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Psicologia, Saúde & Doenças
versão impressa ISSN 1645-0086
Psic., Saúde & Doenças vol.21 no.2 Lisboa ago. 2020
https://doi.org/10.15309/20psd210223
Adoecer como (des)construção da saúde mental pública
Falling ill as narratives of (de)construction of mental health in public agents
Maria Angélica Bueno1, Jussara Mendes2, Marianne Lacomblez3, & Liliana Cunha3
1Unidade de Avaliação Psicossocial, Universidade Federal do Paraná, Curitiba-PR, Brasil, angel@ufpr.br
2Programa de Doutorado em Psicologia Social e Institucional, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre-RS, Brasil, jussaramaria.mendes@gmail.com
3Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação, Universidade do Porto, Porto, Portugal, lacomb@fpce.up.pt, lcunha@fpce.up.pt
Endereço para correspondência | Dirección para correspondencia | Correspondence
RESUMO
Este estudo de natureza qualitativa se propõe a explorar a manutenção do processo de adoecimento derivada de Incapacidade Temporária ao Trabalho com participantes trabalhadores em situação de longos períodos de ausência afastamento ao trabalho (>120 dias) no Brasil e em Portugal. Constitui-se em 18 participantes na construção do método da entrevista de reconstituição biográfica cujo conteúdo foi submetido a análise temática e recurso à aplicação informática Nvivo11. A precariedade do trabalho, conflitos e pressões por produtividade levam às questões centrais de investigação quanto ao desenvolvimento de adoecimento antes e após a concessão do afastamento; narrativas da trajetória profissional enquanto processo de envelhecimento no gerenciamento da saúde e indícios de implicação institucional na saúde mental. Concluímos que normas são passíveis de renormatização mediante o gerir o trabalho com a vida, paciente na condição de ser e estar adoecido, relação entre saúde e trabalho enquanto debate e existência nas experiências de vida.
Palavras-chave: experiência, adoecimento, afastamento do trabalho, saúde mental
ABSTRACT
This qualitative study aims to explore the maintenance of the illness process derived from Temporary Incapacity to Work with participants working in situations of long periods of work absence (>120 days) in Brazil and in Portugal. 18 participants were enrolled in the construction of the biographical reconstitution interview method whose content was submitted to thematic analysis using Nvivo11. Precarious work and pressure for productivity lead to central research issues for the development of illness before and after work leave; narratives of the professional trajectory as a process of aging in health management and evidence of institutional involvement in mental health. We conclude that norms are subject to renormatization by managing work with life, patient on condition of being and being sick relationship between health and work as a debate and existence in life experiences.
Keywords: experience, illness, leaving work, mental health
A compreensão e caracterização do contexto de trabalho incorpora a dimensão subjetiva dos efeitos do trabalho na saúde, centrada na explicitação do vivido no trabalho procurando ter uma análise integrada das relações vivenciadas nesta complexa e dinâmica conexão. A verificação de fatores de riscos incide em agravos às relações entre o trabalho e a saúde, dando visibilidade a novas formas de organização do trabalho excludentes. O contexto institucional do serviço na função pública traduz-se eminentemente em proposições de regras e sistemas jurídicos imperativos, necessários sobremaneira; porém sem a mesma relevância e visibilidade às contradições, ambivalências e conflitos existentes na dinâmica institucional.
A proposta consiste em apresentar narrativas de trabalhadores no sistema de emprego da função pública, permeada por instabilidades e reformas na atualidade. Pela dimensão qualitativa e aprofundamento analítico propõe-se a considerar o processo de adoecimento construído de forma intrínseca com a organização de trabalho pela ausência ou lacunas de contato. Da mesma forma, pela sobrecarga de pressão. Neste particular, o que se materializa nestas múltiplas vozes das narrativas, é a gerência da vida atuando em oposição à terminalidade diagnóstica de adoecimento. A pesquisadora no processo de estudo em doutoramento no Brasil e de intercâmbio em Portugal teve o contributo ativo dos colegas e professores do grupo de pesquisa, vital a reflexão e exploração contínua.
A análise do processo de adoecimento em relação ao trabalho derivados de concessão de Licenças para Tratamento de Saúde (LTS) numa instituição pública federal, no Brasil e as mesmas concessões de licenças, denominadas de “Baixas” numa instituição mantida pela organização Estado, em Portugal. As considerações são as implicações e interferências diretamente na saúde mental destes indivíduos.
A problematização refere-se a como se realiza o processo manutenção e desarticulação em saúde, mesmo em condições inóspitas e desarticuladas no quesito humano e tecnológico, que sobressaem num medo contínuo e recorrente em falar deste tema considerado tabu na esfera institucional. O processo de adoecimento nos relatos de experiência vivida é perpassada pelo eixo do envelhecimento do trabalhador no mundo do trabalho institucional.
No âmbito desta investigação, destacou-se sobremaneira a ação recíproca e interativa, no sentido de serem vozes ativas e permanentes em toda a relação estabelecida. É o “centrar-se na compreensão dos problemas, analisando os comportamentos, as atitudes ou os valores (…). Este tipo de investigação é indutivo e descritivo, na medida em que o investigador desenvolve conceitos, ideias e entendimentos a partir de padrões encontrados nos dados. (Souza & Batista, 2011, p.56).
Articula-se o eixo da passagem do tempo, enquanto envelhecimento no campo do trabalho no qual os estudos indagam a respeito dos modos como os sujeitos vivenciam e dão sentido a estas experiências de trabalho, assim como a forma com que as relações e os contextos de trabalho produzem determinados modos de constituição dos sujeitos. Assim, no tocante à subjetividade, evidenciam que a “[...] a relação entre subjetividade e trabalho remete a análise dos modos como os sujeitos vivenciam suas experiências de trabalho e a elas dão sentido [...]” (Tittoni & Nardi, 2011, p. 277).
No que se refere ao eixo teórico aqui proposto, cabe referir a perspectiva tomada do trabalho enquanto Atividade, seguindo referenciais da abordagem da Ergologia e Análise da Atividade de Yves Schwartz (2011). Nessas abordagens o trabalho é visto como um importante dispositivo criador de alternativas de vida, com potência de transformação de si e do mundo. E um fundamento para esses estudos é o conceito de Saúde como proposto por Georges Canguilhem (2012), segundo o qual ter saúde não significa estar livre de doenças, ou estar em uma condição estável de sobrevivência, mas se relaciona a uma constante possibilidade de renormatizar. O viver saudavelmente relaciona-se a criação de novas normas de vida, uma recriação constante das formas de viver. Assim, um sujeito saudável é normativo no sentido de que sempre que se depara com uma cristalização, um engessamento na forma de agir (nesse caso, de trabalhar), ao invés de ficar confinado ali e apenas seguir aqueles parâmetros, se permite inventar novas formas de agir, sendo capaz de seguir novas normas. O viver, então, de certa forma, é criar normas, e o problema é não poder ser o sujeito das normas.
Seguindo essa linha de entendimento, relaciona a essa noção de saúde o poder de agir, afirmando que saúde é um poder de ação sobre si e sobre o mundo, adquirido junto com outros. A saúde, desse ponto de vista, não é conservar-se sem modificações, mas usar das possibilidades do que se pode vir a ser para lidar com as contingências vitais. Entra aí, então, uma aposta que possa ajudar os trabalhadores a superarem o estancamento nas normas existentes e se reinventarem, sendo verdadeiros sujeitos das normas, expandindo coletivamente seu poder de agir. Nesse processo de renormatização dá-se uma experiência. Nesse sentido, a experimentação da prática de crítica na atividade de trabalho estaria ligada à expansão do poder de agir, e logo, da produção de saúde, ligada à invenção de novos meios para viver.
Nesse sentido, o entendimento da experiência, aproxima-se da concepção de atividade, conforme referida. O trabalho na dimensão da atividade, de renormatização e de criação de novos modos de trabalhar e viver, implica uma experiência, no sentido de algo que é vivido de maneira a transformar a história dos sujeitos. Analisar a experiência de trabalho, dessa maneira, implica interrogar como pelo e no trabalho algo tem se fabricado para si mesmo. A produção de crítica e atividade, então, pode valer-se da análise da atividade e da experiência de trabalho.
Ao privilegiar o ponto de vista da Atividade na experiência vivenciada no retorno ao trabalho, tem-se o intuito de “compreender de que forma os trabalhadores avaliam as características e as condições do seu trabalho, o seu estado de saúde, e que tipo de relações estabelecem entre a sua saúde e o seu trabalho” (Barros-Duarte, Cunha, & Lacomblez, 2007, p.59), estando particularmente atento ao debate de normas e de valores que atravessa esta Atividade e incorpora a explicitação do vivido no trabalho e sua evolução.
Assim, a complexidade do campo deste estudo não se esgota num diagnóstico dos problemas do processo de adoecimento relacionado ao trabalho, pois se distancia da noção fragmentada do corpo. “A superação dessas dificuldades encontra como um dos obstáculos a noção especializada e fragmentada do corpo em atividade de trabalho que embasa as práticas diagnósticas e preventivas.” (Echternacht, 2008, p.49). Salienta-se nesta perspectiva, os estudos recentes das atividades consideradas não-corporais também como possibilidades de análise. É destaque os estudos recentes sobre músculos esqueléticos em atividades consideradas “não corporais” e suas alterações, ou seja, “[…] o efeito provável do que chamamos de dramáticas do uso de si na produção desse tipo de alteração. Como se modulam essas enigmáticas sinergias, a serviço de estratégias mais ou menos claras ou obscuras para a consciência com o passar dos anos?” (Schwartz, 2014, p.263)
Face ao exposto, o objeto da investigação foi relativo à Atividade desenvolvida na altura do retorno ao trabalho, após um longo afastamento laboral que resultou em licenças para tratamento de saúde (L.T.S.) no Brasil e Certificado de Incapacidade Temporária para o trabalho (C.I.T.) em Portugal. A materialização desta investigação concentrou-se no objetivo geral: Explorar o surgimento e/ou manutenção do processo de adoecimento derivadas de Incapacidade Temporária ao Trabalho por longos períodos de ausência ou afastamento ao trabalho.
Considerando a questão apresentada como objetivo geral, faz-se necessário, agora, explicitar o caminho que foi delineado e percorrido até ao esclarecimento da mesma. Pretendeu-se desenhar este caminho através da formulação das seguintes questões norteadoras ou questões centrais de investigação, descritivas e exploratórias:
Questão de investigação 1: descrever o processo de adoecimento antes e após o afastamento do trabalho derivadas de Incapacidade Temporária ao Trabalho.
Questão de investigação 2: narrar a trajetória profissional enquanto processo de envelhecimento na relação entre adoecimento e manutenção de saúde.
Questão de investigação 3: evidenciar a implicação institucional no processo de invisibilidade do sofrimento psicossocial do trabalhador na função ou esfera pública.
Método
Participantes
O período de investigação se deu entre março a junho de 2016 no Brasil e de setembro de 2016 até junho de 2017, em Portugal, tomando como referência de análise alvo o ano de 2016, janeiro a junho. A totalização se efetivou com 18 participantes ativos no processo de investigação e pesquisa, tendo tido o aceite de 6 sujeitos participantes no Brasil e 12 em Portugal.
A metodologia de natureza qualitativa seguida teve as diretrizes elucidativas e esclarecedoras de pesquisa na Análise Temática de (Braun & Clarke, 2006) na busca por temas ou padrões derivados dos procedimentos investigativos de maneira deliberada e exaustiva de análise.
As transcrições das entrevistas com o consentimento dos entrevistados mediante o preenchimento do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e, posteriormente, transcritas conforme a realização das mesmas para uma fidedignidade e atenção à vivência do trabalhador. A Análise Temática faz-se pela leitura exaustiva do material, categorização e revisão deste estabelecimento de forma contínua, tendo a ferramenta “NVivo 11” para exploração e categorização do material.
Material
Nas contribuições significativas para investigação deste campo, a tese de doutorado de Sara Ramos surge como interlocução ativa e produtiva para realização do projeto. O seu “Método de Reconstituição Biográfica Centrada no Trabalho” se assenta, essencialmente, na Entrevista de Reconstituição Biográfica que “corresponde a uma forma particular de entrevista semiestruturada de cariz biográfico, especialmente concebida para a investigação”, onde são articulados “dados heterobiográficos e autobiográficos” (Ramos, 2010, p.110)
A biografia reconstruída encontra a sua tradução gráfica no Bio-Gráfico, instrumento composto por cinco linhas horizontais, cada uma correspondente a um campo temático, em que considera-se o bio-gráfico como “ a representação gráfica do percurso de vida, permitindo contextualizar, numa perspectiva longitudinal, os acontecimentos mais significativos da vida dos sujeitos, situando-se num paradigma “processual”, (Ramos, 2010, p.134)
A intenção é a de se ter linhas organizadas sobre uma linha cronológica central, permitindo visualizar e articular de forma clara o trajeto existencial individual e fazendo ressaltar os diferentes níveis de análise pretendidos. No nosso estudo integrou as seguintes vertentes: História do percurso profissional; História de saúde; Trajetória institucional relacionada com o(s) afastamento(s); Fontes de apoio como família, amigos, associações…; Possibilidades de ação e Mudanças em mim apontando o contexto atual de afastamentos. apontados no quadro 1.
Procedimentos
A estratégia metodológica escolhida centrou-se em etapas interdependentes em dois momentos que se interpõem de forma contínua. As possibilidades de se fazer uma pesquisa analítica e não descritiva apenas, em que coexistem estas duas vertentes de análise. Este estudo iniciou no Brasil com realização de observação participante, diário de campo e entrevistas individuais com servidores em fase de retorno ao trabalho após longos períodos de adoecimento (superior a 120 dias), numa instituição federal de ensino, na qual a pesquisadora principal é, ela própria, servidora pública federal (Parecer positivo 1.474.554 do Comitê de Ética em 01/04/2016). E numa segunda etapa da pesquisa, pretendeu avançar para uma comparação com pessoas que se encontram em situações semelhantes em Portugal (Parecer positivo 363-16 em 12/01/2017).
Quanto a realização de Entrevistas com os funcionários da instituição hospitalar, este procedimento foi programado em 2 ou 3 momentos, sendo pois:
a) a primeira entrevista consagrada: à apresentação do estudo e do seu método; ao preenchimento do TCLE; à concretização da “Entrevista de Reconstituição Biográfica”, solicitando a pessoa entrevistada que conte a sua história, referindo as suas várias vertentes, avançando-se progressivamente na linha da idade, sendo facilitado pela visualização do seu próprio bio-gráfico.
b) a entrevista intermediária: o momento em que procede-se à restituição dos conteúdos da entrevista anterior para validação da transcrição efetuada, possibilitando eventuais reformulações por parte do sujeito, garantindo a continuidade da narrativa.
c) a entrevista final (eventualmente realizada na mesma altura que a entrevista intermediária) consagrada ao exercício que consiste em tentar dividir a sua vida em fases, identificadas pelos significados atribuídos e pelos debates de normas e de valores associados a cada uma delas. É também espaço de reflexão conjunta com o entrevistado, dando ao sujeito a oportunidade para comentários ou reformulações finais, sendo finalmente solicitada a sua opinião acerca do processo.
A adoção dos 2 ou 3 momentos segue a tônica de se tornar a entrevista um momento de real elucidação, compreensão e imersão no universo vivenciado pela pessoa no trabalho, para possibilitar eventuais reformulações por parte dela, seja alterando, completando, ou revendo suas falas. Teve-se assim, a possibilidade de tornar a entrevista uma conversa real.
Na tentativa de um início comparativo entre as realidades sociais do Brasil e Portugal, iniciamos com as referências de dados obtidos com a universidade brasileira, UFPR. A maior porcentagem de afastamentos por doença registradas são derivados da instituição Complexo Hospitalar Hospital de Clínicas (CHC). Tendo ciência de dados comparativos da universidade há 5 anos devido a inserção profissional no setor responsável, detectou-se a concessão de LTS em 97% dos casos, caracterizando a necessidade de afastamento dos servidores de seu local de trabalho, seja por pouco ou muitos dias de licença. Notadamente em 2013, observou-se um significativo aumento percentual destes afastamentos ocorridos, sendo doenças psiquiátricas (CID F) 77% dos casos e doenças músculo esqueléticas (CID M) 38% dos casos. Esta situação originou o interesse pela realização da pesquisa de doutoramento com os trabalhadores em situação de retorno ao trabalho após períodos longos de afastamento, mais de 120 dias, pela tensão e ansiedade decorrente. Tendo tal propósito, fez-se este corte de amostragem, tomando como base o primeiro semestre de 2016, janeiro a junho.
Os dados disponíveis da UFPR em 2016 destacam dentre 3656 técnicos administrativos 1778 pertencente a instituição hospitalar, representativo por 48,63% do quadro geral. Este fato já demonstra a relevância da exploração da pesquisa neste público alvo de 326.
Mediante a estratégia metodológica de contato por e-mail, telefonema individual aos trabalhadores, percebeu-se recusa à participação na temática, havendo o aceite em 6 participantes ativos no Brasil e 12 em Portugal, assinalado a seguir. Sobressaiu assim, de forma direta e sucessiva as diversas formas de descarte, ou por que não dizer, recusa em participar da pesquisa. Esta situação foi descrita amplamente, mas não consegue resvalar nem a mínima parte dos reais momentos vividos, arrolados, designados na relação de convivência criada.
Após a realização da primeira parte da pesquisa, com os 6 sujeitos participantes no Brasil, ocorreu a mobilidade e intercâmbio entre as universidades, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS-BR) e Universidade do Porto (UP-PT). Sendo o mesmo motivo da pesquisa realizada no primeiro semestre de 2016 no Brasil e realizada no primeiro semestre em 2017 em Portugal, sucedeu as entrevistas abertas individuais com trabalhadores após afastamento por condições de saúde.
Em Portugal, no Centro Hospitalar de São João (CHSJ) na cidade do Porto concebendo o ano de 2016, revelou dentre total baixas de 4648, as baixas de longos períodos de ausência, (> 120 dias), totalizaram 193. Destas, 45 referiam-se ao quadro indicativo de início da ausência ao trabalho a partir de janeiro de 2016. Esta amostragem inicial das pessoas em potencial pra serem alvo da pesquisa teve a devida comunicação e contato pessoal feito pela pesquisadora; mantendo no final 12 sujeitos participantes que se dispuseram a participar da pesquisa.
Resultados
Quanto ao desdobramento do trabalho de coleta, referência de registros existentes na instituição hospitalar em Portugal, obteve-se em 3 anos consecutivos, (de 2014 a 2016) um percentual progressivo de ausências ao trabalho. Estas ausências além desse percentual, demonstram por si só o registro de trabalhadores que estão em processo de adoecimento, conforme a Figura 1.
Em conversa informal com os profissionais de saúde do CHSJ, são apontados que as limitações enquanto incapacidade ao trabalho são conferidas obedecendo as normatizações e exigências externas de atendimento às demandas no sentido mais geral do que apenas execução. Está presente um jogo contínuo entre os dirigentes e o grupo de funcionários, em conjunto com o contexto social de crise econômico-financeira para atingir produtividade elevada pela carga horária de 14h, 15 horas contínuas, “acima” do esperado. Instaura-se um clima de medo, de clima de insatisfação e insegurança, com resmungos no momento do “café”, mas nas associações de classe nada se realiza de concreto. Inclusive faz-se referência ao tradicionalismo familiar sem exposição das dificuldades sofridas.
A organização dos dados em categorização dos processos funcionais e o enquadre da amostra final, 12 participantes, aconteceram mediante o aceite final das pessoas (sob nomes fictícios) em participar voluntariamente do projeto de pesquisa. Dentre as análises, um quadro demonstrativo da totalização do grupo de participantes da pesquisa em ausências ao trabalho no CHSJ nos últimos três anos, de 2013 a 2016, conforme figura 2.
Categorias de análise temática nos afastamentos de saúde
O processo de análise dos dados e o desafio de selecionar, agrupar e organizar aquilo que aparentemente está muito conectado, entrelaçado se demonstrou ímpar. Talvez sejam justamente essa mistura e a mobilização do pesquisador os elementos necessários para a transformação social, afinal, não há mudança sem mobilização.
Assim, a estrutura das categorias foram criadas e surgiram na leitura exaustiva do material, sendo utilizados os têrmos literais ou palavras dos participantes em todos os elementos constitutivos da análise temática, para manter fidelidade às suas expressões. Assim, além da explicação constitutiva destas categorias, procede-se inclusão dos participantes como elementos operacionais de análise, ou seja, exemplificações das inúmeras participações encontradas.
As sete grandes categorias de primeira geração foram assim identificadas nas análises temáticas finais, extraídas das narrativas nas entrevistas. Os fragmentos trazem incluso itálico em partes específicas feitos pelas autoras, para apresentar maior relevância e atribuição ao dito enquanto a entrevista transcorria o seu curso, levando em consideração todas as alavancas existentes na relação que poderiam traduzir sensibilidade. É concernente a 28 participantes e 2432 fragmentos ou trechos, destacando os principais a seguir, no quadro 2.
Destas categorias de primeira ordem resultaram as categorias de “segunda geração” e de “última geração”, havendo subcategorias de maior relevância para o estudo cujo detalhamento está presente no trabalho final com o sistema completo de categorias pela Análise Temática - Nvivo11.
Atendo-se às questões de investigação, concluímos que quanto ao processo de adoecimento antes e após o afastamento do trabalho derivadas de Incapacidade Temporária ao Trabalho, percebeu-se a temática da pressão de produtividade e vínculo em expressar quase fui Aposentado. As questões derivadas do vínculo institucional ser da função pública também trazem a pressão pela resposta da manutenção da ordem ou regra. A pressão constitui a fala habitual para conversão a aposentadoria caso o trabalhador ainda deseje ter atenção à saúde garantida após concessão da licença, recebendo recados diretos e vultosos dos riscos econômicos a que estarão submetidos caso continuem na condição de fora do trabalho. A flexibilidade da ausência por motivos de saúde não pode extrapolar limites da ordem da lotação atribuída, número de ausências ao trabalho e a falta de pessoal que impera em todo o contexto institucional. Ou seja, é utilizado como instrumento de pressão para retorno ao trabalho causando constrangimentos e mal-estar ao trabalhador. Em trecho da entrevista de Cesar/Brasil narra “nestes 2 anos eu quase fui aposentado por invalidez permanente por doença não prevista em lei, ou seja, proporcional ao tempo trabalhado, que ia ocasionar uma influência orçamentária na minha família quase...muito grave.”
Igualmente, revela-se pertinente a inclusão do sistema hierárquico por quanto impactava em sua rotina diária, inclusive do vínculo laboral ter uma integração limitada, que não se manifesta estável para o trabalhador. Na entrevista de Bruna/Portugal/ Fase II, é intensificado o sistema de pressão ao referir:
“Sim, sim, muito difícil. Não é só uma relação difícil, mas é ehm…ehm… o papel de um Interno é muito complicado. Porque ehm…um interno ehm…não pode ehm… manifestar a sua opinião de uma forma completamente livre, de uma forma ahm… está condicionado. Ahm…porque com os superiores, o diretor, o orientador do serviço, etc, possam achar que ehm… e é… quando digo a nossa opinião não pode ser manifestada livremente, eu digo a nossa opinião clínica, a nossa opinião pessoal, a nossa opinião profissional, e não pode ser ehm… não é, não nos é dada esta voz! Não é em todo sítio, não é todo lado assim. Aqui é, aqui é assim!”
Na questão de investigação, quanto a trajetória profissional enquanto processo de envelhecimento na relação entre adoecimento e manutenção de saúde, verificou-se impacto e influência da gestão e sistema de emprego da função pública em consonância com outros vínculos da iniciativa particular tendo conectividade com o adoecimento de forma crônica. Aponta a questões de subordinação hierárquica, as relações conectadas com a gestão do trabalho em todas as interfaces de relacionamento e comunicação quanto às normas e regras laborais existentes. Relatam explicitamente observações como: “fomos proibidas” referindo-se a gestão do trabalho em que são feitas alusões às chefias, às coordenações com uma carga bastante eloquente em todo o discurso. São passagens significativas em todo o processo da entrevista, com 24 participantes fazendo todo tipo de menção quanto ao tipo de relacionamento, os contatos para decisões sobre sua trajetória institucional, conexões com legislação, falta de pessoal muito falada no dia-a-dia, além de responsabilização do setor organizacional como o de saúde ocupacional, por exemplo. Em trecho da entrevista de Cesar/Brasil ao relatar “No momento que o médico do trabalho avalia uma situação do trabalhador, que a origem é doença relacionada a trabalho e 99% Gestão do Trabalho aí o Cesar não serve! Então eu prefiro ser um médico clínico com a minha formação em perícia trabalhista e saúde ocupacional.” Conforme se expressa, este discurso traz experiência vivenciada quanto as dificuldades em se falar sobre as relações no trabalho estarem conectadas com a dinâmica organizacional e estrutura quanto a organização do trabalho, sem haver qualquer tipo de espaço para a escuta ser quanto a nexo causal.
E finalmente, quanto a buscar evidência da implicação institucional no processo de invisibilidade do sofrimento psicossocial do trabalhador na função ou esfera pública, explora-se a temática da saúde grave associado ao trabalho quando surgem algumas das narrativas que deixam de forma clara e inequívoca a correlação do trabalho como potencial instigador do estado de saúde estar de tal modo prejudicado no trabalhador. Se a questão de nexo causal não tem o mesmo registro nas classificações do código internacional de doenças (C.I.D.), ocorre inteira perspicácia das interações e acometimentos entre padrões da atividade de trabalho e consequências no campo da saúde advindo destas estruturações. Abordam como sendo “problemas relacionados ao trabalho”, que são portanto, de diversas ordens e no nosso entender, provavelmente o mais emblemático de todos, dando origem e tensionamento afetivo desta tese. Percebe-se no trecho da entrevista de Bruna/Portugal/Fase I:
“desconfiança… ehm… de… mais do que desconfiança, desconforto pelo fato de o serviço poderia ser posto em causa porque ficou um registro de que esta Interna teve um problema de saúde grave associado ao trabalho! Ele lia todo, ele lia todo! Ehm… e portanto, o comportamento dele, face a situação, foi essa. Eu pus em causa o serviço! Porque ficou o registro né? Eu já não completo o registro, agora muito pouco…agora muito pouco. Agora tenho…”
Percebeu-se também a temática específica do retorno ao trabalho por estarem na condição de reflexão sobre sua condição de saúde, quaisquer que fosse, fase I ou fase II da entrevista, um dos aspectos centrais de preocupação ao dizer respeito ao futuro Após a Alta. Notadamente, essa é uma condição do adoecimento enquanto origem, um dos fatores mais delicados na problematização atual por resvalar com a estrutura de transferências e ânsias por outras localidades de trabalho. A discussão que se impõe é quanto às “condições” deste retorno estarem balizadas por atendimento a critérios burocráticos e de tempo cronológico. O debate é quanto a consideração de critérios objetivos na manutenção da saúde mental destes atores relativo à reabilitação em suas circunstâncias psicossociais, observando zêlo e encargos. Apontamos o trecho da entrevista de Felipe I/Portugal/ Fase I ao narrar:
Impacto na saúde mental“ Aí sim, voltei pro mesmo serviço, pra Medicina Interna. E aí foi mais complicado, porque... a integração né? A integração...porque, porque há uns colegas que não sabiam o que é que eu tinha feito, porque tinha estado tanto tempo de baixa. Outros colegas, que eram mais próximos de mim, sabiam. E eu acho que depois de passado um tempo, quase toda a gente já sabia porque é que eu tinha metido baixa. E infelizmente, aqui, como em toda parte, é um bocadinho...é um bocadinho...como eu vou explicar? É um bocadinho...uma rejeição! Não estava com adição, mas...assim, um bocadinho... Já havia umas pessoas que eu via que me olhava de lado. Já não tinha a mesma vontade comigo. Já não falavam como falavam. E a minha chefe? A minha Chefe...a minha Chefe não confiava em mim né? Foi complicado porque num...como é que eu vou dizer? Não punha a fazer as coisas de enfermeiro, punha sempre a fazer coisas sempre acompanhado de outro colega. Não atribuía doentes. Eu antes, eu era responsável por 8 a 9 doentes, em cada turno. E...quando vinha, ela não confiava. E punha-me sempre acompanhado por outro colega. Não podia fazer nada, não ficava sozinho, não tinha autonomia. E...e isso me deixou um bocado assustado à altura. Um bocado não, muito frustrado.”
Concebemos que os aspectos do evoluir do trabalho e da saúde elegíveis aqui são sobretudo aqueles que interpelam particularmente o uso de si (Schwartz, 2014), concretizado “na forma como cada um gere a sua vida no trabalho e constrói a sua saúde” (Barros-Duarte & Cunha, 2010, p.21). O gerir a vida no trabalho está no nosso entender, convocando deste modo o conceção da saúde que Georges Canguilhem (2012) nos ensinou a apreender não como um estado, mas como um processo histórico de saberes e práticas intrinsecamente relacionadas na capacidade de instaurar novas normas.
As análises refletem que a definição de saúde mental ou psíquica é ainda mais complexa, pois encontra-se diretamente vinculada à questão do “normal e do patológico”, envolvendo a complexa discussão a respeito dos estigmas da doença mental. A atribuição de um diagnóstico psiquiátrico a uma pessoa significa, na maioria das vezes, colocá-la num espaço que pode ser de grande sofrimento, sendo a saúde um recurso para a vida diária e não um objetivo de vida apenas. Trata-se de uma potência em ação, um conceito positivo que considera e enfatiza os recursos sociais e pessoais, tanto quanto as condições físicas e fisiológicas do indivíduo.
A maioria das transformações vividas no mundo do trabalho não fizeram mais que agravar o estado da saúde mental dos trabalhadores. É indispensável que as diferentes investigações se proponham como objetivo fazer ouvir a voz daqueles que conhecem melhor o trabalho: aqueles que o realizam, aqueles que comprometem dia a dia o seu corpo, sua subjetividade, para preencher a lacuna entre o trabalho prescrito e o trabalho real. Estes atores sociais são os únicos que conhecem o trabalho real e as dificuldades confrontadas diariamente, e portanto, conhecem vias possíveis para sua transformação.
Discussão
A importância da análise ergonômica da Atividade está em tornar concreto o espaço temporal de operacionalização do trabalho pelo seu participante na memória ativa dos riscos existentes e das possibilidades de resingularização permanente da situação. “Trata-se, de certa forma, de contaminar os espaços de trabalho e de investigação com a clara consciência de um certo modelo de humanidade que nos faça ver o nosso semelhante, seja ele operador ou decisor, como alguém que está “em atividade”, isto é, alguém - como cada um de nós - cuja atividade é lugar de gestão de debates de normas (…) “(Lacombez, 2009, p. 58 ) Equivale referir a ação contínua de estabelecimento de conexões de saberes que interagem entre si.
Concernente à saúde mental, é fundamental a sua análise quanto aos riscos existentes, relativo às estratégias, defesas e reações dos servidores na ação realizada; que termina por trazer os agentes agressores presentes e as condições de trabalho do trabalhador.
Por conseguinte, a Análise Temática revelou os sete nós ou categorias de primeira geração, deixando entrever agrupamento e conectividade final em: Corpo à bala enquanto expressão de assujeitamento a realidade vivenciada pelas relações de fomos proibidas quanto a normatividade instituída e instituinte de valores e preceitos. Normas constantemente passíveis de renormatização mediante o gerir o trabalho com a vida-Paciente na condição de ser e estar adoecido, a relação entre saúde e trabalho enquanto debate e existência nas experiências de vida. Experiências que buscam vazão à potência de agir, safa na vida, que concebem os movimentos contínuos de processos em atividade humana. Se conseguirmos fazer ouvir essas vozes, poderemos avançar, não a alienação e ao isolamento, podendo se constituir em linhas de direção a transformação do trabalho.
REFERÊNCIAS
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Endereço para correspondência | Dirección para correspondencia | Correspondence
Rua Amazonas, 1167, apto 203, CEP: 80610-030, Alto da Glória, Curitiba-PR, Brasil; +55 (41) 991552488, angel@ufpr.br
Agradecimentos
A oportunidade de realização de intercâmbio no Programa Doutoral em Psicologia na Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação, Universidade do Porto-Portugal. Agradecimento especial no aceite de Orientação em tutoria complementar da Profª Catedrática Drª Marianne Lacomblez e da Profª Auxiliar Drª Liliana Cunha, tendo anuência e respaldo acadêmico de minha Profª Orientadora Drª Jussara Mendes da UFRGS-Brasil.
Recebido em 14 de Novembro de 2018/ Aceite em 08 de Maio de 2020