A intervenção comportamental bem planeada e orientada, aliada à disponibilização de recursos e políticas sustentáveis, tem-se evidenciado o meio mais eficaz na luta contra a infeção pelo VIH/SIDA (Kalichman, 2008; O’Campo et al., 1999). Os estudos randomizados controlados (randomised controlled trial - RCT) são considerados o padrão ouro na avaliação da eficácia dessas intervenções (Barton, 2000; Nedel & Silveira, 2016; Souza, 2009).
Salvo algumas possíveis variações, os RCT baseiam-se na comparação entre duas ou mais intervenções a serem testadas, as quais são controladas pelos investigadores e aplicadas de forma aleatória em um grupo de participantes; geralmente em comparação com um grupo de controlo sem intervenção ou em lista de espera (Souza, 2009). Quem participa deve ter a mesma oportunidade de receber (ou não) a intervenção (distribuição aleatória) e os grupos devem ser os mais equiparados possível à partida, para que a única diferença entre eles seja a própria intervenção e os desfechos possam ser atribuídos à mesma (Buehler et al., 2009; Nedel & Silveira, 2016; Portela et al., 2015). A principal vantagem deste tipo de estudo está na possibilidade de eliminar diversos vieses, na medida em que os grupos de intervenção e de controle são alocados usando técnicas aleatórias, e as características são distribuídas de um modo semelhante entre os grupos (Nedel & Silveira, 2016).
Embora seja um método mais familiar na área clínica (Sullivan, 2011), também se tem evidenciado poderoso nas áreas educativas e sociais da saúde e aplicado, no ocidente, sobretudo na Europa e América do Norte, numa variedade de questões no âmbito da Psicologia da Saúde (e.g. Araújo-Soares et al., 2009; McDonald et al., 2016; O`Shea et al., 2016; Shaffer et al., 2018) e outros fenómenos em saúde que requerem mudança comportamental (Alves et al., 2008; Arnberg et al., 2013; Leme & Philippi, 2015), nomeadamente hábitos alimentares saudáveis e promoção do exercício físico (Alves et al., 2008; Araújo-Soares et al., 2009; Leme & Philippi, 2015), cessação tabágica (Otero et al., 2006), bem como no âmbito da saúde mental (Arnberg et al., 2013).
No campo da prevenção e vivência do VIH/SIDA, o desenvolvimento de RCTs tem sido desafiador (Boily et al., 2007; Padian et al., 2010) e aplicado em poucos contextos africanos (e.g. Andersson et al., 2013; Peltzer et al., 2018; Siegfried et al., 2005; Zani et al., 2011), o que fica aquém das necessidades desta região, que continua a ser a zona do mundo mais afetada pela doença, sobretudo no que se refere à população feminina (Joint United Nations Programme on HIV and AIDS [UNAIDS], 2014, 2016). Por exemplo, em Moçambique, as mulheres jovens são desproporcionalmente as mais afetadas pelo VIH/SIDA (UNAIDS, 2014). Estes dados seguem a tendência da África Subsaariana, onde as adolescentes e as jovens representam 25% das novas infeções, e as mulheres em geral representam 56% das pessoas infetadas entre os adultos (Ramjee & Daniels, 2013; UNAIDS, 2016). Assim, torna-se evidente que as estratégias de prevenção do VIH/SIDA devem contemplar programas de intervenção de mudança destas competências psicossociais, sobretudo, nos países da África Subsaariana, onde se sabe que a posição da mulher é de muita fragilidade (UNAIDS, 2016).
Seguindo a metodologia dos RCT, Hobfoll e colaboradores (1994, 2002) têm desenvolvido e adaptado diferentes programas psicossociais que têm contribuído de modo significativo para a prevenção da infeção pelo VIH/SIDA na mulher. Têm vindo a desenvolver várias investigações, sobretudo com dois tipos de programa: primeiramente, um direcionado para competências gerais sobre SIDA, o GAC (General AIDS Competency); e mais recentemente, o programa de Capacidade Acelerada para o Treino de Negociação e Exposição ao Conflito, designado de ACCENT (Accelerating Capacity for Conflict Exposure Negotiation Trainning). Estes programas têm vindo a ser avaliados em comparação com uma intervenção Didática. A intervenção ACCENT tem como finalidade promover o desenvolvimento de um plano de saúde sexual e a efetividade do mesmo ao longo do tempo, sendo focado no treino de negociação com o parceiro e aumento da perceção dos recursos sociais disponíveis (Costa et al., 2017; Hobfoll et al., 1994; Hobfoll et al., 2002; McIntyre & Costa, 2004). É um programa de múltiplas sessões. O número de sessões tem vindo a ser adaptado ao contexto onde a intervenção é desenvolvida. Vários estudos têm vindo a testar a ACCENT em comparação com outras intervenções de cariz mais educativo e os resultados indicaram mudanças significativas no sexo seguro do pré ao pós-teste, com ênfase nas melhorias relacionadas com as competências psicológicas de negociação (Hobfoll et al., 1994; Hobfoll et al., 2002). A ACCENT tem sido também eficaz com mulheres afro-americanas, euro-americanas e portuguesas (Costa et al., 2017; Hobfoll et al., 1994; Hobfoll et al., 2002).
As investigações e intervenções na África Subsaariana ainda escasseiam e as que são desenvolvidas nem sempre são divulgadas de forma sistemática (Benotsch et al., 2004). Em termos globais, este fato continua sendo uma grande lacuna na área da promoção da saúde sexual feminina e na luta contra a SIDA (UNAIDS, 2016). O presente artigo apresenta a metodologia de um trabalho de investigação, um RCT, para testar a eficácia relativa das intervenções criadas por Hobfoll e colaboradores (2002) - a intervenção ACCENT (IA) e a Intervenção Didática (ID), no contexto da prevenção da SIDA na mulher moçambicana.
Método
Desenho do estudo e procedimentos
Trata-se de um estudo randomizado controlado (Randomised Controlled Trial - RCT), em que se distribuiu aleatoriamente as participantes por três condições: grupo experimental de IA (n=60), grupo experimental de ID (n=56) e Grupo de Controle (GC) (sem intervenção) (n=57). É muito importante que os grupos (experimentais e de controle) sejam equivalentes no pré-teste, para se poderem atribuir as mudanças no pós-teste à intervenção ou intervenções e não a fatores externos como diferenças sociodemográficas ou variável dependente (Engel & Schutt, 2014). Este procedimento contribui para a validade interna do estudo. Neste estudo, a randomização foi feita por uma investigadora experiente e independente ao processo de recolha de dados (randomização cega). As participantes foram distribuídas pelos grupos de forma randómica sistemática (cada terceira participante foi escolhida para o grupo 1, depois de um ponto de início aleatório; cada segunda para o grupo 2, etc.; com um intervalo de 3 como o intervalo de distribuição pelos 3 grupos). Também é um estudo do tipo longitudinal (medidas repetidas), dado que se seguiu as participantes ao longo do tempo, em quatro momentos de avaliação (Almeida & Freire, 2007): pré-teste (antes da intervenção - M1), pós-teste (após a intervenção - M2), seguimento 1 (um mês após a intervenção - M3), e seguimento 2 (três meses após a intervenção - M4). Este trabalho decorreu no Serviço de Ginecologia e Obstetrícia do Hospital Central da Beira (HCB), em Moçambique.
A recolha de dados iniciou-se com um protocolo de parceria com o Ministério da Saúde de Moçambique, mais propriamente, o Comité Nacional de Bioética, para pedido de autorização do estudo no HCB. O estabelecimento desta parceria foi efetuado presencialmente, junto do Ministério da Saúde de Moçambique, aquando de uma breve estadia em Moçambique para realização do estudo piloto da investigação. Após a autorização dada pelo Comité Nacional de Bioética e pelo Gabinete do Ministro da Saúde de Moçambique, foi efetuada uma reunião com a Direção do HCB e com o Diretor do Serviço de Ginecologia e Obstetrícia da mesma instituição pública de saúde, onde foi apresentado o projeto de investigação. Este processo decorreu sete meses antes do início da recolha de dados.
No início da recolha de dados, efetuou-se uma reunião com todos os médicos ginecologistas do departamento de ginecologia e obstetrícia, que participaram de forma ativa no processo de recrutamento das participantes, aquando da aplicação dos critérios de inclusão. As mulheres foram recrutadas a partir das consultas externas de ginecologia, onde os médicos avaliaram a aplicação de pelo menos um dos critérios clínicos de inclusão. Os critérios foram os seguintes: (1) procurar cuidados para doenças sexualmente transmissíveis, (2) relatarem ter tido múltiplos parceiros durante os seis meses prévios, (3) relatarem ter tido sexo com uma pessoa que sabem ter outros parceiros sexuais, e (4) utilizarem drogas endovenosas. Nesta fase, a idade e o nível de escolaridade foram critérios de exclusão, não podendo participar mulheres com idade inferior a 18 anos e um nível de escolaridade inferior a quatro anos. A aplicação do critério de exclusão “escolaridade inferior a 4 anos” deve-se ao fato desta condição ser necessária à adequada compreensão das componentes da intervenção (e.g. leitura das legendas nos vídeos). No que se refere ao critério da faixa etária, na proposta de investigação incluiu-se mulheres com idade superior a 16 anos, mas após o estudo piloto, propôs-se que este limite fosse alterado para os 18 anos, ou seja, a maioridade, devido ao fato de se ter previsto dificuldades de contato com os tutores legais das menores.
Após fornecerem uma breve explicação acerca dos estudo às utentes de consulta externa, e de verificarem se um dos quatro critérios clínicos se aplicava, os ginecologistas encaminharam as mulheres para o gabinete de atendimento onde decorreu a recolha de dados, acompanhadas de uma ficha de referenciação, assinada pelo médico, com informação acerca do critério aplicado. Posteriormente, em instalações adequadas, as mulheres foram recebidas pela investigadora responsável e/ou a colaboradora da investigação, uma funcionária do próprio hospital, com treino prévio em relação a todos os procedimentos do estudo, e academicamente sensível ao âmbito de atuação (aluna de 4º ano em psicologia). Neste momento, foi explicada a todas as participantes a natureza e finalidade da investigação, assim como, devidamente esclarecida a questão da confidencialidade e do carácter voluntário da participação. Às mulheres que concordaram participar, foi dada a ler e assinar a declaração de consentimento informado. Também foram informadas de que seriam pagas as despesas de deslocação em transporte público até ao HCB. A partir deste momento, procedeu-se ao primeiro momento de avaliação, o pré-teste.
O questionário de avaliação foi aplicado por via de entrevista. Foi também neste momento que as participantes foram informadas das avaliações seguintes, e informadas de que seriam contatadas posteriormente de forma a agendar uma data para o efeito. As mulheres pertencentes à IA participaram em duas sessões de treino psicossocial, e as pertencentes à ID participaram numa única sessão educativa. As mulheres pertencentes ao GC não tiveram qualquer tipo de intervenção durante a investigação, encontrando-se em lista de espera para no final do estudo passarem pela ID. Todas as mulheres recrutadas pelos médicos em contexto de consulta ginecológica e que numa primeira abordagem aceitaram participar na investigação, confirmaram a sua vontade junto da investigadora principal e integraram efetivamente o estudo. No entanto, nem todas as participantes se mantiveram nos diferentes momentos. Assim, no pré-teste foram avaliadas 173 mulheres, no pós-teste (depois da intervenção) 164, no seguimento 1 (um mês após a intervenção) 156, e no seguimento 2 (3 meses após a intervenção) 150. Ou seja, das 173 mulheres recrutadas inicialmente, 150 concluíram a totalidade da recolha de dados, o que corresponde a uma taxa de retenção de 86,7%. Acredita-se que o fato de se ter dado algum suporte financeiro (pagamento da deslocação) possa ter contribuído para esta elevada retenção.
Caracterização da amostra
A presente investigação contou com uma amostra consecutiva, constituída por 173 mulheres na linha de base, com idades compreendidas entre os 18 e os 46 anos (M= 24,6; DP=5,5), que se encontravam em risco para a infeção pelo VIH/SIDA.
Para efeitos de caracterização da amostra, foram selecionadas variáveis sociodemográficas consideradas relevantes para a população em estudo: idade, grau de escolaridade, origem étnica, estatuto profissional, profissão, coabitação, estado civil, religião, e rendimento pessoal anual.
As variáveis clínicas relevantes para a caracterização da amostra foram: gravidez atual, história de gravidez, número de filhos, número de parceiros, história de infeções sexualmente transmissíveis (IST), nova IST nos últimos três meses, realização do teste para o VIH, e resultado do teste para o VIH.
Como se pode observar no quadro 1, a maioria das mulheres de todos os grupos são jovens, tendo uma idade média de 25 anos. No que se refere às principais características sociodemográficas, as participantes têm maioritariamente 10-12 anos de escolaridade, são solteiras e estão em situação de desemprego. Quanto à coabitação, maioritariamente, as mulheres do GA vivem com os companheiros, enquanto as mulheres dos outros grupos não estão nessa condição.
Equivalência dos grupos no pré-teste
É importante referir que a única variável onde se observaram diferenças entre os grupos no pré teste foi “viver com o companheiro” (( 2 =6,39, p=0,041), sendo que no grupo de GA há mais mulheres a viver com os companheiros do que nos outros dois grupos. Relativamente às restantes variáveis, incluindo as psicossociais, não se observaram diferenças entre os grupos, o que indica que os grupos são equivalentes nas variáveis alvo das intervenções e confere validade às diferenças observadas no pós-teste e nos restantes momentos de avaliação.
Variáveis independentes
De acordo com os objetivos traçados e as hipóteses formuladas, considera-se como variável independente o tipo de intervenção, ou seja, as IA e ID, e o grupo de controle (sem intervenção). Enquanto variável independente e de acordo com Engel & Schutt (2014), esta foi manipulada, sendo possível analisar os seus efeitos nas variáveis dependentes ou de resultado.
Variáveis dependentes ou de resultado
Foram consideradas variáveis de resultados, os seguintes recursos e fatores de vulnerabilidade: autoeficácia geral, autoestima, depressão, perceção de perda de recursos, suporte social, perturbação de stress pós-traumático (PTSD), perceção de risco do parceiro (parceiros atuais e utilização de drogas), perceção de risco pessoal, perceção de risco comunitário, e nível de conversação acerca do VIH/SIDA com os parceiros.
Foram ainda variáveis alvo e de resultado o nível de conhecimento e atitudes face ao sexo seguro (conhecimentos acerca da transmissão/contágio e conhecimentos acerca da prevenção), perceção de barreiras face ao sexo seguro, e autoeficácia na negociação do preservativo.
As variáveis comportamentais alvo da intervenção ao nível do comportamento sexual foram as seguintes: comportamento preparatório (intenção e compra/obtenção de preservativos) e comportamento sexual recente (uso do preservativo nas últimas quatro relações sexuais).
Instrumentos de avaliação
O instrumento de avaliação utilizado para o presente estudo foi o Questionário do Estudo sobre a Saúde das Mulheres Moçambicanas (Hobfoll et al., 2002) versão adaptada por McIntyre et al. (Patrão, 2012) para Moçambique. Este incluiu um conjunto de questionários e escalas que avaliaram variáveis relevantes no âmbito da saúde feminina e da prevenção do VIH/SIDA. O instrumento resulta da adaptação para o contexto moçambicano da versão portuguesa (McIntyre & Costa, 2004) do Women`s Health Study Questionnaire (Hobfoll et al., 2002). As variáveis estudadas, bem como os instrumentos de avaliação utilizados em cada um dos momentos são apresentados no quadro 2. Para uma descrição mais detalhada dos instrumentos, assim como das suas características psicométricas, consultar Patrão & McIntyre (2017; 2018).
Resultados
Descrição das intervenções: accent (IA) e didática (ID)
Ambas as intervenções utilizadas na presente investigação foram adaptadas do trabalho elaborado por McIntyre e Costa (2004) em contexto português, para o contexto moçambicano.
A ID é uma intervenção de caráter educativo, que consistiu em fornecer informação didática escrita às participantes (folheto informativo) sobre a prevenção do VIH/SIDA, com posterior esclarecimento de dúvidas. A informação dada às participantes foi no sentido de informar sobre comportamentos que podem colocar as mulheres em risco ou proteção para o VIH/SIDA, tais como (1) o uso do preservativo, (2) o risco associado aos seus parceiros (uso de drogas e existência de relações paralelas desprotegidas), e (3) práticas sexuais. Esta é uma intervenção breve e individual. Como materiais de apoio foram utilizadas duas brochuras próprias da intervenção, devidamente adaptadas para a população moçambicana.
A IA é um programa de intervenção psicossocial, desenvolvido em grupo e com múltiplas sessões. É original de Hobfoll e colaboradores (2002) e foi adaptada ao contexto moçambicano a partir da versão portuguesa (McIntyre & Costa, 2004). O foco dos encontros em grupo está na participação ativa do próprio grupo, na partilha de experiências e na aquisição de competências psicossociais relacionadas com a assertividade e negociação do sexo seguro com os parceiros, bem como no aumento dos níveis de auto-eficácia e perceção de suporte social das participantes. Em contexto moçambicano, a IA foi reduzida para o menor número possível de sessões, apresentando apenas duas, mas com maior duração cada, tendo em vista a sua aplicação ao Hospital Central da Beira. Esta alteração adveio de algumas constatações efetuadas no decorrer do estudo piloto da investigação: (1) o fato da maioria da população feminina estar em situação de desemprego e não possuir recursos económicos que favoreçam a deslocação ao hospital (por outro lado, ao aderirem, têm mais tempo disponível para permanecerem em sessões mais longas) e ainda, (2) o fato do contato à distância se encontrar dificultado ou inexistente (via telefónica ou eletrónica). Assim, um menor número de sessões poderia tornar-se mais conducente à participação, na medida em que acarretou menores gastos de deslocação (apesar das despesas de transporte terem sidos pagas), e facilitou o contato com as participantes em termos temporais, havendo um único intervalo entre as sessões. É importante referir que o encurtamento das sessões não excluiu conteúdos, mas sim condensou-os (e.g.: treino de várias técnicas num único role-play). Assim, em contexto moçambicano, a IA compreende duas sessões de aproximadamente duas horas cada. As duas sessões foram desenvolvidas com cinco dias de intervalo para permitir a assimilação dos conteúdos da primeira sessão e a aplicação destes em contextos reais. O programa tem como finalidade geral promover o desenvolvimento de um plano de saúde e a efetividade do mesmo ao longo do tempo. Em ambas as sessões as participantes assistiram a vídeos (segmentos de 3 a 7 minutos cada) e praticaram o que visualizaram através de role-play, imaginação guiada e ensaio cognitivo. Por exemplo, na sessão 2, e após estarem mais familiarizadas com as técnicas utilizadas, as participantes praticaram uma situação de possível violência por parte do parceiro. Após visualizarem uma cena de vídeo desta natureza, as participantes são convidadas a refletir e a praticar cognitivamente o seu plano de ação numa situação. A IA prevê que as participantes pensem nas consequências biopsicossociais do sexo desprotegido, enquanto as ajuda a adquirirem competências, sobretudo de negociação do sexo seguro. Em suma, pretende-se que as mulheres que participam na IA sejam capazes de aumentar os seus conhecimentos acerca do sexo seguro, de adquirir técnicas próprias de negociação com o parceiro, bem como sair de situações de violência onde poderão correr risco de agressão.
Discussão
No presente artigo apresentou-se um exemplo de um estudo RCT para avaliar a eficácia relativa de duas intervenções psicossociais dirigidas à prevenção da SIDA em mulheres moçambicanas, em comparação com um grupo de controle. O plano de estudo RCT é o “gold standard” para a avaliação de intervenções no domínio das ciências da saúde. A randomização por grupos e comparação com o grupo de controle, visa determinar com segurança que os resultados desejados se atribuem à intervenção e não a características dos participantes ou vieses como a auto-seleção (Buehler et al., 2009; Nedel & Silveira, 2016; Portela et al., 2015). Outra característica “gold standard” usada no plano deste tipo de estudos são os seguimentos (medidas repetidas) dos participantes a curto, médio e longo prazo, para testar a manutenção dos resultados da intervenção (ou intervenções) ao longo do tempo. No estudo apresentado, este seguimento foi a médio prazo (3 meses), o que constitui uma limitação do estudo. Seguimentos mais prolongados são importantes, pois os resultados iniciais podem não se manter a longo prazo, ou pelo contrário, há efeitos positivos que não se revelam a curto prazo, mas se manifestam posteriormente, como aqueles que exigem a prática ou consolidação de comportamentos a aprender (e.g. Araujo-Soares et al., 2009).
Alguns contributos metodológicos do estudo apresentado são que se trata da primeira investigação em Moçambique que testa, através de um estudo longitudinal e experimental complexo, duas intervenções de prevenção do VIH/SIDA na população feminina mais vulnerável. A comparação entre dois tipos de intervenção ajuda a entender quais os ingredientes mais importantes de cada uma (Hobfoll et al., 2002). Esta avaliação diferencial é importante porque mediante a situação e o contexto, um tipo de intervenção poderá ser mais adequado do que a outra. Neste caso, há também um aspeto económico e de parcimónia, uma vez que se pretendia verificar se uma intervenção mais simples e com caracter educativo teria resultados semelhantes a uma intervenção mais complexa e com foco na mudança cognitiva e comportamental.
Adicionalmente, o estudo integra o uso de um complexo conjunto de preditores de vária ordem (sociodemográfico, relacional, psicossocial) e apresenta uma diminuta mortalidade da amostra, apesar das características desta. Contou-se com mulheres desempregadas e com história de IST em um contexto muito desfavorecido, o que poderia ter diminuído a participação no estudo, por falta de recursos básicos (Mcshane & Von Glinow, 2014). Nestas situações, o uso de incentivos poderá aumentar a retenção. Pensamos que a oferta de refeições no decorrer das sessões, o pagamento de transporte e o encaminhamento para tratamento médico ginecológico podem ter influenciado positivamente os níveis de motivação para a participação. Existem vários tipos de outros incentivos (Albuquerque & Barboza, 2016), como senhas de refeição, bilhetes de transporte, que podem favorecer a participação, especialmente em avaliações de seguimento. Um aspeto importante a realçar foi a cuidadosa adaptação das intervenções à realidade moçambicana. O uso de peritos na cultura local e dos participantes alvo são estratégias chave para a adequação cross-cultural de intervenções importadas de outros contextos (Menezes & Murta, 2018). Alterações do conteúdo, formato e calendário das sessões, são exemplos de ajustamentos necessários neste tipo de trabalho que visa aumentar a viabilidade e efetividade da intervenção.
Algumas limitações do estudo devem ser mencionadas. Relativamente á validade interna, o uso do autorrelato como forma única de avaliação do comportamento é uma limitação, pois este pode ser influenciado por vários vieses, como de memória (recall), fatores emocionais e desejabilidade social ou o desejo de responder duma forma que crie uma impressão positiva. Adicionalmente, como já foi referido, há apenas uma moderada confiança na durabilidade da mudança relatada, devido ao seguimento ter sido apenas de 3 meses. Outros estudos sobre a eficácia das mesmas intervenções envolveram seguimentos de, pelo menos, 6 meses (Costa et al., 2017; McIntyre & Costa, 2004; Hobfoll et al., 2002). Em termos da validade externa do estudo, deverá haver cautela na generalização dos resultados, pois trata-se de uma população particular de uma zona especifica do país, o que limita a generalização dos resultados face a outras realidades moçambicanas, como por exemplo, a amostras de mulheres com mais recursos. Por outro lado, o fato deste tipo de intervenção ter sido eficaz em vários contextos cross-culturais abona em favor de alguma generalizabilidade.
No futuro, considera-se que que investigações semelhantes criem redes com serviços sociais locais de apoio à promoção da saúde sexual e aumentem a abrangência das intervenções de promoção da saúde sexual e prevenção do VIH para outras populações moçambicanas vulneráveis. Este processo deve envolver agentes de saúde locais, nomeadamente, os de medicina tradicional que têm uma importância primordial no contexto da saúde em Moçambique (Conde et al., 2014; Patrão & Vasconcelos-Raposo, 2012). Em termos de implicações para a investigação, considera-se que seria importante incluir medidas objetivas comportamentais e clínicas como marcadores biológicos para IST e indicadores de comportamentos preventivos (e.g., posse de preservativos). Adicionalmente, seria desejável diversificar a população feminina, avaliando a eficácia das intervenções para mulheres com diferentes tipos de parceiros e em contextos socioeconómicos diferentes (e.g. emprego estável). Finalmente, seguimentos mais longos são necessários para avaliar a sustentabilidade dos efeitos das intervenções nesta população.
Esperamos que o presente trabalho contribua para realçar a importância da aplicação da metodologia RCT na avaliação de intervenções na área da prevenção da SIDA em contextos desfavorecidos. Embora de aplicação mais complexa do que os estudos quasi-experimentais, os estudos RCT são o “gold standard” para se determinar a eficácia de intervenções preventivas e é premente a sua aplicação nos contextos onde estas são mais precisas. Considera-se que a presente investigação, pioneira em contexto moçambicano, poderá orientar os investigadores interessados em avaliar a prática das estratégias de prevenção do VIH/SIDA junto da população feminina moçambicana e contribuir para melhorar a intervenção preventiva multidisciplinar neste domínio.