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Psicologia, Saúde & Doenças

versão impressa ISSN 1645-0086

Psic., Saúde & Doenças vol.16 no.1 Lisboa mar. 2015

https://doi.org/10.15309/15psd160207 

Cyberstalking entre adolescentes: uma nova forma de assédio e perseguição?

Cyberstalking among adolescents: a new form of harassment and persecution?

 

F. Pereira, & M. Matos

Escola de Psicologia, Universidade do Minho, Braga, Portugal

 

Endereço para Correspondência

 

RESUMO

Com a crescente difusão das tecnologias de informação e comunicação, fenómenos como o cyberstalking começam a ter maior expressão e visibilidade social, podendo ter como alvos adultos, crianças e/ou adolescentes. A par do consenso na literatura sobre os pressupostos centrais do cyberstalking (e.g., persistência, intenção, deliberação, indesejabilidade), persiste uma enorme controvérsia em torno da sua definição. O presente artigo procura contribuir para a clarificação dessas inconsistências e para a demarcação do conceito, mormente do fenómeno de cyberbullying. Um conjunto de elementos que tipificam o cyberstalking estão refletidos neste trabalho. Estes devem ser considerados na sua triagem, análise e no plano de atuação junto dos “atores”, assim como em programas de prevenção dirigidos a adolescentes que visam a educação para uma saúde em termos globais, tal como a define a Organização Mundial de Saúde (OMS). Reflete-se ainda criticamente acerca dos elementos comuns e divergentes entre o cyberstalking e outras formas de vitimação online (e.g., sexting, cyberbullying). Conclui-se que o cyberstalking está presente entre os adolescentes e não deve ser considerada uma dimensão “menor” de vitimação nesse grupo. Pelo contrário, é uma forma de perseguição inovadora face ao stalking no mundo real e distinta do cyberbullying.

Palavras-chave - Cyberstalking; stalking; vitimação; adolescentes.

 

ABSTRACT 

With the increasing diffusion of information and communication technologies, phenomena such as cyberstalking begin to have more expression and social visibility, and may have targeted adults, children and / or adolescents. However, despite the consensus in the literature about the central assumptions of cyberstalking (e.g., persistence, intent, deliberation, undesirability, there remains a great controversy surrounding its definition. This article aims to contribute to the clarification of these inconsistencies at the level of the assumptions of cyberstalking and to the demarcation of this concept, especially of the phenomenon of cyberbullying. A set of elements that typifies cyberstalking are reflected in this work. These should be considered in its screening, in the analysis and in the plan of action with the "actors", as well as prevention programs aimed to adolescents, which aim a health education, such as defined by World Health Organization (WHO). It is also critically reflected on the common elements and divergent between the cyberstalking and other forms of online victimization (e.g., sexting, cyberbullying). We conclude that cyberstalking is present in adolescents population, so this should not be considered a "minor" dimension of victimization in this group, but rather as an innovate form compared to physical stalking and different from cyberbullying.

Keywords - Cyberstalking; stalking; victimization; adolescents.

 

O que é o cyberstalking?

O cyberstalking (também designado por stalking online, eletrónico ou virtual) está associado à intrusão, assédio persistente e perseguição, perpetrado através das tecnologias de informação e comunicação (TIC) (Burmester, Henry & Kermes, 2005). Como construção sociocultural, surge no mundo ocidental durante o último século, reflexo do progressivo reconhecimento do stalking (i.e., assédio persistente no mundo real) e da acentuada difusão das TIC (Carvalho, 2011).

Apesar do consenso na literatura sobre os elementos centrais do cyberstalking (e.g., persistência, intenção, deliberação, indesejabilidade), a complexidade do constructo e o seu insuficiente reconhecimento têm resultado em diferentes definições e interpretações do fenómeno (Bocij, 2003). Consequentemente, não há unanimidade entre os investigadores acerca dos pressupostos que o definem, nem há evidências estatísticas únicas que expressem a real dimensão do fenómeno (Sheridan, Blaauw, & Davies, 2003). A literatura também não é unânime quanto à valorização do critério de medo e ameaça na apreciação de um padrão de comportamentos de cyberstalking (Mullen, Pathé, & Purcell, 2000), nem estabelece inequivocamente uma referência temporal ou quantitativa, única e específica, sobre a duração e a frequência da ação do perpetrador: o ciberstalker (Dennison & Thomson, 2002). Por último, há uma tendência para se extrapolar, equivocamente, conceitos como ciberagressão, ciberassédio, spamming, sexting e cyberbullying como casos de cyberstalking (Sheridan & Grant, 2007). Essa propensão é ainda maior quando o foco de atenção se centra na população juvenil, o que tem limitado o conhecimento sobre a natureza do cyberstalking entre os adolescentes. Esta ambiguidade conceptual impede um diagnóstico correto do fenómeno, podendo colocar em causa a promoção do bem-estar e saúde geral dos adolescentes, mais especificamente na dimensão social e emocional (Campos, Zuanon, & Guimarães, 2003).

Os desenvolvimentos científicos em torno da clarificação do cyberstalking visam pois, o esclarecimento dessas incoerências conceptuais e a comunicação mais adequada entre os investigadores da área. Outro contributo será a progressiva consciencialização social para o problema, estimulando a mudança de atitudes e comportamentos face a fenómenos complexos como este e a promoção do bem-estar dos adolescentes através de uma atuação multinível (Campos et al., 2003). Através do (re)conhecimento precoce de casos de cyberstalking, os agentes do terreno (e.g., psicólogos, educadores) poderão intervir de forma preventiva nos fatores de risco e de proteção. Esta intervenção é particularmente pertinente junto dos grupos mais vulneráveis à vitimação (i.e., jovens do sexo feminino, utilizadores ativos das TIC sob baixa proteção) (Frydenberg, 2008). É ainda fundamental identificar as necessidades das vítimas de cyberstalking. Oferecer aos adolescentes uma educação para a saúde baseada nas suas necessidades e na forma como o cyberstalking é experienciado na adolescência é essencial para um desenvolvimento pessoal, moral, sexual e social positivo (Campos et al., 2003). São, pois, esses os objetivos deste trabalho.

De acordo com estudos recentes, a população juvenil é aquela que apresenta maior destreza digital. Um estudo  desenvolvido por Madden et al. (2013), junto de 802 adolescentes (12-17 anos), apurou que o Facebook está profundamente integrado no quotidiano adolescente, sendo cada vez maior o número de informação pessoal partilhada. Em 2010 o estudo HBSC/OMS revelou que cerca de 98,6% dos jovens portugueses com 11, 13 e 15 anos têm, pelo menos, um computador em casa e 92,9% tem acesso à Internet (Matos et al., 2010). Mais recentemente, um estudo europeu com jovens dos 9 aos 16 anos de idade (N=25 000), revelou que as crianças portuguesas (67%) são aquelas que mais acedem à Internet através dos próprios computadores portáteis (Haddon, Levingstone & EU Kids Online Network, 2012). Nesse estudo, Portugal apresentou uma das médias mais baixas para a primeira utilização da Internet (igual a 10 anos de idade), concluindo-se que a população jovem é aquela que domina o uso dessa TIC.

Com base nesses dados, facilmente se compreende a maior vulnerabilidade dos jovens para a vitimação e a perpetração do cyberstalking (Bilic, 2013; Wolak, Mitchell, & Finkelhor, 2006, 2007).  Para essa maior vulnerabilidade, concorre também o facto de os adolescentes apresentarem características específicas, como por exemplo o desenvolvimento incipiente da sua identidade e habilidade social (Subrahmanyam, Greenfield, & Tynes, 2004). A curiosidade e a necessidade em explorar múltiplos contextos sociais (virtuais e reais), diferentes papéis e estilos relacionais são superiores nos adolescentes, maximizando-se a exposição a diferentes relações interpessoais (Matos, 2008; Subrahmanyam et al., 2004). O estudo do cyberstalking não deve por isso circunscrever-se à população adulta: os adolescentes também são potenciais atores desse fenómeno, quer como alvos, quer como perpetradores. É importante entender o impacto destas relações sociais virtuais precoces e potencialmente desestruturantes nas estruturas cognitivas e afetivas dos adolescentes, de modo a atuar-se eficazmente (Kennedy & Kennedy, 2004).

Porém, o foco de investigação sobre cyberstalking tem-se centrado quase exclusivamente em população adulta e universitária (e.g., Carvalho, 2011; Melander, 2010; Sheridan & Grant, 2007; Spitzberg & Hoobler, 2002). Uma das explicações poderá ser o facto desta se situar já na idade adulta, evitando-se pedidos de autorização morosos junto dos cuidadores que, não raras vezes, dificultam o processo metodológico. Outro fator poderá ser a tendência para se confundir diferentes termos e equacionar, por exemplo, o assédio e a perseguição online entre os adolescentes como casos exclusivos de cyberbullying, abuso sexual e/ou sexting.

O presente artigo assume o cyberstalking como um fenómeno mais amplo do que os supracitados o qual, a par da conotação negativa, engloba uma conotação aparentemente positiva na génese do assédio por parte dos adolescentes. Tomem-se como exemplos os temas do amor não correspondido entre os jovens, quer sejam conhecidos ou não.

Face ao exposto, é necessário um debate crítico sobre a vitimação online entre os adolescentes e as suas implicações para a saúde e o bem-estar global dos mesmos. O reconhecimento dessa dimensão, das suas configurações possíveis e do seu potencial impacto só é possível através do investimento científico em metodologias abrangentes (e.g., quantitativas, qualitativas) e com um elevado rigor na consciencialização dos constructos. Algumas abordagens empíricas são algo limitadas justamente por não privilegiarem estudos com amostras abrangentes (e.g., população juvenil) e não conceberem objetivos mais inovadores e desafiantes (e.g., conhecer as (des) continuidades entre o cyberstalking versus o stalking e o cyberbullying).

Nesta sequência, está em curso um estudo empírico que pretende mapear o cyberstalking entre os adolescentes (12-16 anos de idade). Os principais objetivos são: 1) conhecer a prevalência de vitimação/perpetração; 2) analisar o perfil das cibervítimas e dos cyberstalkers; 3) caracterizar as dinâmicas, modus operandis e cenários do cyberstalking; 4) aceder às perceções sobre risco online e práticas parentais de supervisão online; e 5) conhecer os fatores de risco para uma maior vulnerabilidade como alvo. Este projeto visa, em última análise, promover a educação para a saúde, através da utilização positiva das TIC e a prevenção do ciberassédio e do cyberstalking em particular, entre os adolescentes. 

Em contraste com o plano internacional (e.g., Estados Unidos da América, Inglaterra, Nova Zelândia), Portugal ainda não integrou legalmente o stalking, nem qualquer estatuto relativo ao cyberstalking. O Código Penal Português não pune os agressores pelo crime de cyberstalking como um todo, mas por comportamentos isolados relacionados com o assédio sexual, a violência doméstica, a ameaça, a coação, entre outros. Será esta forma de criminalização suficiente para responsabilizar os (cyber)stalkers e para a proteção eficaz das vítimas?

O presente artigo avança com alguns contributos para a definição e demarcação do cyberstalking, dando conta da complexidade e das implicações deste para a saúde dos alvos.

 

Definindo o (Cyber)Stalking

À medida que as TIC se tornam um meio de comunicação de massas, assiste-se aum aumento de relatos de intimidação, assédio e violência experienciados por via das TIC, o que favorece o aparecimento de constructos inovadores que procuram dar significado às experiências individuais dos seus alvos (D’Ovidio & Doyle, 2003).

Cyberstalking define o uso da Internet, correio eletrónico ou outro dispositivo de comunicação com o objetivo de perseguir outra pessoa (US Department of Justice, 1999). Este envolve um grupo de comportamentos em que um indivíduo, grupo ou organização utiliza as TIC para assediar outro indivíduo, grupo ou organização (Bocij, 2004). O National Intimate Partner and Sexual Violence Survey (NISVS, 2010) revelou que 18% das vítimas de stalking autoidentificadas tinham entre 11 e 17 anos de idade. Finkelhor, Mitchell, e Wolak (2000) verificaram também que 6% dos jovens entre os 10 e 17 anos experienciaram assédio online. Sessenta e três por cento dos seus cyberstalkers eram jovens e 24% eram adultos. O estudo transcultural de Ferreira, Martins e Abrunhosa (2011), com jovens dos 10 aos 18 anos, constatou inclusive que o cyberstalking é o terceiro risco online mais relatado pelos adolescentes portugueses. Por sua vez, Carvalho (2011), a partir de uma definição mais abrangente, revelou que 74,8% dos universitários portugueses experienciaram pelo menos um comportamento de cyberstalking.

Internacionalmente, o (cyber)stalking é identificado por: 1) um padrão de comportamentos, 2) repetidos, 3) intencionais e 4) não desejados pelo(s) seu(s) alvo(s) (Spitzberg & Cupach, 2007). Alguns dos seus comportamentos incluem ações rotineiras e aparentemente inofensivas (e.g., postar na página de Facebook, envio de correio eletrónico), mas também ações inequivocamente intimidatórias (e.g., envio de mensagens ameaçadoras, roubo de identidade) (Grangeia & Matos, 2011). Esses podem, ainda, ser realizados de forma direta (e.g., dirigidos diretamente ao alvo para exercer coação, controlo e intimidação) ou indireta (e.g., criação/divulgação de texto e imagens falsas com cariz obsessivo) (Bocij, 2003, 2004). Estudos anteriores  revelam que, em média, são concretizados seis comportamentos diferentes, perdurando cerca de um a dois anos (Sheridan et al., 2003; Tjaden, 2009). A pluralidade desses atos, pela sua natureza, contexto, persistência, deliberação e indesejabilidade, constitui uma autêntica campanha despoletando não raras vezes a 5) perceção de medo justificável ou ameaça credível1 (Mullen, Pathé, & Purcell, 2001; Sheridan et al., 2003). De acordo com Sheridan et al. (2003), o critério de medo justificável e ameaça credível são, inclusive, aqueles que permitem distinguir o padrão de ciberassédio do de cyberstalking. Embora os comportamentos de ambos os constructos se sobreponham, segundo estes autores, a principal diferença assenta no facto do cyberstalking despoletar maior medo e stress emocional (Sheridan et al., 2003). Por outras palavras, o cyberstalking é uma forma agravada de ciberassédio e poderá ser considerado um crime doloso, tal como se assume no stalking em alguns países (Luz, 2012).

 

As indefinições do cyberstalking: Um olhar crítico

A aparente simplicidade da definição apresentada não tem afastado a grande ambiguidade na conceptualização do cyberstalking. Enquanto alguns autores (e.g., Bocij & McFarlane, 2002) assumem o cyberstalking como uma problemática social distinta, outros conceptualizam-no como uma mera extensão do stalking (Meloy, 1998; Ogilvie, 2000). Persistem, portanto, muitas questões em aberto quanto à operacionalização e criminalização do cyberstalking e sobre as implicações do mesmo para o desenvolvimento saudável dos adolescentes. Se por um lado este fenómeno é entendido por um conjunto de comportamentos, por outro, subsistem incoerências sobre a quantidade de comportamentos necessários (e.g., algumas definições legais admitem ser necessários dois ou mais comportamentos [e.g., Michigan Compiled, leis 750.411h,750.411i], enquanto outras não fazem qualquer referência]). A par disso, se internacionalmente é consensual que a repetição é um dos conceitos centrais do cyberstalking, mantém-se a indefinição acerca da sua duração (Bocij, 2003; Spitzberg & Cupach, 2007): o padrão de conduta deverá perdurar duas semanas, seis meses ou dois anos?

É deveras difícil perceber onde está o limite entre o lícito e o ilícito. Contudo, não será legítimo impor um limite temporal necessário para a experiência de cyberstalking, nem um número mínimo/máximo de comportamentos. Qualquer enquadramento temporal e comportamental implicará sérios constrangimentos sociais e criminais (Bocij, 2003). Do mesmo modo, a descrição exaustiva das condutas e das TIC que medeiam o contacto indesejado pode ser inútil, uma vez que um número finito de TIC e de atos poderá culminar na exclusão de experiências diferentes, mas igualmente válidas. O constante avanço tecnológico faz também com que uma listagem esteja rapidamente desatualizada (devido ao surgimento de novas formas de intrusão) (D'Ovidio & Doyle, 2003). Nesta sequência, dever-se-á optar por uma definição suficientemente abrangente de modo a incluir todas as experiências e graus de vitimação (i.e., desde o menos impactante ao mais intrusivo). O alvo é quem está apto a avaliar se a versatilidade, persistência, durabilidade e intensidade dos comportamentos configuram um cenário de perseguição intimidatório, intrusivo e indesejado. É, pois, o seu caráter intrusivo que permite discernir um padrão de comportamentos lícitos dos criminais, independentemente da quantidade ou classificação dos atos perpetrados. Porém, importa atender às diferenças encontradas nas perceções sobre o cyberstalking. Mais especificamente, pode ter lugar diferentes perceções dependendo do sexo, do tipo de relação anterior com  o cyberstalker, da cultura ou do país onde se realize o estudo (Mullen, Pathé, Purcell, & Stuart, 1999; Sheridan et al., 2003; Tjaden, 2009). Genericamente, os homens têm versões mais brandas da sua experiência comparativamente às mulheres e estas identificam mais facilmente um caso de stalking e a respetiva intenção do perpetrador em causar medo/apreensão, comparativamente aos homens (Dennison & Thomson, 2002; Grangeia, 2012).

 

Mundo online versus offline: (Des)continuidades?

Será que o cyberstalking é um conjunto de comportamentos independentes do stalking convencional? Ou será apenas uma extensão do mesmo?

Alguns investigadores têm desenvolvido estudos comparativos entre o stalking e o cyberstalking (Alexy, Burgess, Baker, & Smoyak, 2005; Curtis, 2012; Sheridan & Grant, 2007) e, na realidade, esses atestam uma grande probabilidade da ocorrência simultânea de stalking e de cyberstalking num único caso de assédio e perseguição. Um estudo com 4446 estudantes femininas americanas, apontou que 25% (n=581) das estudantes alvo de stalking foram também alvo de mensagens de correio eletrónico indesejadas (US Department of Justice, 1999). Spitzberg e Hoobler (2002) corroboram esta sobreposição entre  os fenómenos, ao concluírem que 25% (n=232) do stalking entre os universitários foi mediado pelo computador. Dessa forma, os casos de assédio e perseguição podem variar entre integrar exclusivamente o cyberstalking, exclusivamente o stalking, ou incluir ambos os padrões de perseguição (Sheridan & Grant, 2007).Uma análise comparativa entre o stalking e o cyberstalking permite perceber que ambos os constructos partilham, por definição, os conceitos centrais anteriormente descritos (e.g., repetição, intencionalidade, indesejabilidade, medo e ameaça credível). Paralelamente, o stalker e o cyberstalker partilham o desejo de exercer poder, controlo e influência sobre o alvo, tendendo a escalar na frequência e na gravidade da perseguição, face à não correspondência do alvo (Reno, 1999). Em ambos, os agressores são frequentemente (ex-)parceiros íntimos, ainda que os cyberstalkers tendam mais facilmente a assediar indivíduos desconhecidos, familiares, colegas e amigos (Curtis, 2012; Phillips & Spitzberg, 2011; Sheridan & Grant, 2007). Todavia, o facto do cyberstalking se concretizar a partir das TIC e no ciberespaço permite que o cyberstalker se mova num ambiente especialmente atraente e vantajoso. Ou seja, existem particularidades do cyberstalking que contrastam com o stalking. Primeiro, o cyberstalking extravasa as barreiras geográficas associadas ao stalking. O cyberstalker tem a oportunidade de perseguir o alvo quer esteja na mesma zona geográfica, ou num país diferente (Reno, 1999). A segunda vantagem prende-se com a possibilidade de anonimato através das TIC, favorecida pela variedade de táticas gratuitas e de fácil concretização (Reno, 1999). Uma vez protegido pelo anonimato, torna-se mais difícil identificar a identidade do autor dos contactos indesejados (Bocij, 2003). Por este motivo, assume-se que os cyberstalkers exibem, normalmente, uma maior proficiência informática comparativamente aos stalkers convencionais (Hutton & Haantz, 2003). Em terceiro lugar, as TIC, e especificamente a Internet, facilitam o processo pelo qual o cyberstalker incentiva outras pessoas a assédiar o alvo (Reno, 1999). Esta forma de perseguição denomina-se stalking por procuração (stalking by proxy) e pode incluir a divulgação do contacto pessoal do alvo em páginas de encontros sexuais (Bocij & McFarlane, 2002). O alvo fica assim exposto e vulnerável a estranhos, sendo alvo de solicitações sexuais indesejadas e ofensivas (Bocij & McFarlane, 2003). O quarto aspeto dissonante, prende-se às variáveis demográficas dos perpetradores (Curtis, 2012). Enquanto no stalking são os indivíduos mais velhos e do sexo masculino que habitualmente compõem o grupo de stalkers, no cyberstalking há uma maior probabilidade de os agressores serem mais jovens e do sexo feminino (Alexy, et. al, 2005; Curtis, 2012; Finkelhor et al., 2000). De facto, a população mais jovem é aquela que apresenta maior aptidão e destreza digital. Similarmente, o ciberespaço é o ambiente privilegiado para o ensaio e desenvolvimento de certas competências sociais e para a exploração da identidade e sexualidade jovem (Matos, 2008; Subrahmanyam et al., 2004), bem como  um lugar onde os utilizadores podem apresentar-se sob a forma de um avatar (personagem fictícia). Assim, há uma maior desinibição comportamental desta população no ciberespaço  e uma maior sensação de liberdade, criatividade e relaxamento, especificidades que podem também explicar a maior propensão do sexo feminino para esse tipo de assédio (Blais, Craig, Pepler, & Connolly, 2008; Matos, 2008). Desta forma, o misticismo que envolve o ciberespaço e a natureza anónima da Internet leva a que indivíduos com reduzida probabilidade para protagonizar o stalking convencional, passem facilmente a ter alta probabilidade no cyberstalking (McGrath & Casey, 2002).

Face ao exposto, entende-se que o cyberstalking não tem que ser necessariamente entendido como distinto do stalking, mas sim como uma estratégia i) inovadora, ii) versátil (variedade de recursos mediadores e de potenciais atos indesejados), iii) competente (assédio em vários contextos, na esfera pública e privada), iv) omnipresente (maior probabilidade de contacto diário com o alvo) e v) extensa (maior alcance no número e na diversidade de alvos).

Renova-se assim a pertinência dos estudos  terem como foco o paralelismo entre o stalking e o cyberstalking, centrando o seu interesse científico nas especificidades do cyberstalking na adolescência (e.g., dinâmicas, contextos,  intervenientes e impacto), em vez de na sua definição enquanto fenómeno extremado do stalking.

 

Cyberstalking versus cyberbullying: Conceitos distintos, a mesma realidade? 

As diferentes definições e amostragens adotadas no estudo do cyberstalking são um dos entraves à comparação fiável da sua incidência e à compreensão da essência do fenómeno (Sheridan & Grant, 2007).Devido a isso, alguns estudos sobre ciber agressão, spamming, sexting e cyberbullying são erradamente citados como extensões de cyberstalking (Sheridan & Grant, 2007). Porém, uma análise aprofundada poderá demarcar o cyberstalking face aos restantes termos. A ciber agressão refere-se a um leque de atos que inclui todas as formas de violência realizada no ciberespaço, perpetradas de forma unidirecional ou bidirecional (Dempsey, Sulkowski, Dempsey, & Storch, 2011). O spamming consiste no envio de mensagens de correio eletrónico com fins publicitários, enquanto o sexting refere-se ao envio e troca de mensagens de texto ou imagens com conteúdo sexualmente explícito (Farber, Shafron, Hamadani, Wald, & Nitzburg, 2012).

A par das extrapolações supracitadas, a demarcação ­entre cyberstalking ecyberbullying é aquela que tem suscitado maior debate científico. Tal controvérsia tem ainda mais relevo quando o foco de atenção se concentra na população adolescente, às quais se associam comummente experiências entre os pares e em contexto escolar.

O cyberbullying é uma extensão do bullying e define-se por ser uma forma de violência que recorre às TIC para perpetrar comportamentos repetidos, intencionais e hostis, contra o(s) par(es) que pertencem ao mesmo contexto escolar (Bilic, 2013; Hinduja & Patchin, 2008; Tokunaga, 2010). O cyberbullying justifica-se ainda pelo desequilíbrio de poder existente entre os intervenientes (Amado, Matos, Pessoa, & Jager, 2009; Dempsey et al., 2011). Relativamente ao seu protótipo, os (cyber)bullies são reconhecidos como mais altos, fortes, agressivos, impulsivos e com um maior status e popularidade entre o grupo de pares (Wang, Iannotti, & Nansel, 2009), enquanto os alvos são mais fracos, tímidos, introvertidos, com baixa autoestima e menor número de amigos (Hinduja & Patchin, 2010; Matos & Gonçalves, 2009). Através da agressão, ameaça e coerção, o (cyber)bullie adquire um especial destaque e respeito perante os pares, reafirmando a sua posição social no grupo (Almeida, 2006).

Deste modo, a conceção que todo o tipo de vitimação online vivida pelos adolescentes constitui cyberbullying e que o cyberstalking na adolescência é apenas um subtipo de cyberbullying (Cf., Amado et al., 2009; Beran & Li, 2007; Ybarra & Mitchell, 2004) éum mito. Nem toda a vitimação online ocorre unicamente entre pares conhecidos, que partilham o mesmo contexto escolar e que cumpram o critério de desequilíbrio de poder. Testemunho disso é o estudo de Madden et al. (2013), que concluiu que 17% dos jovens que navegam na Internet já foram alvo de mensagens de estranhos, que causaram medo e desconforto. Em 2005, um estudo com adolescentes (N=1 501) entre os 10 e os 17 anos revelou também que 55% dos ciberagressores apenas faziam parte da rede virtual do alvo e que 49% dos adolescentes conseguiram ignorar as mensagens recebidas ou bloquear os contactos indesejados (Wolak et al., 2006). A organização Working to Halt Online Abuse (2010) revelou também que 71% das mulheres que se auto identificaram como cibervítimas (57%) admitiram ter uma relação anterior com o cyberstalker (e.g., ser vizinho, familiar, ex-parceiro). Ao equiparar-se as dinâmicas de cyberbullyingversus cyberstalking poder-se-á ainda averiguar que, quanto ao critério de poder, o bullie apresenta uma posição hierárquica superior ao alvo à priori à vitimação e é essa característica que permite e justifica o início da violência. Ao invés, no cyberstalking  essa posição ‘vantajosa’ do cyberstalker é normalmente conquistada ao longo do processo de vitimação e não à priori. É através do processo da escalada dos comportamentos que o cyberstalker se torna cada vez mais dominador e intrusivo (Grangeia & Matos, 2010). De salientar ainda a diferente motivação para o comportamento de cyberstalking e decyberbullying. Enquanto no cyberbullying a motivação é unicamente negativa (Amado et al., 2009; Ybarra & Mitchell, 2004), no cyberstalking existe uma maior variedade de motivações. A meta-análise de Spitzberg e Cupach (2003) comprova essa diversidade ao concluir a presença de fatores: 1) íntimos (e.g., ciúme, abandono ou rejeição); 2) associados à agressão (e.g., raiva, inveja, intimidação, controlo), 3) a desordens mentais (e.g., transtornos delirantes ou de personalidade) e 4) ao conflito de tarefas (e.g., disputas de dinheiro), na motivação para o stalking. Do mesmo modo, enquanto no cyberbullying existe plena consciência do impacto e do medo que o alvo irá percecionar (Carvalhosa, Lima, & Matos, 2001), no cyberstalking esta consciência poderá não existir, principalmente quando motivados por razões íntimas. Contrariamente à noção de causalidade presente no bullying (i.e., prática do comportamento com a consciência de que irá causar determinado impacto), assiste-se a noção de previsibilidade do cyberstalking (i.e., o autor tem, ou deveria ter, consciência de que o alvo experienciará um medo razoável). O conceito de previsibilidade é inclusive explicitado na alínea b) do Model Stalking Code da legislação norte-americana. Deste modo, o cyberstalking resulta sempre de um padrão de comportamentos com contornos meticulosos, deliberados e extensíveis a uma maior audiência e motivação (Spitzberg & Cupach, 2003).

Neste sentido, alerta-se a sociedade e os experts na área para a urgência de ações psicoeducativas que visem a correta identificação dos fenómenos em causa. No caso do cyberbullying, é crucial operacionalizar o grau de parentesco entre os intervenientes, bem como o(s) motivo(s) que precipita(m) o comportamento de assédio (Morais, 2007). A avaliação precipitada e adulterada dos atos cibernéticos poderá comprometer o processo de orientação e proteção do bem-estar dos alvos, e tardar a resolução eficaz de uma situação adversa. 

 

DISCUSSÃO

O cyberstalking na adolescência é um fenómeno recente, complexo, inovador, distinto do cyberbullying e de outras formas de vitimação entre adolescentes.

Sublinha-se a necessidade da definição psicológica e jurídica dos conceitos de duração e ameaça privilegiarem termos mais abrangentes, como “durável” e “razoável”, em detrimento de outros mais objetivos e limitados. Ainda que essa terminologia encerre o risco de impedir a criminalização do cyberstalking de modo objetivo, essa é a forma de prevenir a descredibilização de possíveis vítimas. A singularidade deste fenómeno impõe novos contributos sensíveis às interpretações e às influências culturais do fenómeno, uma vez que o cyberstalking, sendo um produto da construção social, pode ter implicações evidentes para a perceção de bem-estar e saúde global nos adolescentes.

O cyberstalking não é substancialmente diferente do stalking convencional. Os estudos que documentam a ocorrência simultânea de comportamentos online e offline permitem concluir que o cyberstalking poderá ser um modo complementar de perseguir e intimidar no mundo real. Não obstante, a omnipresença, a versatilidade e a inovação das estratégias que o cyberstalking ostenta fazem com que este fenómeno encerre um maior potencial de intrusão, exequibilidade e extensão, comparativamente ao stalking convencional.

Já o cyberstalking e o cyberbullying têm propriedades claramente distintas: o contexto, a relação entre perpetrador e alvo, a posição hierárquica destes e a motivação do agressor. Considerar que a violência entre pares se restringe ao cyberbullying significa ignorar a complexidade das dinâmicas e motivações que a violência interpessoal entre os adolescentes poderá significar.

Sendo pois evidente que nem toda a vitimação online adolescente poderá ser qualificada como cyberbullying, urge um maior investimento social e científico no reconhecimento e na atenção do cyberstalking na adolescência. O desenvolvimento de estudos com design mistos, a análise das complexidades do cyberstalking, da sua vivência (e.g., significados, impacto) e das respetivas necessidades na educação para a saúde, são outras das prioridades. Enquanto não se investir no reconhecimento e no estudo do cyberstalking é certo que, social e politicamente, é como se o problema não existisse.

 

REFERÊNCIAS

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Endereço para Correspondência

Escola de Psicologia, Universidade do Minho; e-mail: filipa.psi@hotmail.com

 

Recebido em 15 de Junho de 2013/ Aceite em 17 de Março de 2014

 

NOTAS

1 Por ameaça credível entende-se que qualquer “pessoa razoável” sujeita às mesmas circunstâncias que o alvo experiencia um nível semelhante de medo, ansiedade, insegurança e ameaça (Tjaden, 2009).

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