A Doença Renal Crônica (DRC) se refere à uma doença crônica, progressiva e irreversível, com alta prevalência e incidência. De acordo com Kidney Disease Improving Global Outcomes (KDIGO) em 2017, a DRC consiste em anormalidades da estrutura e/ou função renal por três meses ou mais, com implicação para a saúde. De acordo com Roso et al. (2013), o cuidado de si do paciente com DRC, em geral, concentra-se na adesão à dieta, medicação e tratamento. Assim, as decisões influenciam o modo como cada paciente vivencia e compreende as cobranças relacionadas à doença. O tratamento depende da evolução da doença, porém a hemodiálise (HD) é a terapia renal substitutiva utilizada com maior frequência (Sesso et al., 2017). Apesar da possibilidade de tratamento com a HD, são inúmeras as limitações impostas aos pacientes e familiares, por exemplo, as complicações na saúde física, os conflitos da imagem corporal, a mudança de comportamento, a dependência de outras pessoas, as restrições sociais, entre outras limitações, as quais são responsáveis por ocasionar drásticas mudanças no modo de viver (Marques, 2012). De acordo com Nunes et al. (2014), a doença associada ao tratamento hemodialítico acarreta alterações físicas e psicológicas conflituosas, que comprometem o cotidiano do paciente, bem como de seus familiares, impondo-lhes adaptações e mudanças na vida diária.
Ainda, variáveis psicológicas, como a qualidade de vida relacionada à saúde (QVRS) (Lopes et al., 2014), a depressão (Chen et al., 2016) e a esperança (Ottaviani et al. 2014) são frequentemente investigadas em pacientes com DRC em tratamento de HD, uma vez que são capazes de influenciar no ajustamento do diagnóstico da doença crônica até o tratamento. Neste cenário, o enfrentamento pode exigir a utilização de estratégias individuais e coletivas, as quais podem ser vistas como um desafio para o paciente e familiares (Bertolin et al., 2011). Entende-se, portanto, a importância de ser resiliente.
Etimologicamente, conforme Brandão et al. (2011), a palavra resiliência provém do latim resilio ou resilire, o qual significa saltar para trás, voltar, recuar, encolher-se ou romper-se. No Brasil, a palavra resiliência começou a ser utilizada, na área da psicologia, a partir do fim da década de 1990. Por outro lado, de acordo com os mesmos autores, os termos resilience, resiliency em inglês, eram utilizados há algumas décadas e já remetiam à uma ideia menos técnica, menos associada à física, e mais relacionados a fenômenos humanos, como a de elasticidade e à capacidade rápida de recuperação.
Com base nas análises de Fontes et al. (2015), define-se a resiliência como fator de proteção, em outras palavras, indivíduos com alta resiliência obteriam maior autoestima, autoeficácia, mais habilidades para solucionar problemas e maior satisfação com as relações interpessoais. Nessa perspectiva, a avaliação do nível de resiliência é relevante devido à possibilidade de direcionar a busca por recursos individuais e coletivos que podem ser utilizados para auxiliar nos eventos adversos decorrentes das doenças crônicas (Santos & Costa, 2016). Os mesmos autores verificaram que 61% de pacientes em HD apresentaram tendência à resiliência, bem como os pacientes praticantes de uma religião. Para Böell et al. (2016), o tipo de doença crônica pode influenciar na resiliência do paciente, com maior ou menor intensidade e, ainda, a duração do tratamento é um fator determinante. Com base nas análises dessa investigação, os pacientes com DRC apresentaram menor resiliência comparativamente aos pacientes com o diagnóstico da diabetes mellitus, corroborando a influência da variável duração do tratamento. Os mesmos autores evidenciaram que a ausência da resiliência em paciente com doença crônica, pode aumentar os níveis de estresse, sintomas depressivos e ansiedade, contribuindo para um tratamento falho e menor aceitação do diagnóstico da doença crônica (Böell et al., 2016).
Sendo assim, dado a importância da resiliência em quadros crônicos e a alta prevalência e incidência da DRC e as suas implicações e, visto que, são escassas as investigações que abordam as variáveis psicossociais, segundo o nível de resiliência e especificamente de pacientes em HD, conhecer o papel da resiliência na percepção da QVRS, depressão e esperança em pacientes hemodialíticos pode contribuir para a equipe multidisciplinar desde o diagnóstico e tratamento até as orientações para o paciente, familiares ou cuidadores. Dessa forma, o objetivo do presente estudo foi analisar a comparação de médias entre a percepção de QVRS, os sintomas depressivos e a esperança, segundo o nível de resiliência de pacientes hemodialisados.
Método
Pesquisa quantitativa, transversal, exploratória e correlacional.
Participantes
Os dados foram coletados em 84 pacientes de duas unidades de Terapia Renal Substitutiva (TRS), que atendem pacientes do Sistema Único de Saúde (SUS), de convênios e particulares. Os critérios de inclusão foram (1) ter idade igual ou superior a 18 anos, (2) ter o diagnóstico médico de DRC e, (3) realizar HD há pelo menos três meses.
Material
Para coleta de dados utilizaram-se cinco instrumentos, a saber: o Questionário de Caracterização da Amostra, o Questionário Genérico de Avaliação de Qualidade de Vida Medical Outcomes Study 36-item Short-Form Survey (SF-36), a Escala de Resiliência (ER), o Patient Health Questionnaire - 9 (PHQ-9) e a Escala de Esperança de Herth (EEH).
O Questionário de Caracterização da Amostra contemplou dados sociodemográficos (gênero e idade) e clínicos (tempo médio de HD). O SF-36 é um questionário genérico e multidimensional que busca avaliar a QVRS. Foi validado no Brasil em 1999 (Ciconelli et al., 1999). O questionário é organizado em 36 itens, divididos em 8 dimensões (capacidade funcional, aspectos físicos, dor, estado geral de saúde, vitalidade, aspectos sociais, aspectos emocionais e saúde mental). Para pontuar, o escore obtido para cada dimensão é codificado, somado e transformado em uma escala de zero a 100, sendo que quanto maior a pontuação, melhor a percepção de QVRS. A ER consiste em 25 afirmações com a finalidade de identificar o nível de resiliência individual. No Brasil, validou-se a escala em 2005 (Pesce et al. 2005). Os escores variam entre 25 e 175 pontos e, quanto maior a pontuação, melhor o nível de resiliência (Pesce et al. 2005). Validou-se o PHQ-9 no Brasil em 2013 (Santos et al. 2013) cujo objetivo é rastrear episódios depressivos maiores. O questionário compõe 9 itens e a pontuação varia entre 0 e 27 pontos, sendo que, um escore de 9 pontos e acima indica o início de sintomas depressivos (Santos et al. 2013). Por fim, a EEH refere-se à uma escala composta por 12 afirmativas com o objetivo de mensurar o nível de esperança, foi validada no Brasil, em 2007 (Sartore, 2007). O escore é entre 12 e 48 pontos, sendo que, quanto maior o escore, maior o nível de esperança (Sartore, 2007). Os questionários ER, PHQ-9 e a EEH possuem nota de corte, a saber: > 66, ≤ 9 e > 24, ou seja, escores acima de 66, até 9 e acima de 24 pontos, indicam escores de resiliência satisfatórios, baixo nível de sintomas depressivos e esperança satisfatória, respectivamente. Os questionários SF-36, ER, PHQ-9 e EEH obtiveram bons índices de reprodutibilidade e validade no contexto brasileiro e, por isto, foram selecionados para a presente pesquisa.
Procedimento
Todas as entrevistas foram realizadas por somente um entrevistador, individualmente e em uma sala privativa da unidade de TRS. As entrevistas eram agendadas com os pacientes que aceitaram a participar da pesquisa por meio da assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), conforme as normas estabelecidas pela resolução nº 466 do Conselho Nacional de Saúde e que apresentaram os critérios de inclusão.
O tratamento estatístico foi realizado por meio do StatisticalPackage for the Social Sciences (SPSS). Verificou-se, por meio do teste de Kolmogorov-Smirnov, a ausência de normalidade dos dados e, portanto, utilizou-se o Teste de Kruskal-Wallis a fim de verificar a comparação dos escores médios entre a percepção da QVRS, nível de sintomas depressivos e esperança, segundo o nível de resiliência (alto, moderado e baixo) de pacientes com DRC em HD. O nível de significância adotado para os testes estatísticos foi de 5% (p ≤ 0,05). O presente estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética da Universidade Estadual Paulista (UNESP) com o parecer nº 1.537.827.
Resultados
Observou-se maior prevalência de homens (69%), com uma média de idade de 52,60±14,30 anos e com o tempo médio de HD de 39,20±50,30 meses.
Para facilitar a compreensão dos escores da resiliência, classificou-se o nível de resiliência em alto, moderado e baixo. Assim, no quadro 1, verifica-se que os pacientes hemodialíticos com alta resiliência apresentaram melhor percepção de QVRS, com estatística significativa nas dimensões “dor” (p = 0,039), “estado geral de saúde” (p < 0,001), “vitalidade” (p = 0,005), “aspectos sociais” (p = 0,017) e “saúde mental” (p = 0,002) do SF-36.
*Teste de Kruskal-Wallis; a Diferença estatística entre pacientes com baixa e alta resiliência; b Diferença estatística entre pacientes com moderada e alta resiliência.
No quadro 2 verifica-se que os pacientes com alta resiliência demonstraram menor nível de sintomas depressivos, com diferença estatística entre pacientes com baixa e alta resiliência (p < 0,001). Com relação à esperança, evidenciou-se que os pacientes com alta resiliência apresentaram alto nível de esperança com diferença estatística entre os pacientes com baixa e alta resiliência e entre os pacientes com moderada e alta resiliência (p < 0,001).
* Teste de Kruskal-Wallis; a Diferença estatística entre pacientes com baixa e alta resiliência. b Diferença estatística entre pacientes com moderada e alta resiliência.
Esses resultados tendem a indicar a alta resiliência como possível estratégia na manutenção das variáveis psicológicas mencionadas anteriormente (QVRS, nível de esperança e sintomas depressivos) em pacientes hemodialíticos.
Discussão
Na presente investigação, cuja finalidade foi analisar a comparação de médias entre a percepção de QVRS, os sintomas depressivos e a esperança, segundo o nível de resiliência, evidenciou-se que a resiliência influenciou a percepção das variáveis psicológicas supracitadas de pacientes em tratamento hemodialítico. Esses dados corroboram revisões sistemáticas de literatura e meta-análises, nas quais, observaram-se que a resiliência pode influenciar no quadro crônico do paciente (Cal et al., 2015; Gheshlagh et al., 2016; Kim et al., 2018).
No que se refere à QVRS, diversos pesquisadores evidenciaram uma associação entre a resiliência e a QVRS (Albalat et al., 2018; Clarke et al., 2017; Robottom et al., 2012; Strauss et al., 2007; Zhang et al., 2017). Na investigação de Albalat et al. (2018), verificou-se que o principal preditor de QVRS de 125 pacientes que realizaram aenterostomia, foi a resiliência. Clarke et al. (2017), em seu estudo desenvolvido com 98 pacientes com câncer, evidenciaram que a resiliência pode contribuir para otimizar a QVRS. Resultados semelhantes foram observados nas pesquisas de Strauss et al. (2007) e Zhang et al. (2017), em que a resiliência foi favorável à QVRS de 239 pacientes em radioterapia e 98 pacientes com câncer de mama, respectivamente. Ainda, Robottom et al. (2012) mostraram que a resiliência pode auxiliar 89 pacientes com Doença de Parkinson se adaptarem aos sintomas da doença, e em contrapartida, contribuir para a melhoria da QVRS.
Quanto à depressão, múltiplas pesquisas na literatura têm abordado a questão da depressão maior em pacientes com DRC (Barros et al., 2016; Chilcot et al., 2010; Jeon et al., 2012; McCurdy, 2014; Park et al. 2010). De acordo com Chen et al. (2016), a incidência da depressão, em pacientes com o diagnóstico de DRC, pode ocorrer independente do tratamento. Segundo a Sociedade Brasileira de Nefrologia, são quatro possíveis tratamentos, a saber: a diálise peritoneal, a HD, o transplante renal e o tratamento conservador. Dessa forma, com base nas análises dos mesmos autores, no que diz respeito aos tratamentos, os pacientes que realizaram o transplante renal, obtiveram menor risco para o desenvolvimento da depressão maior, em contrapartida, os pacientes em diálise peritoneal apresentaram maior risco de desenvolvimento da depressão maior, comparativamente, aos pacientes em HD (Chen et al. 2016). Autores de um estudo desenvolvido com 50 pacientes coreanos, com o diagnóstico de DRC em fase terminal e em HD, concluíram que pacientes com alta resiliência apresentaram-se menos deprimidos e, consequentemente, maior satisfação com a vida (Lee et al., 2012). Liu et al. (2018) buscaram examinar se a resiliência e o suporte social poderiam reduzir a severidade da depressão maior em idosos em HD e, verificaram que, pacientes com maior resiliência demonstraram sintomas depressivos menos graves e, ainda, os autores aconselharam o estabelecimento de pensamentos positivos em ambos os contextos, clínico e domiciliar, a fim de fortalecer a resiliência. Ainda, diversos pesquisadores verificaram uma associação inversa entre a resiliência e a depressão maior (Holden et al., 2012; Robottom et al., 2012), em outras palavras, maior resiliência contribui para menos sintomas depressivos.
Já a esperança, de acordo com Sartore et al. (2007) e Schrank et al. (2008) se refere à uma perspectiva positiva frente às adversidades impostas por uma doença crônica e tratamento, isto é, pode-se considerar a esperança como uma maneira de enfrentar o diagnóstico da DRC e, em consequência a HD, na qual o paciente pode percorrer uma possível transcendência da situação atual, alcançando uma nova visão. Ottaviani et al. (2014), em sua investigação sobre a esperança em 127 pacientes hemodialíticos, observaram que manter a esperança é um recurso essencial no processo de enfrentar a condição de cronicidade. Ainda, na pesquisa de Pilger et al. (2010), cuja finalidade foi compreender o significado e o impacto da HD em pacientes idosos, evidenciaram que a esperança pode ter um efeito benéfico na saúde do paciente, além de contribuir para a capacitação deste ao lidar com situações adversas, planejar e determinar objetivos saudáveis, a fim de promover a saúde.
Verifica-se, portanto, que a esperança e a resiliência são aspectos relevantes e complementares para proteger o bem-estar de indivíduos (Morote et al., 2017). Dessa forma, mensurar a resiliência e a esperança mostrou-se útil para fornecer suporte para otimizar esses aspectos aos pacientes que lidam com quadros crônicos (Duggal et al., 2016). Ainda, para Duggal et al. (2016), compreender a esperança associada à resiliência, bem como, a relação entre esses aspectos com a estabilidade emocional, são atitudes que podem ser integrados em serviços de apoio ou intervenções aos pacientes. Silva et al. (2018) atentam para o efeito positivo que a psicoterapia surte no paciente com DRC, o qual contribui para a aceitação do diagnóstico da doença e tratamento. Os mesmos autores evidenciaram impactos significativos na QVRS de paciente não-dialíticos associada à participação em grupos de psicoterapia ou, em alguns casos, apenas relatos individuais, em comparação aos que não participavam de nenhum manejo dos sintomas psíquicos. Asensio-Martinez et al. (2018) corroboraram a investigação de Silva et al. (2018), por meio de uma revisão sistemática sobre a resiliência e o seu impacto na saúde física e mental, mostraram que a resiliência foi o ponto chave para o bem-estar e saúde de indivíduos, os quais influem para a promoção de saúde, especialmente aos pacientes com o diagnóstico de doença crônica.
Embora há evidências concretas na literatura no que se refere à importância da resiliência para a QVRS, depressão e esperança, observou-se uma escassez de investigações, sobretudo, em nível nacional, que abordassem o papel da resiliência com relação às variáveis QVRS, depressão e esperança em pacientes com o diagnóstico de DRC e em tratamento hemodialítico, o que pode justificar a relevância do presente estudo. Uma possível limitação deste trabalho refere-se ao delineamento transversal, por não permitir o estabelecimento de relações de causa e efeito, como também, uma amostra relativamente pequena, e a coleta de dados em apenas duas unidades de TRS. Os achados aqui permitem concluir que a resiliência pode ser um dos atributos a ser trabalhado em pacientes com o diagnóstico de DRC e em tratamento hemodialítico, bem como, fornecer subsídios para a atuação de equipe multiprofissional junto aos pacientes com DRC e em HD, o que, em consequência, poderá otimizar a qualidade de vida desses pacientes. Espera-se que a atual pesquisa possa estimular novos horizontes aos profissionais responsáveis por cada unidade de TRS, no sentido de permitir o desenvolvimento de intervenções preventivas de fatores de proteção para a resiliência, talvez, por meio de programas educacionais, visto que a resiliência se mostrou ser de suma importância para promover a QVRS e bem-estar geral de pacientes em tratamento hemodialítico.