profissionais não podem substituir adequadamente o ponto de vista do doente nas situações em que ele esteja incapaz de a expressar. Este resultado constitui-se como um alerta para os diferentes profissionais prestarem uma maior atenção ao doente e a todas as dimensões da sua experiência, questionando-o acerca do que ele considera mais importante, escutando-o ativamente e respondendo em conformidade.

 

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Endereço para Correspondência

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Recebido em 9 de Dezembro de 2013/ Aceite em 20 de Março de 2014