A crise COVID-19 veio alterar o funcionamento de todos os sistemas sociais e da forma como nos relacionamos e movemos no espaço social. Apesar dos perigos para a saúde física e mental terem sido alvos de pronta discussão (e.g., Holmes et al., 2020; Jiménez-Pavón et al., no prelo), algumas sugestões foram propostas para a recuperação do mercado de trabalho e das relações interpessoais. A digitalização surgiu assim como uma solução inevitável. Os defensores das relações face-a-face conformam-se à necessidade de digitalização e os promotores das Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC) aproveitam a oportunidade para instaurar a mudança há muito planeada, formando trabalhadores insuspeitos e promovendo a literacia digital sob a égide da necessidade criada pela crise, poupando nos custos diretos e motivando para a mudança. Assim, importa refletir sobre o que nos mostra a literatura, acerca da ubiquidade das TIC. Com efeito, a digitalização não é uma novidade e, já no tempo pré-crise COVID-19, as sociedades dependiam cada vez mais das TIC e os comportamentos dos homens mudaram como resultado da sua influência. Este artigo explora a situação dilemática que o mundo moderno vive tendo como perspectiva o facto de as TIC serem, por um lado, fator dinamizador, impulsionador das atividades nas organizações e nas famílias, e por outro, se traduzirem em prejuízo, sobretudo para a saúde e para as relações interpessoais. Aqui, procuramos fornecer ao leitor uma oportunidade de reflexão a partir do conhecimento existente. Por esta razão, analisamos e discutimos informações que evidenciam diversas dicotomias patentes na literatura, tais como aquelas relacionadas com as TIC e relações interpessoais, o “spillover”, a conectividade e o burnout. Estas informações deverão ser tidas em conta pelos indivíduos e organizações ao prepararem a transformação digital que se avizinha na cultura corporativa.
As TIC e as relações interpessoais
Os seres humanos prosperam ao desenvolver relações interpessoais positivas, pois constituem um veículo para o desenvolvimento de laços emocionais e coesão familiar. Tradicionalmente, esses relacionamentos resultam de contatos face a face, já que tanto os relacionamentos interpessoais eficazes quanto o bom desempenho social exigem que os indivíduos percebam e processem com precisão o ambiente ao seu redor, e isso envolve descodificar expressões não verbais de emoção nos outros (Baum & Nowicki, 1998). Além disso, as interações sociais permitem a coleta de informações sobre os dados afetivos de outras pessoas através de uma infinidade de sinais não verbais, incluindo expressões faciais, posturas corporais, modulações de toque e voz (Lima et al., 2013). Assim, podemos inferir que um sorriso ou um tipo de olhar poderá comunicar o estado emocional, imprescindível à construção de relações sociais. A comunicação de tais estados nem sempre é possível quando mediada pelas TIC, por exemplo através de redes sociais. No entanto, a ideia de que a proximidade e a interação face-a-face é essencial para a manutenção de relações tem sido desafiada (Baldassar, 2016). Aliás, as TIC têm sido descritas como permitindo um espaço complementar e alternativo para a formação e sustentação de relacionamentos (Mesch, 2019). Contudo, as relações sustidas pelas TIC, não subtendem um dispêndio temporal na construção da relação. Há sim, uma tendência inversa, na qual a economia se torna central, seguindo uma filosofia capitalista de uso racional de recursos e tempo (Abreu, no prelo). Dessa forma, as empresas, naturalmente voltadas para o ganho financeiro, promovem o uso das TIC e cada vez mais funcionários as utilizam diariamente, principalmente no ambiente familiar (Chesley, 2015). De facto, o uso das TIC em ambiente familiar foi investigado por Piedrahita e colaboradores (2017) que mostram que embora o uso das TIC permita um maior fluxo de informação com o potencial de reforçar o núcleo familiar, sugerem a necessidade da existência de uma cultura familiar imbuída de regras acerca do uso e tempo alocado ao uso das TIC, assim como a promoção da construção relacional presencial, para que as TIC não levem à deterioração da comunicação familiar e ao isolamento. A existência de regras poderá limitar o uso inapropriado das TIC como o uso para trabalho em ambiente familiar. No entanto, o teletrabalho, que veio colmatar a necessidade de reativação da economia em tempo de crise, vem desafiar esta necessidade de separação entre trabalho e família.
O facto das TIC tornarem o indivíduo acessível ao trabalho a toda a hora e em qualquer lugar, leva-o também a pensar frequentemente no seu trabalho e esse tipo de preocupação é prejudicial ao bem-estar, afeta as interações e reduz a sua disponibilidade para as relações interpessoais de contato face-a-face na interação familiar (Offer, 2014). Não é apenas no meio familiar que as TIC podem prejudicar as relações interpessoais e, em última instância, a saúde mental. No ambiente profissional, o trabalhador, assoberbado com a quantidade e qualidade de informação a processar via TIC, poderá sentir uma enorme pressão para o desempenho e stress. Este fenómeno tem sérias implicações para a saúde mental e bem-estar (O’Driscoll et al., 2010). O teletrabalho constitui um estudo de caso chave da difusão das TIC na vida pessoal e profissional, levando ao esbatimento da fronteira entre as duas. Apesar dos ganhos, essencialmente financeiros, do teletrabalho viabilizado pelas TIC, ocorre o desapego psicológico, que leva os funcionários a experimentar a perda de funcionalidade no seu trabalho e a desenvolver cinismo nas suas relações. A conectividade facilitada pelas TIC pode despertar o sentimento de falta de contato pessoal e empático mediado pela ausência do contato físico com os outros, que facilita a exploração dos aspetos emocionais envolvidos na linguagem humana (Harpaz, 2002). Assim, podemos encontrar duas pessoas próximas, partilhando o mesmo espaço geográfico, mas, na prática, estarem distante um do outro, devido à mediação das TIC, da sua relação interpessoal (Carvalho et al., 2015; Mesch, 2015). Esta percepção de distância e isolamento pode fazer emergir problemas psicológicos (Diaz et al., 2012). Por outro lado, as TIC parecem reduzir a necessidade de contato face-a-face em vários domínios da vida e a substituição do contato face-a-face pelo contato pessoa-TIC-pessoa, já vinha reduzindo o número de encontros presenciais de lazer antes do surgimento da crise COVID-19 (Twenge et al., 2019). Para Abreu (no prelo), esta é a era do faça-você-mesmo, em alusão ao facto de cada vez se criarem mais condições, através das TIC, para o indivíduo se auto-servir, levando a um aumento do gasto de recursos pessoais, não libertando o indivíduo para situações de lazer e interação face-a-face que, em última instância, promovem a saúde mental. Ainda relativamente a este ponto e sobretudo em ambiente familiar, apesar de muitas pesquisas apontarem para inúmeras vantagens das TIC, também existem as que referem que a alta conectividade pode reduzir o tempo para o fortalecimento da intimidade entre os membros da família, leva ao isolamento na mesma casa e à baixa coesão familiar (Carvalho et al., 2015; Mesch, 2015), já que há menos interações sociais de contato face-a-face (Twenge et al., 2019). Paralelamente, a dinâmica das TIC, vai acomodando vários fenómenos, entre os quais se notabiliza um que ocorre no seio dos funcionários. É descrito na literatura por “telepressure” e traduz-se por um forte desejo de responder às pessoas através das TIC, levando a uma maior eficiência temporal no desempenho de tarefas organizacionais, interferindo com o tempo de recuperação necessário para gerir o stress, levando a reações negativas tais como ansiedade, frustração e depressão (Barber & Santuzzi, 2015). Este desejo de correspondência mediada pelas TIC leva a uma maior conectividade que se afigura problemática quando ocorre em detrimento de outras atividades que medeiam a recuperação dos funcionários, como é o caso das atividades de lazer (Diaz et al., 2012; Piszczek et al., 2016), já que as atividades de lazer confortam e causam sentimentos de autoeficácia (Abreu, no prelo). Assim, torna-se crucial o desapego psicológico ao trabalho, o que passa por não ocupar com o trabalho o horário extra laboral, seja através das TIC ou outra forma que propicie o spillover (i.e., atividade laboral que contamina o ambiente familiar), pois só assim, o funcionário poderá descontrair, criando facilidades para a recuperação após uma jornada laboral (Park et al., 2011), bem como criando espaço para fortalecimento dos laços familiares, fator necessário ao bem-estar físico e mental. Porém, apesar destas evidências, o estilo de vida atual, e em particular, as alterações na forma de trabalhar subsequentes à crise COVID-19, torna as TIC omnipresentes, e estas podem ser aproveitadas negativamente pelas organizações para promover culturas organizacionais que permitam o spillover. Importa destacar que o spillover está relacionado com as percepções de conflito trabalho-família que, por seu turno, prediz o burnout e a satisfação no trabalho (Greenhaus & Beutell, 1985; Wright et al., 2014), já que o impacto das situações laborais no funcionário se prolonga para o ambiente familiar, bem como os assuntos da vida domésticos tendem a transbordar para o ambiente laboral (Leung, 2011) .
Relação entre as TIC e o spillover
Não há dúvida que as TIC vieram modificar a vida da sociedade contemporânea, pois tornaram a vida mais fácil e prática e, com elas, teoricamente, as distâncias entre as regiões desapareceram, o espaço delimitado denominado ‘empresa’ para o exercício de tarefas profissionais também deixou de ser fulcral. As TIC trouxeram uma dinâmica social que mudou as relações nas diversas organizações sociais. Porém, para além das facilidades e ganhos que acompanham as TIC também se notam prejuízos na esfera física e familiar (Reinecke et al., 2017). Para alguns autores, estes prejuízos estão associados ao comportamento do utilizador que muitas vezes não consegue ser regrado e responsável, o que acaba por criar uma espécie de conflito entre o ser social e as ferramentas tecnológicas (Piszczek et al., 2016). No entanto, também há relatos que apontam para a estrutura organizacional das empresas que impele os seus colaboradores para situações de extensão da jornada, para o meio familiar (Greenhaus & Beutell, 1985; Wright et al., 2014).
Surge assim a necessidade de clarificar que o fenómeno do spillover não se verifica somente associado às TIC, pois o tempo e as energias gastas no trabalho diminuem a disponibilidade efetiva para atender, de forma responsável, presente e prazerosa à família (Greenhaus & Beutell, 1985; Offer, 2014). A preocupação excessiva com o trabalho seja de que natureza for, também é outro fator que contribui para a fraca disponibilidade para os programas familiares que, embora rotineiros, são de extrema importância para a coesão e funcionalidade familiar (Small & Riley, 1990). Como já referimos, o spillover tanto pode ocorrer na direção casa - trabalho como na direção trabalho - casa (Wright et al., 2014) e o impacto é notório nos dois sentidos (Sonnentag & Pundt, 2017). Já Greenhaus e Beutell (1985) discutiam os conflitos da vida profissional que interferem na vida familiar bem como conflitos da vida familiar que interferem na vida profissional ainda que não tenham referido o termo ‘spillover’, este termo pode ser usado para sustentar a narrativa que descreve estes conflitos. Este fenómeno de spillover varia conforme as características dos trabalhadores, nomeadamente trabalhadores com dependentes são menos flexíveis e procuram separar o trabalho da família, contradizendo a ideia de que a flexibilidade e permeabilidade são formas eficientes para alcançar o equilíbrio trabalho-família (Tremblay & Genin, 2008), como por exemplo, através do teletrabalho.
Apesar do fenómeno spillover não ser consequência imediata do uso das TIC, estas vêm viabilizar uma massificação do spillover, o que torna a fronteira entre a casa e o local de trabalho muito mais porosa (O’Driscoll et al., 2010; Wright et al., 2014), dificultando a troca de papeis sociais, o que perturba a reorganização do indivíduo do ponto de vista biológico e psicológico (Reinecke et al., 2017).
Com as TIC, o lar tende a deixar de ser local de repouso, de fortalecimento de vínculos através da interação social sólida, pois embora os membros da família ocupem o mesmo espaço geográfico, do ponto de visto da funcionalidade cada um está distante, ocupado pelas TIC, sendo que, ainda que os prejuízos sejam menores para aqueles que conseguem encontrar estratégias claras de separação do trabalho e família, parece que prolongar o trabalho via internet, tem efeitos essencialmente prejudiciais (Vayre & Vonthron, 2019). Leung (2011) define spillover como sendo permeabilidade que se traduz em transposição de papeis e de limites do ponto de vista comportamental, facto que leva o indivíduo a estar fisicamente num local, mas psicologicamente noutro. Esta invasão de ambientes, caracteriza-se por transbordar de tarefas ou preocupações a elas associadas tanto profissionais como familiares, trazendo conflitos com consequências biológicas, psicológicas e sociais (Reinecke et al., 2017). Murray e Rostis (2007), defendem a separação de domínios, delimitação clara de fronteiras (trabalho e vida familiar), como condição para manter o equilíbrio e saúde mental. Considerando a crise COVID-19 que levou ao isolamento social e preferência pelo teletrabalho, poderemos imaginar famílias cujos pais se encontram com os filhos em casa, a tentar trabalhar via internet, sem delimitações possíveis, já que têm de providenciar atenção aos dependentes ao longo do dia. Para estes trabalhadores, poderemos conceber como a dificuldade em estabelecer ou implementar estratégias de separação trabalho-família e como a permeabilidade do trabalho na família e vice-versa, poderá levar a um aumento do stress e decréscimo do bem-estar e saúde mental.
Conectividade e omnipresença das TIC e burnout
A conectividade é explicada pela exposição que se manifesta pela quantidade de tempo que o indivíduo se mantém on-line respondendo a solicitações profissionais, familiares ou mesmo de amigos, respondendo a emails, mensagens, entre outros (Diaz et al., 2012; Wright et al., 2014), sendo mediada pela idade dos usuários, mas também pela intensidade das relações que as pessoas desenvolvem através da internet (Loges & Jung, 2001). Há estudos que mostram que cada vez mais pessoas usam as TIC, facto que se traduz no aumenta da exposição dos indivíduos a estas ferramentas de comunicação tanto em contextos profissionais como sociais e familiares. No entanto, os benefícios das TIC só são potencializados no caso da existência de uma capacidade para controlar as TIC, seguindo regras estruturadas. Alternativamente, os malefícios do uso das TIC no seio da família, como o isolamento e solidão, são potencializados (Romero-Ruiz et al., 2017). Esta constante exposição às TIC assume então, grande influência nos indivíduos conectados, já que os usuários estão ligados, de forma extrema e permanente às TIC para satisfazer as suas necessidades (Ninaus et al., 2015; Reinecke et al., 2017), já que através de emails, whatsapp, telefones celulares e outras ferramentas tecnológicas e plataformas, é possível continuar com as tarefas profissionais em casa, continuando a alimentar a expectativa de resposta presente no uso das TIC e, por outro lado, ser possível continuar a gerir assuntos domésticos mesmo estando no trabalho (Leung, 2011). A adição às TIC manifesta-se, muitas vezes, pelo uso frequente do telemóvel e do menor período de tempo até ao primeiro uso da manhã. A adição ao telemóvel é mais prevalente em adolescentes (Haug et al., 2015). No entanto a adição pode ocorrer em todas as faixas etárias, sendo que funcionários admitem ter a sensação de estar conectados sempre ao local de trabalho através das TIC, apesar de uma sensação de ausência de controlo sobre o seu trabalho (Wright et al., 2014).
A grande quantidade de informação que o indivíduo dispõe, as facilidades resultantes do uso das tecnologias de informação tanto podem ser benéficas como podem ser prejudiciais (Vayre & Vonthron, 2019): por um lado, as TIC dinamizam a vida em todos os domínios, por outro, atuam como estressor, dificultando a recuperação (Braukmann et al., 2018).
Não é nossa pretensão diabolizar as TIC, mas refletir sobre o modo como as TIC vieram alterar o mundo contemporâneo e como esta alteração, exacerbada pela crise COVID-19, deverá ser objetivada numa perspectiva que salvaguarde a saúde mental, já que também há efeitos positivos do uso das TIC nas diversas áreas da vida moderna que devem ser salvaguardados através da formação digital (Lera-López et al., 2009), com grande impacto nas pessoas, nas famílias, nas profissões e também nas organizações. Assim, cabe a cada utilizador das TIC traçar uma postura responsável no seu uso (Piszczek et al., 2016). No entanto, a opção de postura responsável poderá não estar disponível em tempo de crise e este apelo surge na sequência de evidências que mostram que há cada vez mais funcionários que se insurgem com a sobrecarga de trabalho associado ao dinamismo que as TIC proporcionam, já que através delas ocorre, com frequência, o spillover (Vayre & Vonthron, 2019), com conflitos e prejuízo para a saúde mental e vida familiar, observando-se redução das interações, e a superficialidade nos laços relacionais (Bretones et al., 2017). Se associarmos estes prejuízos ao frenético estilo de vida que caracteriza os tempos modernos (Abreu, no prelo), as famílias tendem a perder o sentido de comunhão, abrindo espaço para a solidão. Portanto, a versatilidade das TIC gera conectividade, já que a sincronização, a par das notificações em tempo real, leva à dificuldade em resistir ao impulso de procurar conhecer o conteúdo da informação (Bretones et al., 2017; Reinecke et al., 2017; Vayre & Vonthron, 2019). Este impulso é mediado por uma ativação neuronal e emocional automática (Meshi et al., 2015), o que leva à geração da ideia de que se está sendo consumido pelas TIC e não o contrário, muitas vezes com alguma consciência relativa do que está a ocorrer, mas sem estrutura para contrariar o rumo dos factos (Murray & Rostis, 2007; Pocinho & Garcia, 2008; Vayre & Vonthron, 2019). Sabemos que a pressão do dia-a-dia laboral cria stress, mas normalmente o organismo rapidamente recobra o equilíbrio, porém o uso das TIC para tarefas relacionadas ao trabalho fora do horário laboral, pode aumentar o nível de stress e desgaste, sobretudo quando associado à necessidade de atender telefones móveis via chamada de voz, mensagem de áudio ou de texto e responder e-mails, facto que também contribui para o aumento da conectividade entre os indivíduos (Meshi et al., 2015; Wright et al., 2014). A conectividade constante associada às TIC pode levar à dependência e a comportamentos compulsivos caracterizados pela preocupação excessiva em vigiar os dispositivos para manter-se sempre a par (Bretones et al., 2017; Haug et al., 2015; Meshi et al., 2015) e a autoestima está negativamente relacionada com o uso compulsivo das redes sociais, enquanto a ansiedade de interação está positivamente relacionada com o uso compulsivo das redes sociais (Aladwani & Almarzouq, 2016). Considerando a fragilidade da saúde mental em situação de crise, podemos conceber que o isolamento social venha exacerbar a ansiedade de interação e, deste modo, o uso compulsivo das redes sociais.
Estudos com estudantes e jovens adultos, constataram efeitos prejudiciais associados a altos níveis de uso das TIC (Reinecke et al., 2017; Thomée et al., 2010). Também existe o medo de perder informação e não estar envolvido nos eventos ou informação disponibilizadas pelas próprias TIC e internet. Este medo de não estar envolvido prediz um maior engajamento nas redes sociais, um uso das mesmas imediatamente após acordar e a contaminação de atividades como assistir a aulas ou condução de veículos durante consulta de email, mensagens ou facebook (Przybylski et al., 2013). Assim, o desejo de conectividade pode-se tornar perigoso tanto para a saúde mental como física, visto ativar a necessidade constante de verificar o dispositivo digital, mesmo em situação de condução de veículos. Para além destes prejuízos, os dados demonstram que a exposição às TIC tem impacto negativo sobre aspetos específicos da saúde mental, como por exemplo, a ocorrência de ansiedade, burnout, tecnostress, distúrbios de sono, depressão entre outras (Crable et al., 1994; Haug et al., 2015; Ninaus et al., 2015; Thomee et al., 2010). Importa referir que também há estudos que destacam os benefícios da exposição às TIC, já que as associa à redução da ansiedade e da frustração, porém esses benefícios dependem do tipo de exposição e da experiência digital (Chua et al., 1999). Assim, os ganhos com as TIC sustentam-se na ideia de aumento da formação dos indivíduos (Piedrahita et al., 2017). Podemos aqui identificar uma controvérsia já que os prejuízos para muitos estão associados à pessoa e não propriamente às ferramentas (Piszczek et al., 2016; Wright et al., 2014), devido à ausência de regras de utilização das TIC sobretudo no horário extra laboral (Piszczek et al., 2016). Determinados grupos laborais podem agir de forma diferente face às TIC. Grupos homogéneos (que podem ou não, mover-se no mesmo espaço laboral), por exemplo, consideram que os outros devem responder às TIC de forma semelhante à sua e poderão usar as TIC como forma de controlo social (Mazmanian, 2013). Na situação que vivemos, em particular os trabalhadores que transitaram para um esquema de teletrabalho, poderão não ter acesso às formações necessárias ou sentirem-se assoberbados com o número de formações que devem fazer para dominarem uma ferramenta nova. Para além disto, o controlo social na organização acaba por se impor também, através das TIC, mediante monitoramentos em diversas plataformas digitais com expetativa e pressão para respostas imediatas sob o auspício de fragilizar a situação laboral do trabalhador. Assim, permanece a dúvida sobre o que é considerada uma utilização adequada das TIC? Até que horas se considera cordial ou mesmo ético enviar uma mensagem? E será que as chefias estão conscientes da intrusividade das TIC na vida familiar dos seus trabalhadores?
As TIC vêm exigir novas formas de organização intra- e extra- empresarial e familiar. Estas novas formas de organização têm sido fonte de desajustes psicossociais pois deixam o profissional stressado. O esgotamento profissional, resultando do stress, é descrito como sendo uma perturbação psicossocial que é consequência de uma tentativa prolongada de dar resposta ao evento causador de stress. Aqui destacam-se três dimensões, nomeadamente a exaustão, sentimentos de cinismo e distanciamento do trabalho e sentimento de ineficácia e falta de realização (Maslach, 2003). Ainda segundo este autor, a exaustão é o principal critério para a definição do burnout e, normalmente, a exaustão e cinismo ocorrem em situações de sobrecarga de trabalho e conflito social. Já o sentimento de ineficácia aparece associado à falta de recursos para a materialização da atividade. Quando a atividade profissional sistematicamente não deixa espaço para que o organismo enfrente satisfatoriamente a pressão, mantendo-o stressado, pode precipitar algumas perturbações psicossociais como é o caso do burnout, uma entidade nosológica independente da depressão ou ansiedade (Koutsimani et al., 2019). Porém, para Wright et al. (2014), o nível de stress e consequentemente, o burnout, está intimamente ligado à dependência que alguns funcionários têm com as TIC, já que procuram constantemente saber se terá entrado alguma informação. Este comportamento também é mencionado por Meshi e colaboradores (2015) que referem a existência de recompensas sociais e retroalimentação pelo uso das TIC, e por Piszczek e colaboradores (2016) que explicam que a projeção tão alta das TIC pode chegar a moldar o autoconceito e alterar as percepções de auto-identidade. Brewer e Shapard (2004), por sua vez, mostram que as pessoas mais velhas apresentam menos burnout ou porque, entretanto, saíram da empresa que causava burnout mais novos, ou porque, com o tempo e experiência afinaram as suas estratégias de coping. Estes e outros autores apresentam como fatores preditores do burnout nas organizações: a personalidade, a sobrecarga de trabalho, o conflito de papéis e o ambiente de trabalho. Para além das consequências biopsíquicas bastante referidas, a conectividade - pelo facto de facilitar o spillover - conduz ao conflito na família e empobrece as relações interpessoais (Brewer & Shapard, 2004; Mazmanian, 2013; Piszczek et al., 2016; Twenge et al., 2019). Esta reflexão mostra a premência de encontrar formas adequadas do uso responsável das TIC nos diversos contextos, o que eventualmente poderá exigir a definição de normas mais mobilizadoras que salvaguardem as organizações, os profissionais e as famílias. O uso responsável das TIC é especialmente necessário para atenuar os prejuízos para a saúde mental do envolvimento brusco e avassalador das tecnologias digitais para fazer face à crise COVID-19.
Considerações finais
As TIC imprimem uma dinâmica que exige do utilizador uma negociação inteligente de modo a saber tirar proveito dos ganhos minimizando os prejuízos, pois ninguém se imagina a viver sem as TIC. A omnipresença das TIC compromete a saúde mental, visto gerar stresse que culmina com burnout, empobrece a qualidade das relações sociais, reduz as interações interpessoais, reduz o tempo de fortalecimento da intimidade na família, influenciando a coesão familiar. É notório o aproveitamento da omnipresença das TIC para a promoção de spillover, levando os funcionários a jornadas laborais que se estendem para ambientes familiares, gerando conflitos no seio das famílias. Com a crise COVID-19, o teletrabalho e a consequente promoção da difusão das TIC, poderá exacerbar ainda mais a situação de spillover que já se vivia. Naturalmente que não vilificamos as tecnologias que têm permitido a manutenção de muitos postos de trabalho em tempo de crise. No entanto, é urgente considerar que esta nova normalidade digital poderá disseminar vários problemas de saúde mental que terão de ser abordados e, de algum modo, mitigados. Por outro lado, as empresas que aproveitam a crise COVID-19 para instalar um processo de migração digital, deverão considerar que os ganhos financeiros imediatos, poderão levar a custos a longo termo, sustentados pela desvinculação do trabalhador à cultura empresarial, e, em última instância, ao próprio emprego, levando a uma maior rotatividade laboral e a custos de formação associados a esta rotatividade. Assim, importa desenvolver mais estudos que permitam não só encontrar estratégias que permitam o uso sustentável e responsável das TIC salvaguardando as relações interpessoais bem como a saúde mental (especialmente em situação de isolamento) mas também que ajudem ao desenvolvimento de estratégias de mitigação dos problemas mentais associados à omnipresença das TIC.