Nos últimos anos, o câncer tem se destacado dentre as doenças crônicas não transmissíveis, atingindo números alarmantes e sendo considerado um problema de saúde pública mundial (Santos, 2018). Estimativas da Organização Mundial da Saúde indicam que em 2030, os números do câncer alcancem aproximadamente, em todo o mundo, 27 milhões de casos, 17 milhões de óbitos e 75 milhões de pessoas com diagnóstico anual (Fitzmaurice et al., 2017). No Brasil os dados direcionaram para uma ocorrência equivalente ao aparecimento de cerca de 580 mil novos casos de câncer, revelando, desta forma, a magnitude do problema no país (Santos, 2018). Esses números indicam a importância de cuidados de prevenção e da manutenção da qualidade de vida dos pacientes com diagnostico com câncer (Fallowfield, 2002).
O conceito de qualidade de vida é amplo, subjetivo e engloba quatro domínios principais: bem-estar físico, psicológico, social e profissional (Bottomley, 2002; Fallowfield, 2002). Quando se trata de paciente oncológicos, o cuidado e a atenção com a qualidade de vida são ainda maiores, pois pode não só ser um preditor de morbimortalidade, mas pode servir de parâmetro para evolução e avaliação do tratamento (Fallowfield, 2002).
Existem várias escalas genéricas para avaliar a qualidade de vida, utilizadas no Brasil e no mundo, no entanto, é importante que o instrumento escolhido para aplicação seja o mais específico possível, para que possa gerar informações mais precisamente possível. Pensando nisso, a Organização Europeia de Pesquisa e Tratamento de Câncer (EORTC) vêm desenvolvendo uma variedade de instrumentos para avaliar a qualidade de vida em pacientes com câncer (Bottomley & Aaronson, 2007). O questionário base é o Questionário de Qualidade da Vida do EORTC - C30 (módulo geral) (QLQ-C30) - que inclui cinco escalas funcionais, três escalas de sintomas e uma saúde e qualidade globais de escala de vida (Aaronson et al., 1993). No entanto, com a utilização, foi percebido a necessidade de instrumentos que avaliassem de mais maneira mais específica a especificidade e particularidades de cada tipo de câncer, o que resultou em uma enormidade de módulos para tipos de câncer (Relvas-Silva, Silva, & Dinis-Ribeiro, 2017).
Um desses módulos, é o EORTC QLQ-SWB32, uma ferramenta desenvolvida afim de conseguir quantificar e qualificar a qualidade de vida espiritual dos pacientes portadores de câncer (Phelps et al., 2012; Vivat et al., 2017). Sabe-se atualmente da importância cada vez maior dada aos cuidados espirituais dos pacientes como uma dimensão importante de cuidados da saúde, em especial os cuidados de suporte ou paliativos de pacientes em fase terminal (Best et al., 2015; Phelps et al., 2012; Vivat, 2008). Esse cuidado é normalmente compreendido como a fé e os pedidos de resoluções das preocupações espirituais de um paciente, no entanto, percebe-se que os cuidados espirituais nem sempre são bem fornecidos, se é que existem (Levison, 2010; Ramondetta et al., 2013; Vivat et al., 2013; Vivat, 2008). O objetivo do presente trabalho, portanto, é traduzir e validar o questionário EORTC QLQ-SWB32 para o português do Brasil, afim de que se torne uma ferramenta disponível para o monitoramento do bem-estar espiritual dos pacientes com câncer no país.
Método
Participantes
Para a etapa de tradução e adaptação cultural, participaram 15 pacientes, maiores de 18 anos, com diferentes tipos de câncer que, de acordo com o procedimento de tradução do EORTC (Kulis et al., 2017) responderam ao instrumento e participaram de uma entrevista estruturada focada em cada item separadamente, com a intenção de investigar se as pessoas relatariam qualquer dificuldade em responder às perguntas.
Para a etapa de validação, participaram 234 pacientes com diferentes tipos de câncer, de ambos os sexos, com idades de 19 a 81 anos (M = 58, DP = 12,34). Que responderam ao instrumento já traduzido e adaptado ao Brasil, de acordo com o procedimento de tradução do EORTC (Kuliś et al., 2017).
Instrumento
O QLQ-SWB32 é um módulo específico para avaliação do bem-estar espiritual de pacientes com diferentes tipos de câncer, variando no estágio e tratamento da doença (cirurgia, quimioterapia, radioterapia, paliativo, etc.). A versão original tem 32 itens e relatam um período de tempo específico ("Durante a última semana"), sendo 31 itens pontuados em uma escala de 4 pontos (1= Nada, 2= Um pouco, 3= Moderado, 4= Muito), e o item 32 pontuado em uma escala de 1 (muito ruim) até 7 (excelente). Este estudo foi realizado em duas etapas, sendo a primeira etapa para tradução e adaptação cultural e a segunda etapa para a validação do instrumento.
Procedimento de tradução
A tradução foi realizada juntamente com a adaptação cultural e teste piloto autorizado pelo Departamento de Qualidade de Vida EORTC e realizado de acordo com o procedimento de tradução do EORTC (Kuliś et al., 2017).
A versão original em inglês foi traduzida por dois tradutores falantes nativos do português, e fluentes da língua inglesa. Em seguida, foi realizada uma tradução reconciliada com base nas duas traduções, ou seja, uma terceira pessoa analisa as duas traduções para alcançar a melhor versão possível, escolhendo uma das duas traduções ou combinando-as com base em suas semelhanças, forma de redação etc. O próximo passo foi traduzir a versão reconciliada de volta para o inglês, novamente feita por dois tradutores falantes nativos de inglês ou fluentes. O resultado dessas etapas (forward translation, reconciliation and backward translation with comments) foi apresentado em um relatório de tradução, e revisado pela unidade de tradução da EORTC. Na revisão do relatório todas as sugestões e correções são analisadas e discutidas. Uma vez que a discussão chega a um consenso, a tradução pode ser submetida para validação linguística, o chamado teste-piloto.
O teste piloto, de acordo com o procedimento de tradução do EORTC (Kuliś et al., 2017) inclui um grupo de 10 a 15 pacientes, convidados a preencher o questionário. Posteriormente, é realizada uma entrevista estruturada focada em cada item separadamente, com a intenção de investigar se as pessoas relatariam qualquer dificuldade em responder às perguntas, se eles consideraram algum dos itens confuso, perturbador, ofensivo, e/ou com vocabulário difícil. Todos os comentários são agrupados e resumidos em um relatório de teste piloto, que deve ser enviado para revisão à unidade de tradução da EORTC. Uma vez que todos os comentários foram analisados e discutidos, a unidade de tradução da EORTC prepara a versão final da tradução e conclui o projeto.
Procedimentos de validação
Os pacientes foram recrutados no mês de agosto de 2018, no setor de Oncologia do Hospital Universitário Santa Terezinha (HUST) (Brasil) no momento da sua chegada para consulta médica. Para comprovação do estado do paciente, foram consultados os prontuários médicos, sendo considerados como participantes do estudo somente os pacientes com diagnóstico de câncer demonstrado por biópsia e análise histopatológica.
Como critérios de exclusão foram considerados a falta de consentimento e incapacidade de entender ou de preencher o questionário. Não houve restrições quanto ao tipo de câncer, sexo, idade ou nível de instrução. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisas em Seres Humanos da Universidade do Oeste de Santa Catarina e Hospital Universitário Santa Terezinha, com número 2.286.701 de 20 de setembro de 2017.
Análise de dados
Foram analisadas as variáveis descritivas para tradução e adaptação cultural, bem como as propriedades psicométricas da escala de medida por meio de uma análise fatorial confirmatória. Foi analisada a consistência interna de cada fator mediante coeficiente de Alfa de Cronbach. As análises estatísticas foram realizadas usando o programa Stastical Package for the Social Sciences (SPSS), versão 20.
Resultados
Tradução e adaptação cultural
Participaram desta etapa do estudo 15 pacientes com idade média de 61 anos (DP = 12,3), sendo 7 mulheres e 8 homens. Em relação ao grau de instrução, 9 pacientes declararam possuir o ensino fundamental, 3 pacientes possuem o ensino médio incompleto, 2 concluíram o ensino médio e 1 possui ensino superior.
Uma vez que as entrevistas foram concluídas, todos os dados foram compilados e analisados através de estatísticas descritivas simples. Foi avaliado o grau de compreensibilidade por meio de uma escala do tipo Likert: 0 = não entendi nada; 1 = entendi só um pouco; 2 = entendi mais ou menos; 3 = entendi quase tudo, mas tenho algumas dúvidas; 4 = entendi quase tudo e 5 = entendi perfeitamente e não tenho dúvidas, sendo precedida da questão: “"Você compreendeu o que foi perguntado?". A compreensibilidade do instrumento foi ótima, com todos os 32 itens atingindo a pontuação máxima de 5, sendo as questões entendidas por completo.
Todos os pacientes completaram o questionário em aproximadamente 25 minutos em um ambiente reservado no hospital. Uma vez que o teste piloto terminou, os comentários dos pacientes foram analisados. Não foram relatadas dificuldades em responder às perguntas, nem foram considerados itens confusos, perturbadores, ofensivos, e/ou com vocabulário difícil. Sendo assim, não houve alteração na versão final aprovada pela unidade de tradução da EORTC. A versão em português do QLQ-SWB32 foi aprovada. A consistência interna da escala para coleta do teste piloto de tradução foi calculada utilizando o coeficiente alfa de Cronbach, com valor alfa de 0,76.
Validação psicométrica
Foi realizada a análise fatorial confirmatória (AFC) com os 32 itens da SWB32. A validade do modelo de medição foi considerada através de uma série de coeficientes fit, também chamados de índices de bondade de ajuste: χ2, χ2/d.f., RMSEA, RSMR e os índices incrementais (CFI, IFI e TLI). Foi utilizado o método de estimação de máxima verossimilhança junto com o procedimento de bootstrapping, e o resultado do coeficiente multivariado de Mardia foi 192,58. Os índices obtidos para este modelo com 32 itens não foram adequados: χ2 (202, N = 234) = 393,17, p < 0,000; χ2/d.f. = 1,95; CFI = 0,85; IFI = 0,85; TLI = 0,83; RSMR = 0,71; RMSEA = 0,06. O item 18 da escala original apresentou carga fatorial de -1,66, não sendo um item relevante.
Desta forma, foi realizado novo modelo em que o item 18 da escala original foi excluído. Foram adotados os mesmos procedimentos para análise fatorial confirmatória (AFC) agora com 31 itens da SWB32. O resultado do coeficiente multivariado de Mardia foi 197.004. Os índices obtidos para este modelo com 31 itens foram adequados: χ2 (177, N = 234) = 254,24, p < 0,000; χ2/d.f. = 1,44; CFI = 0,94; IFI = 0,94; TLI = 0,93; RSMR = 0,58; RMSEA = 0,04 (Quadro 1 e Figura 1).
A consistência interna do instrumento com 31 itens (excluindo-se o item 18 da escala original) foi calculada utilizando o coeficiente alfa de Cronbach e obteve-se um valor de alfa de 0,80.
Nota: M: Média; DP: Desvio Padrão; PRE: Pesos de regressão; CMQ: Correlação múltipla ao quadrado. Fonte: os autores. RO: Relacionamento com os Outros; RS: Relacionamento consigo; RSA: Relacionamento com Alguém ou Algo Maior; EX: Existência.
Discussão
Neste trabalho foi pretendido traduzir e validar o questionário EORTC QLQ-SWB32 para o português do Brasil. Uma das implicações importantes deste estudo foi o fato de não existirem no Brasil instrumentos que avaliem o bem-estar espiritual dos pacientes com câncer.
Para determinar a estrutura fatorial do instrumento, foram analisadas as propriedades psicométricas, revelando índices de ajuste aceitáveis. O instrumento mostrou também uma adequada fiabilidade, sendo o QLQ-SWB32 final composto por 31 itens, com 21 itens sendo divididos em 4 escalas (6 itens para identificar características de relacionamento com os outros; 4 itens para avaliar o relacionamento consigo; 5 itens para avaliar o relacionamento com alguém ou algo maior; e 6 itens que avaliam a percepção/sentimento de existência). A indicação é de que essas escalas sejam pontuadas separadamente, uma vez que somar as escalas pode não ser apropriado, já que o EORTC QLQ-SWB32, assim como outras medidas da EORTC, é baseado em perfis, não em preferências (Costa et al., 2014). O EORTC QLQ-SWB32 não é focado nos sintomas, e é uma medida que possui um forte caráter intervencionista, portanto, difere das medidas típicas do EORTC (e muitos outros instrumentos de avaliação / medição), na medida em que inclui mais 7 itens somente pela sua utilidade clínica, que não são pontuados, pois os escores não seriam significativos, mas são incluídos por sua relevância clínica, pois podem gerar discussões valiosas com os entrevistados (Vivat et al., 2017).
Nenhum dos pacientes participantes deste estudo experimentou qualquer dificuldade em completar o instrumento SWB32, sendo o tempo médio de conclusão das respostas em cerca de 15 minutos.
Abordar os temas relacionados ao bem-estar espiritual pode levar ao paciente a pensar em problemas potencialmente desafiadores tais como o pensamento sobre o relacionamento com algo maior, reportado neste caso como a figura de Deus (Vivat et al., 2017), desta forma deve-se ter sensibilidade ao administrar o instrumento, respeitando-se e considerando a crença religiosa e espiritual dos participantes.
As limitações deste estudo sugerem que novos trabalhos sejam realizados utilizando a mesma medida, mas considerando o tempo de diagnóstico e estado de tratamento dos pacientes, pois, apesar de não ser uma solicitação da EORTC, parece ser importante considerar fatores relacionados ao bem-estar espiritual em condições específicas do câncer, como tempo de diagnóstico, sobrevida, condições de saúde durante o tratamento. Estudos comparativos envolvendo uma maior proporção de pessoas com diferentes religiões também seria igualmente valioso.
Neste estudo foi realizada a tradução, adaptação cultural e validação do instrumento EORTC SWB32, que apresentou confiabilidade, consistência e validade suficientes, apoiando a sua utilização em estudos futuros para avaliar o bem-estar espiritual de pacientes com câncer no Brasil. Espera-se que esta ferramenta possa colaborar com as investigações sobre qualidade de vida e fatores relacionados aos pacientes oncológicos. A versão final do instrumento e as instruções de pontuação que o acompanham deve ser adquirida por meio de consulta a EORTC, disponíveis em: groups.eortc.be/qol.