A temática das altas habilidades/superdotação (AH/SD) tem despertado o interesse dos especialistas na psicologia das diferenças individuais, especialmente em relação a dimensões relacionadas à inteligência, criatividade, motivação e outros construtos que a compõem (Sekowski et al., 2009). No Brasil, estudantes com potencial elevado em uma ou mais áreas do conhecimento humano, sejam elas de criatividade, liderança, psicomotora, artística, intelectual, acadêmica e que apresentem grande envolvimento com tarefas de seu interesse, são considerados superdotados e incluídos como público-alvo da Educação Especial (Brasil, 2012).
A avaliação das AH/S mostra-se essencial para que os resultados provenientes desse processo possam ser utilizados a favor do indivíduo, servindo de vase para o planejamento de um atendimento diferenciado de suas necessidades específicas, assim como o desenvolvimento adequado de seu potencial (Sabatella, 2008). Neste sentido, tal fenômeno pode ser interpretado dentro do movimento da Psicologia Positiva, visto que se busca a compreensão dos fatores e processos que podem promover um desenvolvimento social, emocional, acadêmico e psicológico sadio (Irueste et al., 2018; Nakano & Oliveira, 2019), dentro de uma visão positiva e que busca a adaptação, valorização das forças e qualidades positivas do indivíduo, assim como o fortalecimento de seus recursos pessoais (Scorsolini-Comim & Santos, 2010).
Estudantes superdotados que recebem atendimento adequado geralmente apresentam altos níveis de bem-estar, habilidades sociais bem desenvolvidas, forças de caráter fortalecidas (empatia, compaixão, otimismo), facilidade em entender as emoções de outras pessoas e controlar as suas próprias (Pfeiffer, 2018). Tais construtos são englobados na Psicologia Positiva e têm se mostrado um diferencial na vida dos superdotados.
Dentro desse quadro, importante subgrupo é composto pelos alunos que apresentam dupla-excepcionalidade. Tal conceito pode ser definido como a presença de alta performance, talento, habilidade ou potencial superior à média em uma ou mais áreas, ocorrendo em conjunto com algum distúrbio, déficit ou transtorno (deficiência intelectual, psiquiátrico, sensorial, emocional, educacional ou física) (Pfeiffer, 2013). A origem do termo se baseia no fato de que, devido as duas condições, tais alunos atendem as condições para serem atendidos dentro da educação especial, dadas as necessidades educacionais específicas e inerentes às duas condições (Alves & Nakano, 2015).
Dada a diversidade de combinações possíveis de superdotação e incapacidade, diferentes tipos e graus de dupla-excepcionalidade podem ser encontrados (Prior, 2013) consequentemente, tais alunos formam um grupo extremamente heterogêneo, com grande variabilidade nos perfis individuais em relação a pontos fortes e fracos (Foley-Nicpon & Kim, 2018) e diferentes necessidades de suporte (Conejeros-Solar et al., 2018). Dentro desse quadro, usualmente, a AH/SD tem sido investigada nos casos em que há presença de transtorno de aprendizagem (dislexia, disgrafia), saúde mental (depressão, ansiedade, transtorno bipolar), físico (cegueira, dificuldades motoras, deficiências físicas), comportamental (déficit no processamento central, transtorno de déficit de atenção e hiperatividade, autismo, Asperger), dentre outros que impedem um desenvolvimento adequado (Arizaga et al., 2016).
É importante ressaltar que, independente da presença do déficit, alunos nessa condição, como qualquer outro aluno, pode atender aos critérios de superdotação, mostrando alto potencial ou desempenho em alguma área, independente de apresentar desempenho médio ou mesmo deficiente em outras áreas (Lupart & Toy, 2009). Estima-se que até 7% das crianças em idade escolar podem apresentar tal condição (Dare & Nowicki, 2015), ainda que a situação atual seja marcada pela subidentificação dos casos (Gentry & Fugate, 2008) devido à baixa conscientização acerca da dupla-excepcionalidade, dificuldades na identificação e a crença de que estudantes com déficits não podem ser superdotados. Na prática, é mais comum que esses estudantes sejam atendidos em relação à sua deficiência ou transtorno, para que se aproximem da norma, dificilmente sendo reconhecidos por suas potencialidades (Rangni & Costa, 2014). Consequentemente, acabam sendo expostos a uma dupla exclusão.
O problema é que estudantes com dupla-excepcionalidade podem não serem identificados, devido a três condições: (1) serem diagnosticados como superdotados mas não terem sua incapacidade identificada, (2) serem identificados pelo seu déficit mas não ter sua superdotação reconhecida ou (3) não ter nenhum dos domínios identificados (alto potencial e déficit) (Foley-Nicpon & Kim, 2018). Nos três cenários, estudantes que não identificados corretamente correm o risco de obterem resultados acadêmicos, sociais e emocionais negativos, apresentando desempenho bem abaixo de seu potencial (Dare & Nowicki, 2015). A dificuldade situa-se no fato de que, na maior parte das vezes, difíceis de identificar devido ao fato de que sua alta habilidade pode mascarar suas dificuldades (Park et al., 2018) sendo, mais comum, o atendimento do primeiro diagnóstico, seja ele AH/SD ou a deficiência (Josephson et al., 2018).
Outro aspecto importante refere-se à dificuldade na identificação desses estudantes situa-se no fato de que usualmente eles não apresentam comportamentos que pais e professores esperam de um superdotado: bom desempenho acadêmico, autocontrole, habilidades sociais avançadas, bons hábitos de estudo, conformidade com regras e normas sociais (Neihart, 2008). Ao contrário, podem se destacar por comportamentos tais como resistência às atividades escolares, performance pobre em leitura, escrita ou matemática, distração, comportamentos inadequados, imaturidade social.
Isso porque, nenhum dos quadros, isolados, se mostra tipicamente adequado aos sinais que usualmente descrevem os indivíduos com tais diagnósticos, dada a interação entre eles. Consequentemente, tais indivíduos não se enquadram na definição tradicional que guia cada uma das duas excepcionalidades isoladamente, apresentando um perfil irregular com características atípicas, complexas e peculiares (Taucei, 2015). Tais diferenças precisam ser levadas em consideração nas pesquisas sobre a temática a fim de que certos subgrupos possam ser melhor compreendidos em termos de suas necessidades especiais e que tais informações possam servir de guia para o desenvolvimento de seu potencial e atendimento apropriado à área em que o déficit se faz presente, concomitantemente (Lupart & Toy, 2009).
Considerando-se o exposto, o presente estudo teve, como objetivo principal, comparar o perfil de estudantes que apresentam o diagnóstico de dupla-excepcionalidade com estudantes que apresentam somente o diagnóstico isolado de alta habilidade/superdotação, visando identificar diferenças e semelhanças entre eles. Mais especificamente, visou comparar o desempenho dos grupos em medidas de inteligência, criatividade verbal, criatividade figural e percepção de características associadas às AH/S por meio de autorrelato.
Método
Participantes
Participaram deste estudo 85 crianças, as quais foram divididas em duas amostras, sendo a primeira composta por crianças com diagnóstico de dupla-excepcionalidade e, a segunda, por crianças identificadas somente com AH/SD. A fim de favorecer a compreensão da composição de cada amostra, inicialmente será apresentado o grupo de crianças com dupla-excepcionalidade que composto por cinco participantes, com idades entre 9 e 11 anos (M= 10,40; DP= 0,89), sendo três do sexo masculino (60%), estudantes do 4º e 5º do ensino fundamental I (40%) e do 6º e 7º ano do ensino fundamental II (60%), provenientes de escolas públicas e privadas do interior do Estado de São Paulo.
É importante mencionar que essas crianças, na ocasião da coleta de dados, já eram previamente diagnosticadas com altas habilidades/superdotação (AH/SD) em conjunto com outro transtorno do neurodesenvolvimento, caracterizando a dupla-excepcionalidade. Essa avaliação prévia foi realizada por psiquiatras e psicólogos, enfatizando que o diagnóstico final foi estabelecido por equipe multidisciplinar. Para melhor esclarecimento da amostra, a Quadro 1 traz o detalhamento das características destes participantes.
A segunda amostra, de estudantes com diagnóstico isolado de AH/S foi composta por 80 crianças. Destas, 67 crianças eram provenientes de salas de recurso para atendimento de altas habilidades/superdotação localizadas no Distrito Federal, sendo 71,64% do sexo masculino, com a faixa etária de 09 a 12 anos (M= 10,76; DP= 1,10), estudantes do ensino fundamental I (41,79%) e do ensino fundamental II (58,21%).
Outros 13 participantes eram atendidos pelo Núcleo de Atendimento às Altas Habilidades/Superdotação (NAAH/S de Santa Catarina), sendo 76,92% do sexo masculino, estudantes do ensino fundamental I (53,85%) e do ensino fundamental II (46,15%), também compreendendo a faixa etária de 09 a 12 anos (M= 10,31; DP= 1,49). O detalhamento dessa amostra pode ser encontrado na Quadro 2.
Material
Bateria para Avaliação das Altas Habilidades/Superdotação - BAAH/S (Nakano & Primi, 2012)
Composta por quatro subtestes de inteligência (verbal, abstrato, numérico e lógico) e dois subtestes de criatividade (figural e verbal). Os subtestes de raciocínio possuem 12 questões, devendo, o avaliando, escolher uma dentre cinco alternativas de resposta. A exceção ocorre em relação ao subteste numérico, no qual deve-se descobrir e anotar os dois números que completariam cada série apresentada.
O subteste de criatividade figural solicita que os examinandos façam desenhos a partir de 10 estímulos incompletos. A avaliação é feita considerando-se a ocorrência de onze características/indicadores criativos: fluência, flexibilidade, elaboração, originalidade, expressão de emoção, fantasia, movimento, perspectiva incomum, perspectiva interna, uso de contexto e títulos expressivos. As pontuações em tais características são posteriormente agrupadas em três fatores: (1) Elaboração, (2) Emocional e (3) Cognitivo.
Já o subteste de criatividade verbal é composto por cinco frases que deverão ser completadas com uma palavra, de maneira a formar uma metáfora. Para cada frase, poderão ser fornecidas até quatro respostas, devendo ser explicitada a relação estabelecida. A qualidade da metáfora criada é avaliada por juízes que atribuem a pontuação, dentro de uma escala que varia entre 0 a 3 pontos.
As qualidades psicométricas da BAAH/S já foram alvo de diversos estudos, envolvendo sua estrutura fatorial (Ribeiro et al., 2014), análise dos itens via Teoria de Resposta ao Item (Nakano et al., 2015), evidências de validade por meio de critério externo (Nakano et al., 2016) e convergência (Nakano et al., 2017; Nakano et al.,2020).
Escala de Identificação de Características associadas às Altas Habilidades/Superdotação - EICAH/SD (Zaia & Nakano, 2020)
A escala se caracteriza pelo formato de autorrelato, sendo composta por 38 itens, os quais são, posteriormente, agrupados em dois fatores: Características Socioemocionais e Características Cognitivas. Devem ser respondidos dentro de uma escala tipo Likert de 4 pontos (Não tem nada a ver comigo”, “Não tem muito a ver comigo”, “Tem pouco a ver comigo” e “Tem muito a ver comigo”). Os estudantes devem ler cada uma das frases e escolher uma das alternativas, indicando o quanto concordam com o conteúdo presente na afirmação.
O conjunto de itens da escala representa comportamentos relacionados a 22 características comumente apresentadas por indivíduos identificados com AH/S, selecionadas após revisão de literatura científica nacional e internacional (Bassinello, 2014). As características englobadas na escala são: pensamento moral, capacidade de questionar, bom autoconceito/autoconfiança, perfeccionismo, interesses amplos, liderança, persistência, senso de humor, observação aguçada, curiosidade, capacidade de oferecer ajuda, criatividade/imaginação, capacidade de envolver-se com a tarefa/motivação, fluência verbal, capacidade para leitura, intensidade emocional/sensibilidade com o outro, pensamento abstrato/complexo/lógico/perspicaz, capacidade para aprendizagem precoce e rápida, raciocínio superior/resolução de problemas, sucesso em atividades extracurriculares, capacidade de extrapolar conhecimentos para situações novas/ ir além do que é ensinado e boa memória.
Estudos voltados à investigação das qualidades psicométricas da escala indicaram evidências positivas de validade com base na estrutura interna e precisão por meio da consistência interna (Zaia et al., 2018), evidências de validade de conteúdo (Bassinello, 2014), evidências de validade com base na relação com variáveis externas do tipo critério (Zaia & Nakano, 2020), evidências de validade com base na relação com variáveis externas tipo convergente e precisão por meio de teste e reteste (Bassinello, 2019).
Procedimentos
Após a aprovação da pesquisa pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Pontifícia Universidade Católica de Campinas, sob número 67963717.4.0000.5481, foi iniciada a coleta de dados. Para isso, foram entregues os termos de consentimento livre e esclarecido aos responsáveis, assim como os termos de assentimento às crianças. Os responsáveis que optaram pela participação das crianças, devolveram o termo de consentimento assinado. Dessa forma, em data e horário determinado, o instrumento foi aplicado, de acordo com as especificidades de cada grupo da amostra, que foi composta por conveniência. Visando favorecer a compreensão das ações realizadas em cada grupo de participantes, os procedimentos específicos de coleta de dados, para cada grupo, serão apresentados a seguir:
Grupo de crianças com diagnóstico de dupla-excepcionalidade: todos os participantes já haviam sido diagnosticados previamente tanto com AH/SD quanto com TDAH ou TEA, respectivamente. Dessa forma, a coleta de dados ocorreu individualmente, em horário e local combinado com cada família, com duração aproximada de duas horas. É interessante destacar que todos os participantes dessa amostra demonstraram facilidade para compreender as instruções de todas as atividades aplicadas, solicitando que não fossem feitas por completo e conseguindo finalizar os subtestes de raciocínio verbal e raciocínio abstrato, da BAAH/S, antes do tempo total.
Grupo de crianças com diagnóstico isolado de altas habilidades/superdotação: considerando que estas crianças já frequentavam os núcleos e centros de atendimento especializados e, que, por consequência, já apresentavam as características e diagnóstico de AH/SD, a aplicação dos instrumentos ocorreu coletivamente, com duração aproximada de duas horas, em local previamente estabelecido pelas unidades de atendimento.
Resultados
Com o objetivo de comparar o perfil de crianças que apresentam o diagnóstico de dupla-excepcionalidade com aquelas que apresentam o diagnóstico isolado de AH/SD, bem como, de identificar diferenças e semelhanças, inicialmente, apresenta-se, na Quadro 1, os dados diagnósticos e a pontuação das crianças com dupla-excepcionalidade. Deve-se inferir que, visando garantir o sigilo e anonimato dos participantes, seus dados de identificação foram suprimidos.
Nota: EICAH/SD: Escala de Identificação de Características associadas às Altas Habilidades/Superdotação; CS: Características socioemocionais; CC: Características cognitivas; BAAH/S: Bateria de Avaliação das Altas Habilidades/Superdotação; I: Inteligência; CF: Criatividade Figural; QM: Qualidade das Metáforas (Criatividade Verbal)
A partir da Quadro 3 pode-se verificar que, analisando os resultados do teste não paramétrico Mann-Whitney para amostras independentes, não houve diferença significativa entre os grupos com diagnóstico de TEA e TDAH em nenhuma das medidas da escala e da bateria. Neste sentido, mostra-se um grupo homogêneo.
Visando aprofundar os resultados específicos dos participantes desta amostra, características qualitativas de cada um serão descritas a seguir, segundo relatos das mães e considerando o que foi observado durante o período de coleta de dados. O participante 1 apresentou desenvolvimento social dentro do esperado, com facilidade para fazer amizades. Apresenta interesse em jogos eletrônicos e faz diferentes cursos tais como Photoshop®, Corel Draw®, percussão e inglês. Por sua vez, a participante 2 tem histórico de reprovação escolar, no entanto seus professores a descrevem como uma aluna esforçada. Sua mãe diz que ela tem bons relacionamentos sociais, se envolvendo em brincadeiras como andar de bicicleta, patins e skate com suas amigas, além de participar de cursos de inglês e aulas particulares de matemática.
No que diz respeito ao terceiro participante, a mãe relatou que aos 4 anos começou a apresentar interesses avançados por contas matemáticas e leitura, sendo a matemática seu interesse principal, além da grande facilidade com o inglês. Seus interesses se associam a desenhos como Naruto® e jogos como Clash Royale ®. A participante 4 frequenta cursos extras de coral, violão, teatro e inglês, além de apresentar interesse por pintura e piano. Segundo sua mãe, possui grande preocupação com o outro e gosta de jogos que simulem a vida. Por último, o quinto participante, tem recebido acompanhamento de professora de apoio na escola e os aspectos de interação social têm melhorado. Ele gosta de brincar com seus animais de estimação e não tem alguma atividade de preferência na escola.
Em seguida, a comparação entre o desempenho obtido pelos participantes com dupla-excepcionalidade e aquelas que apresentam somente AH/S foi realizada. Inicialmente, a estatística descritiva para cada grupo e em cada medida foi estimada. Os resultados são apresentados na Quadro 4. Faz-se importante inferir ainda que os dados e suas respectivas interpretações merecem ser compreendidos com cautela e com fins exploratórios, haja vista a disparidade de diagnósticos entre a população com dupla-excepcionalidade (TEA e TDAH, ainda que as diferenças não tenham se mostrado significativas na análise anteriormente relatada) e tamanho amostral.
Nota: CS: Características socioemocionais; CC: Características cognitivas; I: Inteligência; CF: criatividade figural; QM: qualidade das metáforas (criatividade verbal).
Conforme é possível notar, a média de pontuação mostra-se superior para a amostra de crianças com dupla-excepcionalidade para as características cognitivas da EICAH/SD, para o fator inteligência e qualidade de metáforas (criatividade verbal) da BAAH/S. Por sua vez, o grupo de crianças identificadas com superdotação/altas habilidades apresentou média superior para o fator características socioemocionais (EICAH/SD) e para criatividade figural (BAAH/S).
Cientes de que os dados possam sofrer influência em função das diferenças do número de participantes que compõe cada amostra, realizou-se a análise de diferença de médias a título de exploração dos dados, entendendo-se que essa análise contribuiria para a compreensão da possível diferença significativa dos dados. Sendo assim, empregou-se o Teste t de Student, cujos resultados estão apresentados na Quadro 4. Conforme é possível notar, as diferenças entre as amostras não foram consideradas significativas para nenhum fator dos instrumentos utilizados.
Discussão
A literatura mostra que os interesses no campo das altas habilidades/superdotação têm crescido ao longo dos anos, objetivando compreender melhor as definições atuais, as diferentes maneiras de identificar esses indivíduos, ampliando-se o olhar para suas características heterogêneas (Neihart & Yeo, 2018; Renzulli, 2014; Renzulli & Reis, 2018; Stoeger et al., 2018). Dentro desse fenômeno, o reconhecimento da existência de indivíduos com AH/SD que também apresentam algum transtorno do neurodesenvolvimento ou da aprendizagem, chamados de indivíduos com dupla-excepcionalidade vêm sendo ressaltada (Alves & Nakano, 2015; Pfeiffer, 2015). Com isso, tem-se percebido também a necessidade de pesquisas qualitativas, que pressuponham comparações entre grupos (altas habilidades/superdotação sem outro diagnóstico, estudantes com habilidades dentro da média, dentre outros) (Foley-Nicpon & Candler, 2018).
Sendo assim, o objetivo do presente artigo foi analisar o perfil de duas diferentes amostras. A amostra composta por crianças em que as Altas Habilidades/Superdotação coexistem com o Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) e com o Transtorno do Espectro Autista (TEA) e a segunda constituída por crianças com Altas Habilidades/Superdotação isoladas. Destaca-se que a descrição dos dados foi realizada considerando as pontuações brutas e as médias da primeira amostra em comparação com a média da segunda amostra nos instrumentos utilizados, em uma tentativa de abordar qualitativamente o perfil de características e de desempenho cognitivo e criativo dos indivíduos que se encontram dentro do grupo de dupla-excepcionalidade. Nessa perspectiva, torna-se possível considerar a variabilidade de características e perfis que podem ser encontrados nessa população, trabalhando com as diferenças individuais (Foley-Nicpon & Candler, 2018). Estudos dessa natureza têm como fonte de informação relatórios clínicos e se configuram a partir de pequenas amostras, pelo fato de não ser um fenômeno comum na população geral, assim como da dificuldade de conduzir estudos epidemiológicos com grandes amostras com essas características (Foley-Nicpon & Candler, 2018; Pfeiffer, 2015) corroborando a maneira como este artigo foi elaborado.
Outro ponto a ser destacado como esclarecedor do tamanho amostral aqui discutido, refere-se à prevalência de indivíduos com dupla-excepcionalidade, a qual não tem sido notificada com exatidão pela literatura, por diferentes motivos, tais como, o foco maior dos profissionais nas fraquezas apresentadas pelas crianças ou ainda a falta de conhecimento da possibilidade de coexistência dos quadros (Gentry & Fugate, 2018, 2018; Lee & Olenchak, 2018; Rangni & Costa, 2014). Nessa perspectiva, autores têm apresentado estimativas em torno de 7% de crianças com dupla-excepcionalidade em idade escolar ou a existência de mais de 385.000 crianças com essa condição nas escolas americanas (Dare & Nowicki, 2015; Gentry & Fugate, 2018).
Sendo assim, objetivou-se traçar um perfil qualitativo de comparação das duas amostras, amparando-se em uma visão moderna do funcionamento psicológico desses indivíduos, a qual associa-se às lentes ampliadas que compreendem tanto suas potencialidades quanto seus recursos para lidar com os contextos em que estão inseridos (Suldo et al.,2018), ultrapassando a visão patológica que, muitas vezes, ainda predomina em alguns cenários (Oliveira et al., 2016). Esse apontamento teórico pode ser observado de duas maneiras diferentes em relação aos dados apresentados.
A primeira, realizada com a finalidade de exploração dos dados, apontou que não foram encontradas diferenças significativas entre as pontuações das crianças com diagnóstico de TDAH e TEA, nem entre as médias das crianças com dupla-excepcionalidade e das crianças com AH/SD. Por sua vez, a segunda análise, mais qualitativa, sugeriu a oportunidade de verificar que, em alguns casos, os participantes da primeira amostra obtiveram pontuações superiores à média dos participantes da segunda amostra para os fatores dos instrumentos aplicados (características socioemocionais, cognitivas, inteligência, criatividade figural e verbal).
À vista dessas comparações e da junção com a psicologia positiva, esses dados evidenciam que concepções patologizantes de indivíduos com dupla-excepcionalidade, não têm conseguido explicar a dimensão heterogênea que caracteriza as condições dessas crianças. Isso pode ser explicado devido ao fato de que as dificuldades podem mascarar as potencialidades ou ainda, se posicionarem trazendo à luz que a causa das desordens emocionais, dificuldades sociais e de aprendizagem podem ser desencadeadas pelo quadro de altas habilidades/superdotação (Foley-Nicpon & Candler, 2018; Pfeiffer, 2015). Sendo assim, os resultados aqui discutidos direcionam-se para outras correntes teóricas em que as capacidades superiores apresentadas por esses indivíduos agiriam como vantagem para que consigam compreender melhor o mundo ao seu redor, assim como, ser mais resilientes (Pfeiffer, 2015), ou ainda apresentariam mais persistência e foco atencional por causa dos talentos e habilidades (Lee & Olenchak, 2018). Outras características resilientes que podem estar associadas são animação, autoconceito positivo, comportamentos amigáveis, altruístas, socialmente aceitos, empatia, habilidades intelectuais (Bernard, 1993; Castillo et al., 2016; Milgram & Palti, 1993; Prince-Embury, 2013; Zolkoski & Bullock, 2012).
Desse modo, acerca dos resultados comparativos, observou-se que as diferenças obtidas entre as médias das amostras não se mostraram estatisticamente significativas, apontando para o entendimento que, indivíduos com dupla-excepcionalidade podem ter um perfil cognitivo e criativo, seja em medidas de autoconhecimento ou em medidas de desempenho, similar aos indivíduos com AH/SD isoladas. Esses achados podem ser explicados pela grande similaridade de características encontradas nos indivíduos pertencentes às duas amostras, tanto no âmbito cognitivo quanto naquele relacionado às forças de caráter da psicologia positiva.
Como exemplo do aspecto cognitivo podem ser citadas a memória, conhecimentos gerais, habilidades de resolução de problemas, competências para o uso da linguagem oral ou escrita, compreensão excepcional (Gentry & Fugate, 2018), enquanto que, no aspecto socioemocional, estariam o senso de humor, a persistência em tarefas acadêmicas ou intelectuais, a consciência ou capacidade de valorizar suas potencialidades, a perseverança, a curiosidade, generosidade e o engajamento escolar (Lupart & Toy, 2009; Suldo et.al., 2018). Essa gama de características também é comumente mensurada em processos de identificação de AH/SD (Zaia et.al., 2018; Zaia et.al., 2020).
Nesse sentido, a literatura tem demonstrado que tanto crianças com TDAH quanto com AH/SD podem apresentar o tédio com tarefas repetitivas e a dificuldade em concentrar-se em atividades que não são de seu interesse, associando-se aos altos níveis de energia física e mental e com a intensidade emocional, sendo caracterizadas como crianças enérgicas e ativas, conseguindo apresentar comportamentos geralmente focados e dirigidos nas áreas de seu interesse (Lee & Olenchak, 2018; Ourofino & Fleith, 2005).
Por sua vez, no que diz respeito aos indivíduos com dupla-excepcionalidade referente ao TEA e às AH/SD, tem-se observado uma inclinação representativa no que tange a patologização, inferindo as características negativas ao invés de características positivas. Lupart e Toy (2009) elucidam esse ponto abordando pesquisas que discutem as dificuldades de comunicação social, a capacidade literal de compreensão do discurso, o pensamento concreto e a aquisição de conhecimento devido à memorização e não à curiosidade e busca de informações de forma mais espontânea nas crianças com dupla-excepcionalidade, além de características socioemocionais como egocentrismo e dificuldade de se colocar no lugar dos outros. Segundo Mecca (2019), o processo de avaliação cognitiva dessas crianças, muitas vezes, está também relacionado à prevalência e associação de deficiência intelectual, extinguindo ou minimizando o olhar para as potencialidades e possíveis altas habilidades de áreas especificas, bem como eximindo e/ou dificultando a identificação e direcionamento de intervenções positivas para o desenvolvimento destas crianças.
À vista dessa concepção mais associada à linha patológica, faz-se necessário, novamente, a aproximação com a psicologia positiva, a qual possibilita o olhar ampliado para a valorização das potencialidades dos indivíduos e, como argumentam Fleith e Tentes (2019), tentam amenizar os possíveis equívocos que podem ocorrer, sendo eles, crianças identificadas apenas com um dos quadros (TEA isolado ou AH/SD isoladas), quando na verdade, deveriam ter as duas condições evidenciadas, ou ainda, aquelas identificadas inadequadamente dentro da dupla-excepcionalidade, por causa da ambiguidade e sobreposição de características de ambos os quadros.
Sendo assim, os resultados aqui abarcados corroboram com tal afirmação, devido o fato dos participantes com TEA terem apresentado pontuações elevadas no fator de características socioemocionais da EICAH/SD, as quais se aproximaram ou superaram (participante 4) a média geral dos participantes da segunda amostra (AH/SD), embora não fossem encontradas diferenças significativas entre as médias das duas amostras. Sabe-se que esses dados são provenientes de uma medida de autorrelato em que os participantes se autoavaliam acerca de suas características o que sugere cautela na interpretação, no entanto, existe também o indício de que a dupla-excepcionalidade contribua para novas possibilidades de configuração das características sobrepostas entre os quadros de diagnóstico clínico de transtorno ou de potencialidades, como demonstrado por correntes com foco na saúde mental e nas forças dos indivíduos (Oliveira et.al., 2016; Pfeiffer, 2015; Suldo et.al., 2018).
Considerando os objetivos de compreender, de modo exploratório, o perfil cognitivo, criativo e socioemocional de crianças com dupla-excepcionalidade, bem como de traçar um comparativo em relação ao perfil de crianças com altas habilidades/superdotação, espera-se que este artigo possa contribuir para a área da avaliação psicológica, principalmente, no que tange a avaliação de populações específicas e à luz da psicologia positiva. Estudos com este direcionamento permitem compreender demandas de identificação e descrição de habilidades e do próprio funcionamento da população.
Deve-se considerar, no entanto, o caráter exploratório e qualitativo do estudo, haja visto o tamanho amostral, que, embora representativo dentro da especificidade dos diagnósticos, ainda carece de aprofundamento e ampliação. Isso porque, neste artigo, há, dentro da categoria da dupla-excepcionalidade, dois tipos diferentes de diagnósticos que compreendem a interpretação por meio de distintas especificidades dos transtornos (TDAH e TEA).
Por fim, espera-se que as informações e inferências aqui apresentadas e interpretadas com cautela, possam incentivar e sugerir estudos futuros na área visando minimizar a escassez de materiais científicos. Ainda, nesse sentido, sugere-se a ampliação de estudos com amostras específicas, visando contribuir para uma avaliação psicológica acessível e inclusiva.