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Psicologia, Saúde & Doenças

versão impressa ISSN 1645-0086

Psic., Saúde & Doenças vol.21 no.2 Lisboa ago. 2020

https://doi.org/10.15309/20psd210207 

Longas jornadas de trabalho: efeitos na saúde

Long working hours: effects on health

José Antunes1

1Centro de Respostas Integradas de Lisboa Ocidental - Equipe de Tratamento do Eixo Oeiras - Cascais. Divisão de Intervenção em Comportamentos Aditivos e Dependências, Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo, IP, Lisboa, Portugal, setuan59@hotmail.com

Endereço para correspondência | Dirección para correspondencia | Correspondence


 

RESUMO

As longas jornadas de trabalho e o recurso às horas extraordinárias têm aumentado em todo o Mundo nos últimos anos, em resultado da globalização económica e do crescimento da concorrência. As longas jornadas de trabalho aumentam o risco de acontecimentos desfavoráveis para a saúde. Fez-se uma pesquisa, na literatura biomédica dos artigos publicados nos últimos dez anos sobre longas jornadas de trabalho e o seu impacto na saúde. Os resultados mostram que as longas jornadas de trabalho e as horas extraordinárias provocam efeitos nefastos na saúde física e mental dos trabalhadores. Discutem-se as implicações em termos da doença cardiovascular e em especial da doença cardíaca coronária, os efeitos sobre a saúde mental, as alterações associadas a estruturas orgânicas e ainda os acidentes de trabalho assim como as barreiras criadas no acesso aos cuidados de saúde preventivos e o caso especial dos trabalhadores dos serviços de saúde. Os ajustamentos dos ambientes de trabalho após a identificação dos fatores de risco e a implementação de medidas correctivas podem minimizar estes efeitos, que tendem a ser negligenciados em favor da produtividade.

Palavras-chave: Longas jornadas de trabalho, horas extraordinárias, trabalho, saúde, revisão


 

ABSTRACT

Long working hours and overtime work have increased worldwide in recent years as a result of economic globalization and growing competition. Long working hours increase the risk of unfavorable health events. Biomedical literature has been researched in articles on long working hours and their impact on health, published in the last ten years. The results show that overtime and long working hours have harmful effects on the physical and mental health of workers. The implications in terms of cardiovascular disease, and in particular coronary heart disease, the effects on mental health, changes associated with organ structures and occupational accidents as well as barriers in the access to preventive and preventive health care are discussed with particular emphasis in the case of health care workers. Adjusting work environments, after identifying the risk factors and implementing corrective measures can minimize those effects which tend to be neglected in favor of productivity.

Keywords: Long working hours, overtime, work, health, review.


 

Atualmente, as longas jornadas de trabalho são frequentes em todo o mundo. Nos Estados Unidos, cerca de 18,7% dos funcionários trabalhavam 48 horas ou mais por semana, de acordo com o Inquérito Nacional de Vigilância de Saúde de 2010 e o Inquérito Europeu sobre Condições de Trabalho de 2010 indicava também que 14,9% dos trabalhadores na Europa realizavam longas jornadas de trabalho (48 horas ou mais por semana). No Japão as longas jornadas de trabalho são comuns e o chamado Karoshi, a morte súbita resultante do excesso de trabalho, tem sido um problema crítico da saúde ocupacional neste país (Imai et al., 2014). Com o advento da globalização económica e o crescimento correspondente da concorrência, grande parte da força de trabalho ficou sujeita a um aumento da carga e intensidade do trabalho (Li & Siegrist, 2018).

Jornadas de trabalho longas podem aumentar o risco de acontecimentos desfavoráveis para a saúde como dificuldades psicológicas, sintomas de depressão e ansiedade, declínio das capacidades cognitivas e o aparecimento de perturbações do sono (Virtanen, Stansfeld, Fuhrer, Ferrie, & Kivimaki, 2012) sendo que estes problemas parecem ser mais comuns nos grupos socioeconómicos mais desfavorecidos e apresentam também elevada prevalência em certas profissões do setor da saúde e do serviço social (Laaksonen, Lallukka, Lahelma, & Partonen, 2012). As longas jornadas de trabalho (mais de 11 horas por dia regularmente) podem aumentar o risco de doença cardiovascular, o que reforça a constatação de as horas extraordinárias mantidas (3 a 4 horas por dia) influenciarem de forma adversa a doença cardíaca coronária, aumentando este efeito adverso, à medida que essas horas extra aumentam. A pressão e o excesso de trabalho encurtam a vida (Jackson, 2011).

Nos últimos anos, um número impressionante de estudos epidemiológicos foram realizados, no sentido de conhecer os riscos e as ligações entre jornadas de trabalho longas e doenças físicas e mentais. De todos os problemas de saúde a doença cardíaca coronária (DCC) foi a mais estudada. No entanto o elevado risco de acidente vascular cerebral, sintomas depressivos, diabetes mellitus de tipo 2, síndrome metabólica, acidentes de trabalho e incapacidade foram descritos em pessoas expostas a longas jornadas de trabalho (Li & Siegrist, 2018). Um estado de saúde diminuído reflecte-se obviamente na produtividade através do absentismo ou seja das horas, dias e semanas fora do trabalho por motivo da doença e no presentismo, isto é na redução da actividade no local de trabalho devido a doença tendo custos económicos e sociais elevados (Jones, Payne, Gannon, & Verstappen, 2016).

Os ajustamentos dos ambientes de trabalho no sentido de reduzir o esgotamento mental e melhorar a satisfação no trabalho podem ajudar na prevenção de problemas de saúde mental, que representam uma parte importante da sobrecarga de doença entre os trabalhadores (Laaksonen et al., 2012) e uma vez identificados os factores de risco ocupacionais para doenças, como por exemplo as cardiovasculares, intervenções direccionadas para mitigar esses factores podem ser desenvolvidas e implementadas através de alterações nos estilos de vida nomeadamente nos relacionados com as condições de trabalho (Whang & Hong, 2012). Estas condições devem ser avaliadas porque os empregadores tendem a subestimar os riscos psicossociais, cujo peso aumenta continuamente com repercussões adversas na saúde. A avaliação periódica da satisfação no trabalho pode ajudar a identificar de uma forma atempada os estressores no local de trabalho e minimizar o seu efeito (Ziemska, Klimberg, & Marcinkowski, 2013).

Método

Foi realizada uma pesquisa na PubMed, que é um mecanismo de busca para acesso gratuito à base de dados MEDLINE de citações e resumos da investigação biomédica, desenvolvida pela National Library of Medicine (NLM), utilizando os termos MeSH: Overtime work e Disease selecionando os artigos publicados entre janeiro de 2009 e janeiro de 2019. Para a estruturação desta análise aplicou-se o modelo PRISMA (Preferred Reporting Items for Systematic Reviews and Meta-analyses) considerado como indispensável para elaborar uma revisão sistemática ou meta-análise (Liberati et al., 2009). Os critérios de inclusão foram: serem artigos sobre longas jornadas de trabalho, horas extraordinárias e doenças associadas, estarem redigidos em língua inglesa e terem sido publicados nos últimos dez anos. Foram critérios de exclusão: artigos duplicados, artigos escritos em outras línguas que não a inglesa, artigos baseados em casos clínicos e artigos não relacionados com a temática em estudo.

Resultados

A pesquisa efetuada resultou na identificação de 50 artigos e na escolha de 29 que respeitavam todos os critérios de inclusão e de exclusão. A figura 1 representa o fluxograma da seleção dos estudos.

 

 

Aspectos gerais

O impacto dos factores psicossociais, nomeadamente do excesso de horas de trabalho, ocorre através dos mecanismos do estresse e os efeitos desse impacto dependem do ambiente de trabalho, de características pessoais do trabalhador e da percepção subjetiva do estressor. Um fator de risco psicossocial é definido como «um estado induzido pelas percepções dos trabalhadores sobre fenómenos no ambiente de trabalho, que são sentidos como desfavoráveis ou perigosos» (Ziemska et al., 2013). O horário de trabalho é uma medida de estresse crónico distinto da pressão no trabalho. O horário de trabalho pode agir como um estressor intrínseco ou actuar indirectamente através de comportamentos e conflitos relativos ao controlo desses horários, exigências do trabalho e interferências com outras actividades de vida dos trabalhadores (Parks, DeRoo, Miller, McCanlies, Cawthon, & Sandler, 2011). O estresse age sobre o corpo através de vários mecanismos activando o sistema nervoso autónomo e também o sistema endócrino. A resposta do eixo hipotálamo-hipófise-suprarenal faz-se através de hormonas, neurotransmissores e neuromoduladores que se conjugam numa resposta organizada. A ação do estresse provoca o aumento da secreção de glicocorticóides, catecolaminas (dopamina, epinefrina e norepinefrina), cortisol e cortisona que estimulam a glicólise e a lipólise. Estas respostas ao estresse quando mantidas ao longo do tempo provocam efeitos mensuráveis na saúde (Ziemska et al., 2013). Por outro lado a activação do sistema nervoso simpático provoca um aumento da frequência cardíaca e da pressão arterial (Choi et al., 2014). Outra possível via geradora de doença, são os estilos de vida não saudáveis associados com o estresse, como sejam a alimentação irregular, o uso de alimentos altamente calóricos, a falta de exercício físico, a diminuição dos períodos de sono e a alteração dos ritmos circadianos (Ziemska et al., 2013; Shiozaki et al., 2017; Li et al., 2018).

O estresse, enfraquece o sistema imunológico (impacto na produção de linfócitos) acelera o processo de envelhecimento das células e o desenvolvimento de doenças, incluindo o cancro, infecções e doenças imunológicas. No Japão, a maioria das empresas, proíbem as horas extraordinárias e o trabalho por turnos aos doentes com cancro que regressam ao trabalho após o tratamento (Ohguri et al., 2009). Longas jornadas de trabalho, horas extraordinárias, horários rotativos ou irregulares e o trabalho nocturno podem provocar estresse, perturbações do sono e outros fatores de risco comportamentais e fisiológicos para a doença crónica (Parks et al., 2011). O estresse foi um dos nove principais fatores de risco preditivos de doença coronária aguda no estudo INTERHEART (Jackson, 2011). Outro impacto negativo manifesta-se na esfera da saúde mental conduzindo à fadiga crónica, ao burnout, depressão e neuroticismo (Ziemska et al., 2013). Sturm e al. (2019) sugeriram que medidas objectivas da carga de trabalho, como por exemplo as horas extraordinárias trabalhadas, podem ser usadas como indicadores indirectos para monitorizar a pressão psicossocial sobre os trabalhadores.

A falta da reciprocidade entre o alto esforço dispendido e a pouca recompensa recebida em troca do empregador, é outra condicionante que exacerba os efeitos negativos do excesso de trabalho na saúde. Estes efeitos são possivelmente decorrentes das fortes emoções negativas desencadeadas e do estresse corporal a elas associado. Os estudos demonstram um risco mais elevado de DCC e de distúrbios depressivos entre os que experimentam este tipo de desequilíbrio de uma forma crónica. Um desequilíbrio, que se deve em grande parte, à fraca posição dos trabalhadores no mercado de trabalho onde não encontram alternativa ou opção de escolha e as condições de dependência acabam por pesar mais (Li & Siegrist, 2018).

Doença cardiovascular

A doença cardiovascular (DCV) é uma das principais causas de morte sendo que esta designação engloba várias situações como sejam a DCC, o acidente vascular cerebral, a doença arterial periférica e a hipertensão arterial (HTA). Um extenso conjunto de investigações publicadas sugere que o ambiente, psicossocial e fatores organizacionais do ambiente de trabalho têm uma forte influência sobre a DCV sendo que a maioria dos factores de risco da DCV, podem ser modificados através de mudanças nos estilos de vida (Hwang & Hong, 2012). A explicação sobre o modo como as longas jornadas de trabalho geram doença é limitada, no entanto existe robusta evidência sobre o impacto da excessiva ativação do sistema simpático-adrenérgico na patologia cardiovascular (Li & Siegrist, 2018). O trabalho extraordinário pode ser considerado como uma forma de estresse no trabalho e este está associado a um aumento de até quatro vezes nos eventos cardiovasculares em particular quando existe pouco controlo sobre o ambiente de trabalho (McInnes, 2010). As longas jornadas de trabalho e as horas extraordinárias podem agravar os efeitos do trabalho por turnos e aumentar significativamente o risco de DCV quando combinadas com a diminuição do tempo de recuperação, particularmente com o sono insuficiente (Choi et al., 2014). Virtanen et al. (2010) chamam a atenção para um estudo pioneiro realizado nos Estados Unidos da América, nos anos sessenta do século XX, que já apontava para o facto de maiores taxas de mortalidade por DCV ocorrerem nos trabalhadores com longas jornadas de trabalho sublinhando que o trabalho extraordinário está relacionado com o aumento do risco de DCV independentemente dos outros fatores de risco convencionais.

A DCC, uma das componentes do grande grupo das DCV, que engloba a angina de peito, a doença cardíaca isquémica, o enfarte do miocárdio, a morte por doença cardíaca coronária e a insuficiência cardíaca afecta não apenas os idosos mas populações em idade activa (Hwang & Hong, 2012). As longas jornadas de trabalho (mais de 11 horas por dia regularmente) podem aumentar o risco de doença cardiovascular, o que reforça a constatação de as horas extraordinárias mantidas (3 a 4 horas por dia) influenciarem de forma adversa a doença cardíaca coronária fatal e não fatal aumentando este efeito adverso, à medida que essas horas extra aumentam (Jackson, 2011).

Virtanen et al. (2010) estudaram a associação entre trabalho extraordinário e DCC numa coorte de milhares de funcionários públicos britânicos que foram seguidos em média durante 11 anos no estudo denominado Whitewall II constatando que, 3 a 4 horas de trabalho extraordinário por dia estavam associadas a um risco aumentado de 1,56 vezes de sofrer de DCC após descontarem os efeitos de fatores demográficos e dos vários outros fatores de risco conhecidos para a doença. Uma associação semelhante foi encontrada para a morte por DCC e enfarte agudo do miocárdio não fatal. Estas constatações mereceram na época grande difusão e múltiplos comentários em revistas científicas (Brisbois & Chalupka, 2010; McInnes, 2010; Jackson, 2011)

Ainda que os dados não permitam explicar a ligação entre horas extras e eventos cardiovasculares, os autores apontam como possíveis mecanismos explicativos, a dificuldade em relaxar depois do trabalho, a tendência para trabalhar mesmo quando doentes e a HTA oculta, além das modificações na actividade do sistema nervoso autónomo, com o aumento da actividade simpática e o decréscimo da actividade parassimpática, que são conhecidos fatores de risco da DCC. Embora não tendo encontrado evidências de ser a HTA, a via patológica que liga as horas extraordinárias trabalhadas e a doença cardiovascular, citam estudos que apontam nesse sentido e referem que o estresse relacionado com trabalho tem sido associado à chamada HTA oculta, existindo algumas evidências que demonstram que o trabalho extraordinário está relacionado com a HTA. A maioria dos autores apontam para a associação entre HTA e trabalho extraordinário e apenas Imai et al. (2014) não a verificaram, citando estudos que apresentam resultados contraditórios.

Landsbergis, Janevic, Rothenberg, Adamu, Johnson e Mirer (2013) ao analisarem as bases de dados administrativas da Associação dos Fabricantes de Automóveis da América do Norte contendo os dados demográficos, tipo de actividade, horas trabalhadas e indemnizações pagas por seguros de saúde entre 1996 e 2001 relativamente a doença e invalidez, dias de ausência ao trabalho, doença cardiovascular, hipertensão e problemas psicológicos concluíram que os trabalhadores da indústria automóvel com longas jornadas de trabalho têm um maior risco de HTA, DCV e DCC sugerindo que estas bases de dados podem ser uma ferramenta muito útil para desenhar programas de prevenção de doenças ocupacionais.

Hwang e Hong (2012) citam um estudo efectuado no Japão que mostrou que o trabalho extraordinário durante o mês anterior esteve associado a um aumento do risco de enfarte agudo do miocárdio e que 61 ou mais horas de trabalho por semana e menos de 2 dias de folga por mês, aumentaram as hipóteses de sofrer um enfarte agudo do miocárdio em duas ou mais vezes e ainda outro estudo que demonstra como as longas jornadas de trabalho, particularmente as que excedem as 52 horas semanais, aumentam o risco de problemas de saúde particularmente de HTA.

Os mecanismos causais hipotéticos que ligam o trabalho extraordinário ao risco aumentado de DCC incluem comportamentos e condições de saúde desadequados, inatividade física, tabagismo, privação de sono, estresse psicológico, obesidade e consumos elevados ou de alto risco de álcool. O trabalho extraordinário está associado com dois importantes fatores de risco coronário: as perturbações do sono e o aumento do estresse psicológico. Uma das hipóteses explicativas da ligação entre o trabalho extraordinário e a DCC é que a expansão do horário de trabalho reduz o tempo destinado ao sono, ao relaxamento e à atividade física ou outros tipos de atividades de lazer sendo o horário de dormir, o mais susceptível de ser alterado. Trabalhar horas extra é um preditor de perturbações do sono no futuro. Devido à diminuição do tempo de sono ou do tempo de exercício, aqueles que realizam horas extra podem acabar por experimentar mais estresse psicológico que, por sua vez, poderá acentuar ainda mais o impacto do trabalho extraordinário (Tsuboya, Aida, Osaka, & Kawachi, 2015).

O mecanismo exato pelo qual o estresse no trabalho aumenta o risco de doença cardíaca, continua a ser desconhecido sendo provável que seja complexo (McInnes, 2010) no entanto um extenso corpo de literatura, sugere que o ambiente psicossocial e fatores organizacionais do ambiente de trabalho, como o tempo de duração da jornada de trabalho, têm uma influência significativa sobre a DCV. Ora é sabido, que a maioria dos fatores de risco da DCV, podem ser modificados através de mudanças nos estilos de vida. Os fatores ocupacionais e psicossociais devem ser incorporados na avaliação do risco dos doentes com DCV e no seu plano de intervenção (Hwang & Hong, 2012)

Perfil lipídico

Jornadas de trabalho superiores a 10 horas por dia aumentam o risco de desenvolver síndrome metabólico e a prevalência da esteatose hepática não alcoólica. A explicação poderá residir no facto de as longas jornadas de trabalho estarem associadas à ingestão de alimentos com alto valor calórico, redução da actividade física e diminuição dos períodos de sono (Li et al., 2018). Os indivíduos portadores desta síndrome estão em risco de desenvolver doença cardiovascular e diabetes. A obesidade e o síndrome metabólico estão intimamente relacionados (Mansur et al., 2015)

Alterações de estruturas orgânicas

Os telómeros são estruturas constituídas por fileiras repetidas de proteínas e de ADN (ácido desoxirribonucleico) não codificante, que constituem as extremidades dos cromossomas. A sua função principal é impedir o desgaste do material genético e assegurar a estabilidade estrutural dos cromossomas. Os telómeros curtos podem levar à senescência celular ou à mutação carcinogénica, sendo um potencial marcador de envelhecimento celular. Parks et al. (2011) estudaram o comprimento relativo dos telómeros dos leucócitos em mulheres trabalhadoras, tendo observado que as mulheres com maior resposta ao estresse percebido e jornadas de trabalho mais longas, apresentavam maior encurtamento dos telómeros dos leucócitos, quando comparadas com mulheres a trabalhar em part-time. Este resultado sugere o potencial papel das respostas neuroendócrinas ao estresse sobre estruturas biológicas. Os autores acabam concluindo que este efeito é semelhante ao do tabagismo em doentes com antecedentes de doença cardíaca ou de diabetes levantando a hipótese de o horário de trabalho poder ser um estressor intrínseco ou agir indirectamente através de conflitos entre as exigências do trabalho e outras exigências da vida e citam um estudo que aponta para uma mortalidade significativamente mais elevada associada a cinco horas extras de trabalho por semana após 24 anos de seguimento.

Uma progressão mais rápida na aterosclerose da artéria carótida medida por ecografia foi verificada por Wang, Arah, Kauhanen, e Krause (2015) num estudo comparativo entre trabalhadores com turnos de fim-de-semana e trabalhadores com horário diurno padrão. A explicação, segundo os autores, pode ficar a dever-se ao facto dos trabalhadores que laboram ao fim de semana terem uma interrupção das atividades familiares e sociais de fim-de-semana. Além da perturbação do equilíbrio entre a vida e o trabalho inerentes aos horários variáveis, estes indivíduos não recuperam adequadamente do trabalho. Trabalhadores que raramente descansam durante o fim-de-semana, apresentam um risco aumentado de morte por doença cardíaca. Os trabalhadores mais velhos apresentam ainda uma maior necessidade de recuperação após o trabalho comparativamente com os mais jovens.

Acidentes de trabalho

O excesso de horas de trabalho aumenta o risco de acidentes no trabalho (Jin et al., 2012; Liu, Huang, Huang, Wang, Zong, & Chen, 2016; Li & Siegrist, 2018). Nos motoristas de transporte, o excesso de horas de trabalho, o turno da noite, uma jornada de trabalho não usual ou de mais de 60 horas de trabalho por semana, foram associadas a colisões relacionadas com a privação de sono. Os motoristas envolvidos em colisões relacionadas com a privação de sono tinham maior probabilidade de trabalhar em múltiplos empregos, no turno da noite ou em jornadas não usuais. O excesso de horas de trabalho foi responsável por 22% dos acidentes rodoviários, estando associado a uma maior taxa de mortalidade quando comparado com as outras causas (Mansur et al., 2015).

Saúde Mental

Jornadas de trabalho longas podem aumentar o risco de acontecimentos psicológicos desfavoráveis (Laaksonen et al., 2012; Virtanen et al., 2012; Landsbergis et al., 2013; Tsuboya et al., 2015; Li & Siegrist, 2018) como dificuldades psicológicas, sintomas de depressão e ansiedade, declínio das capacidades cognitivas e o aparecimento de perturbações do sono. O tempo de sono é o fator mais susceptível de ser afetado pelo horário de trabalho. A diminuição do tempo de sono ou das horas de actividade física podem provocar estresse psicológico, que por sua vez acentuará o impacto do trabalho extraordinário (Tsuboya et al., 2015).

Trabalhar horas extras precedeu numa média de 5,8 anos, o início de um episódio depressivo major numa coorte de meia-idade de funcionários públicos britânicos. Trabalhar 11 ou mais horas por dia aumentou o risco de sofrer um episódio depressivo major entre 2.3 a 2.5 vezes comparativamente com os trabalhadores com jornadas de trabalho normais entre 7 e 8 horas por dia. Os preditores do aparecimento de depressão foram ter idade mais jovem, ser do sexo feminino, baixo grau ocupacional, ter doença física crónica e o consumo de álcool. Longas horas de trabalho podem afetar a saúde através por exemplo de conflitos familiares, dificuldade em relaxar ou pelo aumento mantido dos níveis de cortisol. O efeito das longas jornadas de trabalho na saúde mental também poderá ser diferente em homens e mulheres. Até agora a etiologia exata da depressão não é conhecida, mas é amplamente reconhecido que será multifatorial envolvendo fatores genéticos, biológicos e psicossociais (Virtanen et al., 2012).

Laaksonen et al. (2012) estudaram, a partir dos dados obtidos nos registos da cidade de Helsínquia, a associação entre um vasto leque de condições de trabalho e problemas de saúde mental medidos através da compra de psicofármacos prescritos por médicos, observando que o excesso de horas de trabalho estava associado à compra de hipnóticos. Esta conclusão vai de encontro ao enunciado por numerosos autores (Parks et al., 2011; Virtanen et al., 2012; Choy et al., 2014; Tsuboya et al., 2015, Li et al., 2018) que chamam a atenção para as perturbações do sono e a diminuição das horas de sono, enquanto fator de risco de doença, nos trabalhadores com longas jornadas de trabalho.

Tipos de Personalidade

Shiozaki et al. (2017) estudaram, numa população de oficiais de polícia do Japão, as características de personalidade e o estresse no trabalho, chamando a atenção para fatores de personalidade e estilos de vida que podem favorecer o envolvimento em longas jornadas de trabalho. Segundo os autores do estudo, estas pessoas teriam uma menor capacidade de perceber a pressão no trabalho e de desenvolverem sintomas físicos e psicológicos, induzindo desta maneira uma maior prevalência de fatores de risco de doença. No mesmo sentido apontam as conclusões de Virtanen et al. (2010) que consideram que as longas jornadas de trabalho estão relacionadas com o comportamento de tipo A, um padrão comportamental relacionado com depressão e sintomas de ansiedade, associado a agressividade e irritabilidade, caracterizado por uma luta contínua e incessante para alcançar mais e mais em menos tempo. Este padrão comportamental em resposta ao estresse ambiental, pode ser um factor de risco de doença.

Profissões da Saúde

Acontecimentos desfavoráveis de saúde relacionados com longas jornadas de trabalho, são muito prevalentes nas profissões de saúde e no serviço social (Laaksonen et al., 2012). As longas jornadas de trabalho em enfermeiros, foram associadas ao aparecimento de síndromes dolorosos musculoesqueléticos (Lovgren, Gustavsson, Melin, & Rudman, 2014). Nedjjo et al. (2015) num estudo conduzido entre trabalhadores do sector da saúde demonstraram que o excesso de horas extraordinárias aumentava a probabilidade de acidentes confirmando os resultados encontradas em estudos anteriores. Longas jornadas de trabalho resultam em exposições prolongadas a diversos riscos e a um tempo de recuperação limitado, que se traduz em esgotamento físico que se repercute nos dias seguintes. Esta forma de trabalhar aumenta também a preocupação com a segurança dos doentes. Forbes, Arthur, Manoharan, Jones, e Kay (2016) citam, um estudo realizado na Europa em 2014, onde o excesso de trabalho nos médicos foi associado a um aumento do risco de sofrerem acidentes rodoviários e por picada de agulhas. Na investigação que conduziram entre médicos em formação na Austrália constataram que existia um excesso de horas extraordinárias e que grande parte desse trabalho extraordinário realizado pelos jovens médicos ficava por pagar. Leary, Punshon, e Mason (2018) que investigaram o trabalho de enfermeiros especialistas no Reino Unido encontraram também um elevado número de horas de trabalho extraordinário realizado e não pago, nomeadamente no intervalo para refeições, ao mesmo tempo que constaram que nos serviços onde se praticam elevadas cargas de trabalho ficavam por realizar as actividades de apoio psicológico, suporte emocional e aconselhamento propondo, em face dos resultados encontrados, um aumento do número de enfermeiros por doente no sentido de mitigar estes problemas.

Nos serviços de saúde reduzir as horas extraordinárias dos enfermeiros é uma estratégia chave para melhorar os resultados clínicos. Quando os enfermeiros trabalham muitas horas extraordinárias, a saúde do paciente tem menos hipóteses de melhorar. Esta conclusão é consistente com estudos realizados a nível hospitalar que verificaram a influência prejudicial das horas extraordinárias na mortalidade, infecções, úlceras de decúbito, erros e incidentes médicos. Apesar dos economistas da saúde terem teorizado os efeitos das horas extraordinárias na produtividade e no agendamento dos cuidados, outros modelos conceptuais são necessários para entender como os mecanismos relacionados com a fadiga e as longas jornadas de trabalho influenciam os resultados nos pacientes (Meyer, Wang, Li, Thomson, & O’Brien-Pallas, 2009).

Os profissionais de saúde devem ainda estar cientes, que pressão do tempo do trabalho sobre os seus pacientes, pode criar barreiras para que estes recebam determinados cuidados preventivos de saúde como sejam o rastreio do cancro da mama, o rastreio do cancro do colo do útero e os exames dentários (Yao, Dembe, Wickizer, & Lud, 2015).

Discussão

O recurso por parte dos empregadores às horas extraordinárias e às longas jornadas de trabalho tem aumentado nas últimas décadas, em todo mundo, como resposta à intensificação da concorrência decorrente da globalização. As evidências atualmente disponíveis, baseadas em centenas de estudos epidemiológicos, são inequívocas sobre os efeitos negativos na saúde dos trabalhadores destas formas de organização do trabalho. Ainda que não se conheçam as vias exatas que conduzem ao aparecimento das doenças, a grande maioria dos autores apresenta como possíveis mecanismos explicativos as alterações endócrinas e as modificações na actividade do sistema nervoso autónomo induzidas pelo estresse crónico, decorrente das longas jornadas de trabalho, bem como dos estilos de vida com ele relacionados. O sono, uma necessidade básica do ser humano, é uma das funções mais suscetíveis de ser afetada na medida em que os horários de sono são particularmente prejudicados pelas longas jornadas de trabalho. Mais horas de trabalho significam menos tempo de recuperação, menos horas de sono, mais fadiga e maior pressão psicológica que vão por sua vez acentuar ainda mais o impacto do trabalho extraordinário, quando este é mantido ao longo do tempo. Estes efeitos são especialmente agravados quando os trabalhadores não se sentem justamente recompensados pelo seu esforço.

As longas jornadas de trabalho são, por si só, um fator de risco de doença sendo que o seu efeito é do tipo dose-resposta, aumentando o risco à medida que aumenta o tempo de exposição. Desde os anos sessenta do século XX que se conhecem estes efeitos que foram particularmente estudados nos anos mais recentes na área da DCV e da DCC, na Saúde Mental e na ocorrência de acidentes de trabalho ou até mesmo no impacto que produzem em certas estruturas orgânicas acelerando por exemplo a aterosclerose e promovendo alterações do perfil lipídico. Além dos problemas que trazem aos trabalhadores diretamente afetados, as longas jornadas de trabalho causam impactos sociais nomeadamente através do aumento dos acidentes rodoviários ou dos efeitos negativos nos resultados dos doentes tratados em serviços de saúde, por profissionais sujeitos a excesso de trabalho. À luz da evidência acumulada e sendo reconhecido que muitos destes problemas podem ser prevenidos, parece ser urgente adequar o trabalho à dimensão humana ao invés de o programar ao ritmo da concorrência desenfreada imposta pela globalização.

 

REFERÊNCIAS

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Recebido em 27 de Janeiro de 2020/ Aceite em 04 de Maio de 2020

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