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Psicologia, Saúde & Doenças
versão impressa ISSN 1645-0086
Psic., Saúde & Doenças vol.19 no.1 Lisboa abr. 2018
https://doi.org/10.15309/18psd190105
Dor referida: uma breve discussão sobre a percepção da dor
Referred pain: a brief discussion on the perception of pain
Juliana Alvares Duarte Bonini Campos1,*, Fernanda Salloume Sampaio Bonafé2, & João Maroco3
1Departamento de Alimentos e Nutrição, Faculdade de Ciências Farmacêuticas, Universidade Estadual Paulista - UNESP; jucampos@fcfar.unesp.br
2Faculdade de Odontologia de Araraquara. Universidade Estadual Paulista – UNESP; fernandassbonaf@foar.unesp.br
3Instituto Universitário de Ciências Psicológicas, Sociais e da Vida; William James Center for Research (WJCR). jpmaroco@ispa.pt
Endereço para Correspondência
RESUMO
Verificar a influência do período de referência no relato da Intensidade e Interferência da dor na vida de indivíduos adultos. Participaram 832 indivíduos com dor nas últimas 24 horas. Como instrumentos de medida utilizou-se o Inventário Breve de dor (BPI), o Questionário de Auto eficácia em relação à Dor (PSEQ) e a Escala de Castastrofização da Dor (PCS). O BPI foi aplicado utilizando dois períodos de referência: última experiência dolorosa e últimas 24 horas. Os escores de Intensidade da dor, Interferência da dor nas atividades, Interferência da dor na afetividade e de Interferência da Dor foram comparados entre grupos com diferentes condições dolorosas (G1: dor há menos de 3 meses, G2: dor há mais de 3 meses recorrente, G3: dor há mais de 3 meses contínua). Os indivíduos foram reclassificados considerando os escores finais em GA-relato da última experiência dolorosa>dor nas últimas 24hs, GB-última experiência dolorosa<24hs e GC-última experiência dolorosa=24hs. Os escores médios de Intensidade e de Interferência da dor foram maiores para última experiência dolorosa para todos os grupos. Os indivíduos do G3 apresentaram maiores escores para última experiência dolorosa e interferência da dor nas atividades. Os indivíduos do GB apresentaram maiores escores de catastrofização e menores de auto eficácia. Verificou-se influência do período de referência nos escores de intensidade e interferência da dor na vida dos indivíduos.
Palavras-Chave: dor, memória, psicometria
ABSTRACT
To verify the influence of the reference period on the Intensity and Interference of pain in the life of adult individuals. 832 subjects with pain in the last 24 hours participated. The Brief Pain Inventory (BPI), the Self-Efficacy Questionnaire for Pain(PSEQ) and the Pain Catastrophization Scale (PCS) were used as measuring instruments. BPI was applied using two reference periods: last pain experience and last 24 hours. Pain Intensity, Pain Interference on daily activities, Pain Interference on affectivity were compared between groups with different pain conditions (G1: pain for less than 3 months, G2: recurrent pain for more than 3 months, G3: continuous pain for more than 3 months). The individuals were reclassified, considering the final scores from both BPI and PCS, into GA - report of the last painful experience> pain in the last 24hs, GB - last painful experience <24hs and GC - last painful experience = 24hs. Mean Intensity and Pain Interference scores were higher for last pain experience for all groups. G3 subjects presented higher scores for the last pain experience and pain interference in the activities. GB individuals had higher catastrophic scores and lower self-efficacy scores. There was an influence of the reference period on the pain intensity and interference scores in individuals' lives.
Keywords: pain, memory, psychometrics
A mensuração da dor tem sido um desafio constante para pesquisadores e profissionais da área. Parte desse desafio deve-se aos múltiplos pilares que sustentam a estruturação desse conceito que consideram, por exemplo, desde aspectos biológicos e fisiológicos até aspectos perceptivos, sociais e comportamentais. Considerando esses pilares, diferentes abordagens teóricas para o estudo da dor têm sido propostas, por exemplo biopsicossocial (Waddell, 2004), comportamental (Turk, Meichenbaum, & Genest, 1983), psicanalítica (Birman, Fortes, Perelson, 2010), psicofisiológica (Simurro, 2014)). Contudo, independente da teoria escolhida para abordagem da dor, a percepção e o relato da condição dolorosa realizados pelos seus portadores constitui parte fundamental do entendimento desse processo.
Cabe destacar que a construção da percepção se dá por meio de processos subjetivos sendo, portanto, uma experiência rica e multidimensional (Portnoi, 2017; Silva & Ribeiro-Filho, 2011). Assim, a avaliação da percepção individual da dor torna-se relevante para que se tenha uma compreensão integrada do fenômeno doloroso. Contudo, deve-se lembrar que essa percepção é construída a partir vivências imediatas e daquelas resultantes do reconhecimento de emoções e sensações experimentadas (Nasio, 2013) o que torna a mensuração da mesma um grande desafio. Outro aspecto a ser considerado é que o relato de dor de um indivíduo é realizado considerando um período de tempo específico, ou seja, parte-se de uma referência temporal para avaliação da percepção da dor (por exemplo: dor “no momento” da avaliação, “nas últimas 24 horas”, “na última semana”, “última experiência dolorosa”). Essa referência deve ser considerada devido tanto à sua relevância no entendimento e/ou acompanhamento do processo doloroso em si como também na construção da percepção individual desse processo. Desse modo, a identificação da influência do período de referência na percepção da dor pode fornecer subsídios relevantes para tomada de decisão clínica tornando as abordagens mais direcionadas e resolutivas.
Assim, na tentativa de introduzir uma breve discussão acerca da percepção da dor realizou-se esse estudo buscando verificar a influência do período de referência no relato da Intensidade e Interferência da dor na vida de indivíduos adultos com diferentes características de dor.
MÉTODO
Participantes
Tratou-se de estudo observacional. Foram convidados a participar 1176 indivíduos adultos que buscaram atendimento odontológico em uma instituição pública nos anos de 2015 e 2016. Foram incluídos apenas indivíduos que relataram a presença de dor nas últimas 24 horas. O tamanho mínimo de amostra foi estimado considerando a necessidade de 5 a 10 sujeitos por parâmetro para cada modelo a ser testado. Os modelos avaliados estão apresentados na Figura 1 (modelo fatorial BPI=26 parâmetros, PSEQ=20 e PCS=29). Esses modelos foram ajustados separadamente aos dados e, portanto, o tamanho mínimo amostral necessário estimado foi de 145 a 290. Participaram 832 indivíduos (80,6% do gênero feminino, Midade=38,9 anos, DP=10,8). A realização desse trabalho foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa em Seres Humanos da UNESP (CAAE 14986014.0000.5416). Os indivíduos que concordaram em participar assinaram Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
Modelos fatoriais: A: Inventário Breve de Dor (BPI), B: Escala de Catastrofização da Dor e C: Questionário de Auto eficácia em relação à Dor (PSEQ)
Material
Como instrumentos de medida utilizou-se o Inventário Breve de dor (BPI; Cleeland, 2009), o Questionário de Auto eficácia em relação à Dor (PSEQ; Sarda, Nicholas, Pimenta, & Asgharl, 2007) e a Escala de Castastrofização da Dor (PCS; Sullivan, Bishop, & Pivik, 1995). O BPI foi aplicado utilizando dois períodos de referência: última experiência dolorosa e últimas 24 horas.
Procedimento
Para coleta dos dados, foram realizadas entrevistas individuais em ambiente reservado. Para classificação dos indivíduos segundo a característica dolorosa considerou-se a proposta da Associação Internacional de Estudo da dor (International Association for the Study of Pain (IASP), 1979; Pain, 1994). Assim, as informações levantadas foram: 1) presença/ausência de dor nas últimas 24h, 2) duração da dor (relatada temporalmente: minutos, horas, dias, semanas, meses) 3) padrão da dor (recorrente ou contínua). Assim, no grupo G1 foram incluídos os indivíduos que relataram dor nas últimas 24h anteriores à participação no estudo e com tempo de duração da dor menor do que 3 meses (dor<3 meses). No G2 foram alocados indivíduos com dor há mais de 3 meses e que relataram que sua dor ‘vai e volta' com alguma frequência (dor>3 meses, recorrente) enquanto no G3 foram incluídos indivíduos com dor há mais de 3 meses e que relataram dor contínua (dor>3 meses, contínua). Assim, considerando que nesse estudo os indivíduos foram distribuídos em grupos segundo a característica dolorosa destaca-se que cada grupo contemplou a estimativa de tamanho mínimo amostral. Com relação à característica da dor, 395 (47,5%) participantes relataram apresentar dor há menos de 3 meses, 256 (30,8%) há mais de 3 meses com episódios recorrentes e 181 (21,8%) dor contínua há mais de 3 meses.
Na análise fatorial confirmatória, realizada para avaliação do ajustamento do modelo do BPI aos dados, tanto referentes ao relato da última experiência dolorosa, quanto das últimas 24hs; obteve-se a matriz de pesos de regressão (Quadro 1). Esses pesos foram definidos para amostra de estudo e foram considerados para ponderação das respostas dadas aos itens do BPI buscando a obtenção de um escore global dos fatores mais acurado Maroco, 2014). Os escores globais de “Intensidade da dor”, “Interferência da dor nas atividades”, “Interferência da dor na afetividade” e de “Interferência da Dor” (fator de segunda ordem) foram comparados entre os grupos (G1, G2 e G3). Para tanto, utilizou-se Análise de Variância para medidas repetidas mista (ANOVA). Em seguida, os indivíduos foram reclassificados considerando os escores finais de cada fator utilizando os dois períodos de referência de modo a compor 3 grupos: GA-escore obtido a partir do relato da última experiência dolorosa>escore obtido no relato da dor nas últimas 24hs, GB-relato da última experiência dolorosa<nas últimas 24hs e GC-relato da última experiência dolorosa=últimas 24hs. A associação entre esses grupos e a característica dolorosa (G1, G2 e G3) foi avaliada utilizando teste do qui-quadrado (c2). Para GA e GB os escores de auto eficácia e de catastrofização foram comparados utilizando ANOVA a um critério. Esses escores também foram obtidos utilizando a matriz de pesos de regressão gerada na AFC (Quadro 1). Utilizou-se nível de significância de 5%.
RESULTADOS
No Quadro 2 apresenta-se a comparação do escore médio (±desvio-padrão) dos fatores do Inventário Breve de Dor – BPI, segundo a característica dolorosa e o período de referência utilizado.
Os escores médios de Intensidade e de Interferência da dor (geral, nas atividades e na afetividade) foram significativamente maiores quando se referem à última experiência dolorosa para todos os grupos (G1, G2, G3) e independentemente da característica clínica da dor. Os indivíduos com dor há mais de 3 meses de maneira contínua (G3) apresentaram escores da última experiência dolorosa significativamente maiores (para todos os fatores do BPI) do que aqueles com dor há menos de 3 meses ou com dor recorrente. Com relação à dor nas últimas 24 horas, os escores de intensidade e de interferência da dor geral e na afetividade foram significativamente maiores no grupo com dor há menos de 3 meses (G1) e com dor contínua (G3). A interferência da dor nas atividades foi maior no grupo com dor contínua. No Quadro 3 apresenta-se a distribuição dos participantes segundo a característica da dor e o agrupamento realizado a partir dos escores obtidos utilizando os diferentes períodos de referência (GA, GB e GC).
Em todos os grupos definidos a partir da característica da dor (G1, G2, G3) e para todos os fatores do BPI, nota-se prevalência significativamente maior de indivíduos cujo escore obtido a partir do relato da última experiência dolorosa foi maior do que o obtido no relato da dor nas últimas 24hs (GA). A comparação do escore médio de Catastrofização e de Auto eficácia entre os indivíduos do GA e GB encontra-se no Quadro 4.
Os indivíduos do GB apresentaram maiores escores de catastrofização (para intensidade, interferência da dor geral e na afetividade) e menores escores de auto eficácia (para interferência da dor geral e na afetividade) do que os indivíduos do GA.
DISCUSSÃO
Esse estudo verificou influência significativa do período de referência nos escores de intensidade e interferência da dor na vida dos indivíduos estimados a partir de auto relato. Os escores médios tanto de intensidade quanto de interferência foram significativamente maiores quando o período de referência utilizado foi a última experiência dolorosa. Além disso, houve maior prevalência de indivíduos que reportaram maiores escores quando o período de referência utilizado foi a última experiência dolorosa (GA). Assim, pode-se sugerir uma construção da percepção dolorosa influenciada pelas vivências e suas interpretações, ou seja, as sensações podem apresentar componentes de uma reconstrução. Como expresso por Nasio (2013, p.221) “O passado que volta à consciência é apenas reflexo remoto de uma realidade...que captamos inevitavelmente deformada através do filtro de nossa percepção atual”. Apesar dessa deformação, esse é o relato perceptivo do indivíduo e para ele representa a real sensação dolorosa e, portanto, uma cuidadosa avaliação deve ser realizada buscando identificar elementos que possam ser relevantes para melhorar o manejo do tratamento da dor. O desvelamento desses elementos alarga o potencial de atuação dos profissionais uma vez que abre espaço para atuação tanto na condição clínica da dor propriamente dita quanto para elaboração de estratégias para ressignificação do papel desses elementos no processo de percepção dolorosa. Desse modo, sugere-se que a utilização clínica de dois períodos de referência para avaliação da dor pode ser interessante, especialmente frente a condições persistentes de dor.
Outro aspecto a ser relatado refere-se ao fato de indivíduos com maiores escores de dor nas últimas 24 horas (GB) terem apresentado maiores escores de catastrofização e menor auto eficácia. Com relação à catastrofização pode-se tecer uma relação bilateral para esses resultados, ou seja, a presença da dor pode ter contribuído para o aumento de pensamentos catastróficos ou esses podem ter intensificado a percepção da dor (Portnoi, 2017). A menor auto eficácia por sua vez, pode ser indicativo de que a reação do indivíduo frente a um evento recente é distinta daquela obtida a partir de eventos ocorridos anteriormente provavelmente pela inexistência de autoconhecimento relacionado aos esquemas mentais e estilos de enfrentamento da situação.
Assim, pode-se concluir que o período de referência adotado exerceu influência significativa nos escores de intensidade e interferência da dor na vida dos indivíduos. Entende-se que a percepção dolorosa dos indivíduos deve ser considerada, compreendida, respeitada e cuidada e, portanto, a utilização de dois períodos de referência pode ser interessante para melhorar a intervenção clínica e o prognóstico de diferentes condições dolorosas. Como limitação desse estudo pode-se relatar a ausência de aprofundamento de características clínicas da dor relatada nos dois períodos de referência do ponto de vista qualitativo o que poderia contribuir de maneira relevante na discussão aqui apresentada. Assim, sugere-se a realização de estudos futuros que possam enriquecer a reflexão acerca da influência do período de referência na percepção da dor.
AGRADECIMENTOS
À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) processos nº 2014/00874-3; 2014/17624-0; 2014/23611-8; 2015/23126-5, ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ) processo 301611/2015-7.
REFERÊNCIAS
Birman, J., Fortes, I., Perelson, S. (2010). Um novo lance de dados: psicanálise e Medicina na contemporaneidade. Rio de Janeiro: Cia de Freud. [ Links ]
Cleeland, C. S. (2009). The Brief Pain Inventory User Guide. Houston, Texas: The University of Texas MD Anderson Cancer Center.
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Maroco, J. (2014). Análise de equações estruturais: Fundamentos teóricos, Software & Aplicações (2 ed.). Pero Pinheiro: ReportNumber. [ Links ]
Nasio, J. D. (2013). Por que repetimos os mesmos erros. Rio de Janeiro: Zahar. [ Links ]
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Portnoi, A. G. (2017). A avaliação psicológica da pessoa com dor. In: M. Teixeira, E.Guertzenstein, & A.Portnoi, (Eds.), Dor e Saúde Mental (Vol. no prelo): Roca. [ Links ]
Sarda, J., Nicholas, M. K., Pimenta, C. A. M., & Asgharl, A. (2007). Pain-related self-efficacy beliefs in a Brazilian chronic pain patient sample: a psychometric analysis. Stress and Health 23(3), 185-190. doi: 10.1002/smi.1135
Silva, J. A., & Ribeiro-Filho, N. P. (2011). A dor como um problema psicofísico. Revista Dor, 12(2), 136-151. doi: 10.1590/S1806-00132011000200011
Simurro, S. A. B. (2014). Dor - Visão Psicofisiológica. In: Portnoi, A. G. (Ed.), DA Psicologia da Dor. São Paulo: Guanabara Koogan.
Sullivan, M. J. L., Bishop, S. R., & Pivik, J. (1995). The Pain Catastrophizing Scale: Development and validation. Psychological assessment, 7(4), 524-532. doi: 10.1037//1040-3590.7.4.524
Turk, D., Meichenbaum, D.,Genest, M. (1983). Pain and Behavioural medicine: a cognitive-behavioural perspective. New York: Guildford.
Waddell, G. (2004). The Back pain Revolution. Edinburg: Churchill Livingstone.
Endereço para Correspondência
Rodovia Araraquara Jaú, Km 01 – s/n, bairro: Campos Ville, 14800-903, Araraquara, SP, Brasil. e-mail: jucampos@fcfar.unesp.br
Recebido em 20 de Setembro de 2017/ Aceite em 31 de Dezembro de 2017