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Psicologia, Saúde & Doenças
versão impressa ISSN 1645-0086
Psic., Saúde & Doenças vol.20 no.2 Lisboa ago. 2019
https://doi.org/10.15309/19psd200201
Questionário de Impulsividade, Autoagressão e Ideação Suicida para Adolescentes (QIAIS-A): propriedades psicométricas
Questionnaire of Impulsiveness, Self-harm and Suicidal Ideation for Adolescents (QIAIS-A): psychometric proprieties
Evandro Morais Peixoto1, Bartira Palma2, Ialy Farias2, Nathalia Santana2, Daniela Zanini3, & José Maurício Bueno4
1Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Universidade São Francisco USF, Campinas, São Paulo - Brasil, evandro.peixoto@usf.edu.br
2Departamento de Psicologia, Universidade de Pernambuco UPE/Campus Garanhuns, Pernambuco - Brasil, bartirapalma@gmail.com, ialypsicologia@gmail.com, nathalia050132@gmail.com
3Departamento de Psicologia, Pontifícia Universidade Católica de Goiás PUC-Goiás, Goiânia - Brasil, daniela.zanini@pq.cnpq.br
4Departamento de Psicologia, Universidade Federal de Pernambuco UFPE, Recife, Pernambuco - Brasil, mauricio.ufpe@gmail.com
RESUMO
A autoagressão pode ser definida como o ato deliberado de se envenenar ou provocar lesões em si mesmo sem intenção suicida. Embora este comportamento envolva atos não letais, a literatura destaca a associação da autoagressão com ideação suicida e impulsividade. Este estudo teve como principais objetivos adaptar transculturalmente para o português brasileiro e estimar as primeiras evidências de validade e precisão do Questionário de Impulsividade, Auto-dano e Ideação Suicida para Adolescente QIAIS-A. Participaram do estudo 198 adolescentes com idade entre 12 a 19 anos (M= 14,02±1,55, 51,6% meninas), de escolas públicas do interior estado de Pernambuco - Brasil, que responderam ao QIAIS-A, à Escala de Depressão Ansiedade e Estresse (DASS) e à Escala de satisfação com a vida (ESV). Os diferentes métodos empregados para avaliação das propriedades psicométricas das escalas (Análise Paralela, Análise Fatorial Exploratória, coeficientes alfa de Cronbach e Omega de Mcdonald, Correlação de Pearson e Análise de Rede) indicaram estrutura bidimensional das escalas de Impulsividade e Autoagressão e estrutura unidimensional para Ideação Suicida, corroborando as expectativas teóricas, bons índices de consistência interna, evidências de validade convergente (DAS) e Divergente (ESV), e sugestões práticas para intervenções diante ao comportamento autoagressivo em adolescentes. Os resultados sugerem que a QIAIS-A em sua versão brasileira é uma medida adequada para avaliação da impulsividade, autoagressão e ideação suicida.
Palavras-chave: comportamento de risco, adolescência, automutilação, medida, precisão, psicometria
ABSTRACT
Self-harm is defined as a deliberate act of poisoning or causing injury to yourself with non-suicidal intent. Although this behavior involves non-lethal acts, specialized literature highlights the association of self-harm to suicidal ideation and impulsiveness. The objectives of this study were to conduct a cross-cultural adaptation to the Brazilian Portuguese and to estimate the first validity evidences and reliability of the Questionnaire of Impulsiveness, Self-harm and Suicidal Ideation in Adolescents QIAIS-A. The sample consisted of 198 students from public schools in the countryside of the state of Pernambuco - Brazil, with ages ranging from 12 to 19 years (M= 14,02±1,55, 51,6% girls). The participants answered the QIAIS-A, the Depression Anxiety and Stress Scale (Dass), and the Satisfaction with life Scale (ESV). The different methods employed to assess the psychometric properties of the scales (Parallel Analysis, Exploratory Factor Analysis, Cronbachs alpha coefficients and Mcdonald’s Omega, Pearson Correlation and Net Analysis) indicated two-dimensional structure for the scales of Impulsiveness and Self-harm, and unidimensional structure for Suicidal Ideation, corroborating theoretical expectations, good indices of internal consistency, convergent validity evidences (DAS) and divergent (ESV), and practical suggestion for interventions against self-harm behavior in adolescents. The results suggest that the brazilian version of the QIAIS-A is an appropriate tool for the assessment of impulsiveness, self-harm and suicidal ideation.
Keywords: risk behavior, adolescence, self-mutilation, measure, reliability, psychometry
A adolescência é uma fase do desenvolvimento caracterizada pela transição da infância para a idade adulta em que o indivíduo sofre alterações corporais e passa por adaptações a novas estruturas ambientais, sociais e psicológicas (Brito, 2011). Essas mudanças sociais e psicológicas podem constituir desafios significativos na vida do adolescente, podendo desencadear comportamentos considerados de risco como forma de tentar solucionar os conflitos vivenciados. Em alguns casos esses comportamentos podem evoluir para quadros psicopatológicos mais graves, como a autoagressão e ideação suicida (Borges & Werlang, 2006; Carvalho et al., 2015; Medeiros, 2016). Os comportamentos auto agressivos ocorrem, em sua maioria, com o objetivo de regulação de experiências emocionais (remover ou gerar sentimentos), visando a redução de estados afetivos negativos como ansiedade, tristeza e memórias evocadoras de experiências dolorosas (Medeiros, 2016; Nunes, 2012).
A autoagressão, entendida como o ato deliberado de se envenenar ou provocar uma lesão em si mesmo sem intenção de se matar (Nunes, 2012; Ougrin, Tranah, Stahl, Moran, & Asarnow, 2015), é considerada um dos fortes preditores de morte por suicídio em adolescentes (Hawton & Harriss, 2007). Apesar do comportamento não ter intenção suicida, em sua origem, e ser realizado por meio de métodos considerados pouco letais (e.g. cortes, queimaduras, entre outros) pode, por vezes, resulta em morte não intencional.
A autoagressão está associada com impulsividade (Claes et al., 2010) e indivíduos com histórico de autoagressão apresentam maior ideação suicida (Andover & Gibb, 2010; Carvalho et al., 2015) e maior probabilidade de cometer tentativa de suicídio (Claes et al., 2010). O suicídio é a segunda maior causa de morte de pessoas entre 15 e 29 anos (Vrshek-Schallhorn, Czarlinski, Mineka, Zinbarg, & Craske, 2011; World Health Organization - WHO, 2018). No Brasil, em 2012, calcula-se que 11.821 pessoas suicidaram (WHO, 2014). Contudo, estima-se que a tentativa de suicídio é de 10 a 20 vezes maior do que o número de suicídios consumados (Medeiros, 2016). Por isso, o investimento em intervenções que possam auxiliar na prevenção desse fenômeno é desejável. Um dos desafios que se apresentam aos pesquisadores e profissionais da área da saúde é a necessidade de desenvolvimento de instrumentos que auxiliem na avaliação dos indivíduos e diagnóstico de comportamentos de risco, contribuindo para propostas de intervenções eficientes.
Entretanto, observa-se na literatura brasileira a carência de estudos empíricos sobre o tema, o que é agravado pela falta de instrumentos de medida desses construtos com evidências de validade para a população de adolescentes brasileiros. De fato, esse é um problema que se estende para adolescentes de uma forma geral (Carvalho et al., 2015). Nessa direção, alguns instrumentos já foram desenvolvidos para a avaliação desses construtos (autoagressão, impulsividade e ideação suicida), como o FASM - Functional Assessment of Self-Mutilative Behaviors (Lloyd, 1997), que avalia comportamentos de automutilação, a BIS 11 - Escala de Impulsividade de Barrat (Diemen, Szobot, Kessler, & Pechanski, 2007), que avalia impulsividade, e a BSI - Escala de Ideação Suicida de Beck (Cunha, 2001). A FASM, apesar de já ser utilizada no contexto brasileiro (Giusti, 2013), não possui estudos de evidências de validade no contexto brasileiro, diferentemente da BIS 11 e da BSI. Dessa forma, a autoagressão é um construto com carência de instrumentos de avaliação no Brasil. Além disso, de acordo com Carvalho et al. (2015), é comum a falta de compreensão por parte dos profissionais sobre os processos mentais envolvidos na avaliação, julgamento, resolução de problemas e início do comportamento de autolesão. Os autores construíram um instrumento de auto-resposta que abarca a avaliação dos três construtos, a Impulse, Self-Harm and Suicide Ideation Questionnaire (QIAIS-A) o que facilita a compreensão sobre a relação entre eles e o trabalho dos profissionais práticos.
O QIAIS-A foi construído com base na literatura sobre comportamento de autoagressão e sua relação com impulsividade e ideação suicida. A primeira versão do questionário foi constituída de 64 itens divididos em quatro subescalas: Impulso (16 itens), Autoagressão (14 itens), Funções (31 itens) e Ideação Suicida (3 itens). Os itens foram classificados em uma escala Likert de quatro pontos que variavam de 0=nunca até 3=sempre, com exceção da subescala Função, cujos itens foram classificados em uma escala nominal (sim/não) (Carvalho et al., 2015). A subescala dicotômica Função só é respondida caso o respondente indique algum comportamento de autoagressão na subescala correspondente.
Diferentes estudos que buscaram avaliar a estrutura interna das escalas que compõem o QIAIS-A (Nunes, 2012), indicaram que a escala de impulsividade avalia dois fatores: Impulsividade/ Hipersinésia e Controle do impulso. A escala de autoagressão contou com três fatores: Autoagressão propriamente dita, Autoagressão com recursos de objeto e Autoagressão Associada a Comportamentos de Riscos. Por fim, a escala de Ideação Suicida apresentou estrutura unifatorial. Todas as escalas apresentavam bons índices de consistência interna, Alfa de Cronbach entre 0,77 e 0,82, com exceção do fator Controle de Impulso que apresentou índices classificados apenas como aceitáveis para uma primeira versão do instrumento, com Alfa igual a 0,62.
Em um segundo estudo Carvalho et al. (2015) verificaram, por meio de Análise Fatorial Confirmatória (AFC), a adequação do modelo teórico proposto no QIAIS-A, com três variáveis latentes (Impulso, Autoagressão e Ideação Suicida). Os resultados indicaram índices de ajustes classificados como insuficientes para a sustentação do modelo (χ2(272)= 4104,450, p= 0,000; CFI= 0,797; RMSEA= 0,090, P(rmsea ≤0,05)= 0,000; PCFI=0,723; AIC= 4260,450). Então, os autores propuseram um modelo alternativo de quatro fatores: Impulso, Autogressão, Autoagressão associado a comportamento de Risco, e Ideação Suicida. Esta estrutura apresentou índices de ajuste classificáveis como adequados: χ2 (261)= 2133,025, p= 0,000; CFI= 0,901; RMSEA= 0,065, P(rmsear <0,05)= 0,000; PCFI= 0,784; AIC= 2311,025. Além disso, indicadores de consistência interna das escalas corroboravam a precisão do instrumento com índices alfa de Cronbach que variaram entre bom e desejáveis (Impulsividade= 0,76; Autoagressão= 0,90; Autoagressão associado a comportamento de Risco= 0,80 e Ideação Suicida= 0,82). Também foram observados bons índices de confiabilidade composta para os fatores supracitados (todos superiores a 0,7).
Com base no exposto, a presente pesquisa tem como principais objetivos apresentar o processo de adaptação do QIAI-S para o português brasileiro, estimar as primeiras evidências (AERA, APA, & NCME, 2014) com base na estrutura interna das escalas que compõem o instrumento: Autoagressão, Impulsividade e Ideação Suicida; e estimar evidências de validade com base na relação com variáveis externas: Depressão, Ansiedade, Estresse (convergente) e Satisfação com a vida (Divergente). Vale ressaltar que a Escala Funções do Comportamento Autoagressivo não foi inserida nas análises desta pesquisa haja vista que esta escala se destina a melhor compreensão dos motivos para a realização dos comportamentos autoagressivos indicados na escala de Autoagressão e, portanto, os itens devem ser avaliados em uma perspectiva qualitativa.
Método
Participantes
A amostra, por conveniência, contou com 198 participantes, adolescentes com idades que variavam entre 11 a 19 anos (M= 14,02±1,55), sendo 51,6% do sexo feminino, 54,3% estudantes do ensino fundamental (10,6% do 4° ano; 1,1% do 5° ano; 23,4% do 6° ano; 0,5% do 7° ano e 18,6% do 8° ano), e 45,7% estudantes do ensino médio (12,2% do 1° ano; 19,1% do 2° ano e 14,4% do 3° ano), provenientes de escolas públicas estaduais localizadas no interior do estado de Pernambuco.
Material
Questionário de Impulsividade, Autoagressão e Ideação Suicida para adolescentes - QIAIS-A (Nunes, 2012; Carvalho et al., 2015). Conforme descrito anteriormente, o questionário foi construído com objetivo de mensurar níveis de impulsividade, presença de comportamentos autoagressivos e suas funções, assim como a presença de ideação suicida em adolescentes. Para tanto, conta com 3 escalas independentes; Impulsividade (16 itens), Autoagressão (14 itens) e Ideação Suicida (3 itens). Além disso, conta com 31 itens destinados a avaliação das “Funções do comportamento autoagressivo”. As respostas a esses itens ocorrem por meio de respostas dicotômicas “sim” ou “não” quanto às descrições de possíveis funções que aqueles comportamentos podem assumir na vida do adolescente. Vale ressaltar que esta escala é respondia apenas pelos adolescentes que indicaram algum comportamento autoagressivo na escala de autoagressão. Quanto maior for à pontuação final nos respectivos fatores, maior a impulsividade, mais frequentes a prática de autoagressão e ideação suicida.
Escala de Depressão Ansiedade e Estresse - DASS 21 (Lovibond & Lovibond, 1995). Instrumento composto por 21 itens, respondidos por meio de escala Likert de quatro pontos, que objetiva a avaliação de indicadores de depressão, ansiedade e estresse. No Brasil a DASS-21 foi adaptada e teve suas propriedades psicométricas avaliadas em diversas regiões do país com amostras de adolescentes (Patias, Machado, Bandeira, & Dell’Aglio, 2016; Silva et al., 2016) com resultados que asseguram a estrutura com três fatores e bons indicadores de precisão, entre 0,83 e 0,96. Quanto mais elevada a pontuação obtida em cada subescala, mais predominantes são os estados afetivos negativos avaliados.
Escala de Satisfação com a Vida - ESV (Diener, Emmons, Larsen, & Griffin, 1985) é um instrumento que visa avaliar a satisfação dos respondentes com as suas condições de vida atual em relação ao padrão de vida estabelecido por ele como desejável. A escala é composta por cinco itens respondidos em escala do tipo Likert de sete pontos que variam entre “discordo plenamente” a “concordo plenamente”. Quanto mais elevada a pontuação obtida nesta escala mais elevados serão os níveis de satisfação com a vida. No Brasil, estudos referentes a estrutura interna da ESV têm corroborado a proposta original quanto a solução unifatorial e com bons indicadores de precisão, alfa de Cronbach entre 0,72 e 0,80 (Gouveia et al., 2003; Bedin & Sarriera, 2014).
Procedimento
Adaptação transcultural: Em um primeiro momento, foi realizado contato com a principal autora do QIAIS-A, Célia Barreto Carvalho, que autorizou a adaptação do instrumento original para o português brasileiro, bem como a realização de estudos das propriedades psicométricas do instrumento. Para adaptação do instrumento para o português brasileiro três participantes do grupo de pesquisa (devidamente treinados quanto aos procedimentos de construção/adaptação de instrumentos de medida) realizaram adaptação independente dos questionários que compõem o QIAIS-A. No segundo momento, um comitê de três pesquisadores foi organizado para a estruturação de uma versão síntese e avaliação da equivalência com versão original. Considerando que o Brasil e Portugal falam a mesma língua, guardando palavras e expressões com significados diferentes em virtude das condições novas em que a língua passou a funcionar com o processo de colonização e ao longo da história do Brasil (Guimarães, 2005), não foram encontradas dificuldades para a construção da versão síntese do questionário.
A avaliação da versão síntese do QIAIS pelo público-alvo se deu pela análise semântica do instrumento, ou seja, grau de compreensibilidade dos itens, instruções e escala de resposta realizada por oito adolescentes com idades que variaram entre 15 e 19 anos (M= 16,37±1,40, 50% sexo feminino). Para tanto, foram realizados grupos focais com três grupos e uma dupla de adolescentes em que os participantes indicavam o grau de clareza e compreensão dos itens, das instruções de resposta aos questionários e dos sistemas de respostas empregados nos itens. A partir dos apontamentos e sugestões dos participantes apenas um item sofreu alterações (Item 2 da escala de Impulsividade) em que a expressão “Os outros dizem que ando a mil por hora” foi adaptada para “Os outros dizem que ando muito apressado”.
Considerações éticas
Em todos os procedimentos empregados na presente pesquisa foram respeitados os princípios éticos em acordo com Resolução 510/2016 do Conselho Nacional de Saúde, órgão que regula a realização de pesquisa com seres humanos no Brasil e, portanto, satisfaz a declaração Helsinki. O contato com os participantes da pesquisa se deu por meio de duas escolas públicas (que consentiram formalmente sua participação) situadas na cidade de Garanhuns, cidade do interior do estado de Pernambuco. As coletas de dados foram realizadas nas próprias salas de aula, coletivamente, antecedidas do consentimento formal dos pais ou responsáveis pelos adolescentes, bem como pelo assentimento formal dos mesmos. Aos participantes e responsáveis era garantido o direito de ser informado sobre os objetivos e procedimentos da pesquisa, sigilo sobre os dados coletados e a possibilidade de desistir de sua participação em qualquer momento da realização da pesquisa sem nenhum ônus para os mesmos.
Análise de dados
Em acordo aos objetivos desta pesquisa diferentes procedimentos estatísticos foram empregados. Para avaliação a estrutura interna dos questionários que compõem o QIAIS empregou-se Análise Fatorial Exploratória (AFE) com método de estimação Unweighted Least Squares ULS e rotação Promax (Costello & Osborne, 2005), tendo como base uma matriz de correlação policórica. A opção para adoção destes procedimentos está alinhada aos sistemas de respostas empregados nos instrumentos, escalas Likerts, caracterizando-os como variáveis ordinais (Lara, 2014). As retenções dos números de fatores foram baseadas em diferentes métodos: Análise Paralela (Timmerman & Lorenzo-Seva, 2011) estimada com base em 500 matrizes de correlações policóricas aleatorizadas por meio do método de permutação (Buja & Eyuboglu, 1992), adequabilidade da estrutura fatorial a expectativa teórica e a manutenção de itens com cargas fatoriais iguais ou superiores a 0,30. Estas análises foram realizadas com apoio do software Factor versão 10.8.04 (Lorenzo-Seva & Ferrando, 2013).
Para avaliação de indicadores de precisão recorreu-se aos coeficientes Alfa de Cronbach e Ômega de Mcdonald, tendo como referências valores iguais ou superiores a 0,70, conforme indicação da literatura especializada. Para avaliação do padrão de associação bivariada entre os questionários que compõem o QIAIS e das evidências de validade convergente e divergente com variáveis externas empregou-se coeficientes de correlação de Pearson.
Por fim, recorreu-se a Análise de Rede (Borsboom & Cramer, 2013; Fonseca-Pedrero, 2018) para uma avaliação da dinâmica de associação entre as variáveis investigadas neste estudo. Uma rede pode ser definida como um modelo abstrato que contém nodos e hastes, os nodos representam as variáveis do estudo enquanto as hastes representam as conexões entre essas variáveis. Estas associações são manifestas por meio de um gráfico bidimensional. Para estimação da Análise de Rede optou-se pela utilização do algoritmo Fruchterman-Reingold (Epskamp, Borsboom, & Fried, 2017). Este método propõe que a organização dos nodos no gráfico respeitem diferentes critérios: a) após um estado inicial de repulsão mútua entre todos os nodos, aqueles que estão relacionados entre si sejam atraídos; b) nodos como maior número de relacionamentos com os outros nodos assumam uma posição central no gráfico; e c) as hastes representem a associação ponderada entre nodos (correlação parcial estimada pelo método LASSO) de modo que as hastes mais espessas representam associações mais forte entre os nodos (Machado & Bandeira, 2015).
Para avaliação da rede foram verificados os parâmetros de centralidade. De acordo com Fonseca-Pedrero (2018) as medidas de centralidade indicam os nodos ou variáveis mais importantes dentro da rede, a depender de diferentes tipos de conexões. A conectividade (betweenness centrality) é definida pelo número de vezes que um nodo faz parte do caminho mais curto entre todos os pares de nodos conectados na rede, a medida de proximidade (closeness centrality) é definida pelo inverso das distâncias de um nodo com todo os outros do sistema, um nodo com alto nível de proximidade é o nodo (variável) com alto poder de predição dos outros nodos (variáveis) no sistema, e a medida de força (strength centrality) refere-se a magnitude das associações com os outros nodo (Fonseca-Pedrero, 2018; Machado, Vissoci, & Epskamp, 2015). Estas análises foram realizadas com apoio do software Jasp versão 0.9 (JASP Team, 2018).
Resultados
A realização da AFE foi antecedida da verificação dos indicadores de adequação dos dados disponíveis por meio dos métodos Kaiser-Meyer-Olkim (KMO) e Teste de esfericidade de Bartlett. Em todas as subescalas foram observados valores considerados adequados: KMO= 0,79179, χ² de Bartlett = (91) 773,7, p < 0,001 para subescala de autoagressão; KMO= 0,7548, χ² de Bartlett = (120) 498,9, p < 0,001 para subescala impulsividade, e KMO= 0,71524, χ² de Bartlett = (3) 224,5, p< 0,001 para escala de Ideação Suicida, assegurando adequabilidade dos padrões de correlações dos itens que compõem as diferentes subescalas e, portanto, a fatorabilidade desses conjuntos de variáveis. Os resultados referentes ao método de retenção de fatores AP são apresentados no Quadro 1, onde se verifica a porcentagem de variância dos fatores de cada subescala (dados reais), a porcentagem média da variância explicada observada para os fatores, e os valores de variância alocada no percentil 95 para os fatores (dados aleatórios).
Conforme apresentado no Quadro 1, a AP sugere a retenção de dois fatores para a subescala de Autoagressão, dois fatores para subescala impulsividade, e um fator para subescala Ideação Suicida, haja vista que apenas estes fatores apresentaram valores de porcentagem de variância explicada superiores àqueles estimados por meio dos dados aleatórios. O modelo fatorial de cada subescala é apresentado no Quadro 2, onde se observam as cargas fatoriais padronizadas apresentadas pelos itens em cada um dos fatores, a comunalidade, bem como as correlações entre fatores e índices de consistência interna (alfa de Cronbach e Ômega de Mcdonald).
De acordo com os resultados apresentados no Quadro 2, verifica-se que a estrutura composta por dois fatores para a escala de Autoagressão apresentou bons níveis de cargas fatoriais dos itens, entre 0,332 (item 12) e 0,950 (item 10), sugerindo-os como bons representantes dos construtos avaliados pela estrutura fatorial. Contudo, do ponto de vista teórico, a estrutura bifatorial da subescala de Autoagressão diverge da versão original composta por três fatores (Nunes, 2012).
Neste caso, observa-se a reunião dos itens originalmente desenvolvidos para avaliação dos fatores “Autoagressão propriamente dita” e “Autoagressão com recurso de objeto” em um único fator, Fator 2. Corroborando com a proposta teórica, o Fator 1 reuniu itens referentes aos comportamentos de “Autoagressão associada a comportamento de risco”. Quanto a correlação entre os fatores observou-se correlação moderada r= 0,512. Em relação a porcentagem de variância explicada, o primeiro Fator explicou 44,22% e o segundo 16,3, totalizando 60,35%. Por fim, verificou-se índices desejáveis de precisão para ambos os fatores α= 0,836 e 0,898, e Ω= 0,840 e 0,903, respectivamente.
Para escala de Impulsividade observa-se que a estrutura bifatorial corresponde exatamente a estrutura observada na escala original (Nunes, 2012). Todos os itens apresentaram bons níveis de carga fatorial, entre 0,344 (item 2) e 0,745 (item 14). O primeiro fator reuniu 11 itens originalmente desenvolvidos para avaliação do fator Impulso/Hipercinésia, enquanto o segundo fator reuniu 4 itens desenvolvidos para avaliação do “Controle do Impulso”. Quanto à correlação entre os fatores, observou-se índice de baixa magnitude r= 0,280. Em relação a porcentagem de variância explicada, a solução explicou 39,53%, sendo 27,45% correspondente ao primeiro fator, e 12,8% ao segundo. Por fim, foram verificados bons indicadores de consistência interna para os fatores da escala α= 0,828 e 0,696, e Ω=0,796 e 0,721, respectivamente.
De maneira semelhante, a escala de ideação suicida apresentou estrutura fatorial idêntica a estrutura da escala original, com uma estrutura unifatorial com itens com bons níveis de carga fatorial, entre 0,819 (item 1) e 0,984 (item 3), capazes de explicar 83,42% de variância e com índice desejável de consistência interna, α= 0,900 e Ω= 0,902.
Uma vez conhecidas as primeiras evidências de validade com base na estrutura interna e precisão das escalas que compõem o QIAIS-A, foram avaliadas as evidências de validade com base nas relações com variáveis externas. Os resultados são apresentados no Quadro 3, onde se verificam índices de correlações de Pearson entre as subescalas do QIAIS-A, bem como entre o QIAIS-A e variáveis externas: Estresse, Depressão, Ansiedade e Satisfação com a Vida
Os resultados apresentados no Quadro 3 indicam associação moderada, positiva e significativa entre os fatores da escala de Autoagressão, o fator Impulsividade/Hipersinésia da escala de Impulsividade e Escala de Ideação suicida, por outro lado sugere ausência de associação entre essas variáveis e o segundo fator da escala de Impulsividade, denominado Autocontrole. Quanto às variáveis externas observa-se níveis de correlação que variaram de magnitude positiva moderada a forte entre as escalas que compõem o QIAIS e seus respectivos fatores, com os indicadores de Estresse, Ansiedade e Depressão, com exceção do fator Autocontrole (Segundo fator da escala de Impulsividade). Esses resultados sustentam a expectativa teórica de evidência de validade convergente. Por fim, verifica-se associações negativas de magnitudes semelhantes entre o QIAIS-A e a ESV, corroborando a expectativa teórica de evidências de validade divergente.
Embora, os indicadores de correlação de Pearson possibilitem a estimação de evidências de validade com base na relação com variáveis externas, essas associações são de ordem bivariada e não permitem uma melhor compreensão da dinâmica de associação do conjunto de variáveis. Diante desta lacuna, foi realizada Análise de Rede para investigação da estrutura dinâmica de associação entre as variáveis empregadas na presente pesquisa. Os resultados são apresentados na Figura 1 e Figura 2, onde se verificam a representação gráfica da rede, além de diferentes medidas de centralidade.
Conforme observado na Figura 1 as variáveis se organizaram em acordo com as magnitudes de associações entre si, de acordo com o esperado, variáveis correspondentes às mesmas escalas Ansiedade, Estresse e Depressão, bem como Autoagressão e Autoagressão com comportamento de risco agrupam-se indicando maior associação entre elas. Contudo, observa-se que as variáveis que ocupam posições mais centrais na rede são Ansiedade, Ideação Suicida e Depressão. Nessa direção, vale ressaltar os diferentes indicadores de centralidade, dispostos na Figura 2.
A partir da Figura 2 verifica-se que a variável Ansiedade apresentou maiores indicadores de centralidade na rede nos diferentes métodos: conectividade (betweenness), sugerindo que esta variável faz parte do caminho mais curto entre todos os pares de variáveis conectados na rede; proximidade (closeness) sugerindo que esta é a variável com menor distância, ou seja, mais associada a todas as outras variáveis dispostas no sistema e, portanto, com maior potencialidade de predição do conjunto de outras variáveis; e a medida de força (Degree), que refere-se à magnitude das associações com as outras variáveis. Nesta direção destacam-se também as variáveis Estresse em relação aos indicadores conectividade e proximidade, e as variáveis Depressão e Ideação suicida, em relação às medidas proximidade e força. Na direção contrária, a variável Autocontrole apresentou menores indicadores de centralidade na rede.
Discussão
Esta pesquisa teve como principal objetivo adaptar para o português brasileiro e estimar as primeiras evidências de validade e precisão do QIAIS-A. Dentre as suas principais contribuições destacam-se os primeiros esforços para acúmulo de evidências de validade do instrumento em questão, contribuindo de forma efetiva para a disponibilização de um instrumento com propriedades psicométricas conhecidas para avaliação da autoagressão em adolescentes brasileiros, haja a vista a escassez de instrumentos para tais fins, bem como a pertinência de se contar com instrumentos adequados para o processo de avaliação e desenvolvimento de estratégias interventivas para o combate da Autoagressão e suicídio em adolescentes. Nessa direção, os resultados indicaram a pertinência da versão adaptada das escalas Autoagressão, Impulsividade e Ideação Suicida, que compõem o QIAIS-A, para a avaliação da população de adolescentes brasileiros.
A partir da AFE, verificou-se a replicabilidade da estrutura bifatorial para a escala de Impulsividade e a estrutura unifatorial para escala de Ideação Suicida, corroborando a expectativa teórica que deu fundamento a construção a versão original do QIAIS-A (Carvalho et al., 2015; Nunes, 2012). Contudo, a escala de Autoagressão foi composta por uma estrutura de dois fatores, diferenciando-se da primeira versão do instrumento, organizada em três fatores (Nunes, 2012). Porém, a estrutura bifatorial mantida na presente pesquisa é condizente com a estrutura proposta por Carvalho et al. (2015) para escala de Autogressão nos estudos de avaliação do modelo de medida proposto para QIAS-A por meio da AFC.
Diferentes fatores podem ser apontados como influenciadores das diferenças dos resultados aqui relatados com aqueles observados por Nunes (2012), como características da amostra, por exemplo. Contudo, destacam-se os diferentes métodos utilizados para estimação e rotação da análise fatorial, bem como a retenção de fatores empregados nas diferentes pesquisas. Enquanto (Nunes, 2012) utilizou como estimador Análise de Componentes Principais (ACP) e método rotacional ortogonal Varimax com base em uma matriz de correlação de Pearson, na presente pesquisa foi empregado o estimador ULS e método rotacional oblíquo Promax, haja vista maior indicação desses métodos para a estimação de estruturas fatoriais com dados ordinais ou não normais (Holgado-Tello, Chacón-Moscoso, Borbero-Garcial, & Vila-Abad, 2010). A respeito dos métodos rotacionais, Osborne (2015) ao descrever sobre os diferentes métodos alerta que o uso de métodos de rotação ortogonal na avaliação de instrumentos psicológicos pode resultar em soluções fatoriais divergentes quando os fatores são correlacionados, ao contrário de rotações oblíquas que podem fornecer soluções mais adequadas, mesmo quando os fatores não são correlacionados, uma vez que este método não força estas correlações, casos elas não existam. Vale ressaltar as correlações obtidas entre os fatores Autoagressão e Autoagressão com comportamento de Risco r= 0,517, p< 0,001 (Nunes, 2012).
O mesmo argumento pode ser utilizado para justificar a utilização destes métodos para a avaliação da escala de Impulsividade, que conta com dois fatores pouco correlacionados (Impulsividade/Hipersinésia e Autocontrole), bem como a obtenção de resultados semelhantes aos da versão original do instrumento. Por fim, destaca-se a utilização da AP como recurso para a retenção dos números de fatores na escala, uma vez que esta tem sido considerada pela literatura especializada como um método robusto e com evidências de maior melhor precisão para a estimativa do número de fatores quando comparadas ao critério de Eigenvalues superiores a 1 de Guttman-Kaiser, haja vista a tendência deste último método superestimar o número de fatores a serem retidos (Timmerman & Lorenzo-Seva, 2011). Com base nestes argumentos, consideram-se adequadas as estruturas observadas na escala de Autoagressão e nos demais instrumentos que compõem a versão brasileira do QIAIS-A.
Quanto aos indicadores de precisão dos fatores que compuseram a versão brasileira da QIAIS-A, os valores dos índices de confiabilidade obtidos na presente pesquisa sugerem bons níveis de precisão das escalas e seus respectivos fatores, com índices iguais ou superiores a 0,7 (Tabachnick & Fidell, 2012). Além disso, são coerentes com aqueles encontrados em outros estudos realizados com a versão portuguesa do instrumento (Carvalho et al., 2015; Nunes, 2015). Desta forma, pode-se afirmar que os primeiros objetivos da presente pesquisa foram satisfatoriamente alcançados, a estimação das primeiras de evidências de validade com base na estrutura interna e precisão da versão brasileira do QIAIS-A (AERA, APA, & NCME, 2014).
Adicionalmente verificaram-se evidências de validade com base relação com variáveis externas, de ordem convergente, com as variáveis Depressão, Ansiedade e Estresse, e de ordem divergente, com a variável Satisfação com a vida. Os resultados obtidos corroboram as hipóteses teóricas e são coerentes com outros estudos que empregaram essas variáveis (Medeiros, 2016; Nunes, 2012). Além disso, os resultados suportam a expectativa de que a ansiedade, o estresse e a depressão são fatores de risco para comportamentos autodestrutivos (Nunes, 2012), e que a maioria das pessoas que dão entrada no hospital com comportamentos de autoagressão apresentam outras comorbidades, sendo mais usual alguma perturbação de humor e de afeto, com maior incidência o transtorno depressivo (Medeiros, 2016).
Por fim, recorreu-se a Análise de Rede para uma compreensão dinâmica das associações entre as variáveis empregadas na presente pesquisa. Os resultados indicaram o papel central da variável Ansiedade no sistema analisado, o que pode se caracterizar como um importante achado de pesquisa em direção as intervenções práticas em relação a diminuição de comportamentos autoagressivos em adolescentes, pois em muitas situações esses são comportamentos que ocorrem em segredo por parte de seus praticantes, o que dificulta seu reconhecimento/diagnóstico (Borges & Werlang, 2006). Assim, a resposta a um convite para a participação de uma proposta interventiva para a diminuição da ansiedade pode ser vista por adolescentes como algo menos expositivo, e melhor avaliado socialmente.
Do ponto de vista interventivo, a análise de rede também sugere a importância dos conceitos de estresse, depressão e ideação suicida, resultados que vão em direção aos apontamentos da literatura especializada (Borges & Werlang, 2006; Carvalho et al., 2015; Claes et al., 2010; Medeiros, 2016), que sugerem o comportamento autoagressivo como uma forma de enfrentamento de conflitos internos que resultam em aumento dos sintomas supracitados.
A presente pesquisa possibilitou confirmar o potencial da QIAIS-A em integrar pesquisas que objetivam a avaliação da Autoagressão, Impulsividade e Ideação Suicida entre adolescentes brasileiros, sugerindo a adequação das propriedades psicométricas do instrumento para avaliação desta população. Os resultados positivos observados neste estudo incentivam a continuidade de investigação de outras qualidades psicométricas do instrumento. Nesta direção, sugere-se a realização de estudos que avaliam, por exemplo, o QIAIS-A como uma bateria, ou seja, a avaliação do modelo teórico proposto por Carvalho et al. (2015), composto pelas três escalas através da AFC. Assim como o desenvolvimento de normas interpretativas dos escores brutos dos instrumentos, possibilitando assim maior sentido psicológico aos resultados das escalas, portanto, melhores níveis de informação aos profissionais interessados em desenvolver propostas interventivas para a diminuição de comportamentos autoagressivos, ideações suicidas e impulsividade entre adolescentes.
Por fim, ressaltam-se algumas das limitações da presente pesquisa, como o fato dos resultados se basearem em uma amostra por conveniência, oriunda de escolas públicas de uma região específica do país (nordeste). Considerando que o Brasil é um país de extensão continental, e que cada região guarda especificidades culturais, recomenda-se cautela na generalização dos resultados para a população brasileira, de modo que outros estudos com ampliação e diversificação da amostra quanto às representação geográfica e escolas privadas são recomendado
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Recebido em 28 de Janeiro de 2019/ Aceite em 02 de Junho de 2019