O vírus SARS-CoV-2 identificado em 2019 e responsável pelo surto pandémico descrito como COVID-19, doença respiratória com uma intensidade sintomática e uma taxa de transmissibilidade elevadíssimas que colocam um enorme desafio de saúde pública. Em resultado deste contexto, o Serviço Nacional de Saúde e o próprio Sistema Nacional de Saúde encontram-se perto do limite dos seus recursos. As pessoas diagnosticadas com COVID-19, especialmente aqueles que apresentam sintomas graves, estão perante uma ameaça ao seu modo de vida e à sua sobrevivência. O sentimento de ameaça e as alterações radicais ao estilo de vida, são um resultado direto da doença, mas também, das medidas profiláticas tais como a contingência e a quarentena decretados pelas autoridades de saúde, e ainda pelas suas crenças relativas à doença, nomeadamente aquelas que são construídas a partir das informações veiculadas pela comunicação social. A situação de alarme social tem contribuído igualmente para o ampliar os sentimentos catastróficos a propósito da COVID-19.
O modelo Anticipate, Plan and Deter (APD) Responder Risk and Resilience foi adotado como base para a presente investigação. Apesar de este ser um programa de prevenção do stress destinado a profissionais de saúde envolvidos em situações de emergência e catástrofe (Schreiber et al., 2019.), os seus principais eixos de ação foram utilizados no desenho deste estudo, já que sistematizam fatores de risco e de proteção relevantes, nomeadamente mecanismos de “coping” e recursos de resiliência.
Neste programa os participantes são incentivados a identificar primeiro os fatores de stress/eventos “stressores” (como por exemplo testemunhar a morte de alguém, estar de quarentena, estar afastado fisicamente da família para não haver risco de contágio) e as respostas de stress associadas, nomeadamente, respostas físicas (e.g. alterações do sono e/ou do apetite, fadiga, falta de energia), comportamentais (e.g. irritabilidade, raiva, agitação, apatia, isolamento, abuso de substâncias, desvalorização do autocuidado), cognitivas (e.g. confusão mental, problemas de concentração e memória, dificuldade no raciocínio) e emocionais (e.g. tristeza, culpa, raiva, medo, luto e preocupação constante).
Num segundo momento, pretende-se identificar e descrever as estratégias utilizadas para enfrentar os efeitos do stress e da angústia decorrente dos primeiros. Por fim, procura-se identificar os fatores de enfrentamento que potencialmente poderiam contribuir para ultrapassar, do ponto de vista psicológico e emocional, as situações catastróficas testemunhadas e vividas, recorrendo eventualmente aos ensinamentos de experiências anteriores em contexto idênticos.
Embora a atual pandemia seja recente outras como a gripe das aves (H5N1), a gripe suína (H1N1) e particularmente a epidemia do Ébola, pela sua virulência e impacto emocional nas comunidades afetadas e em outras que não sendo diretamente afetadas de modo tão intenso se viram perante o risco e contágio alargado eminente, obrigaram a pôr em ação planos de apoio aos doentes, aos familiares e aos profissionais de saúde que deles trataram, nomeadamente médicos e enfermeiros (Folkman & Greer, 2000). Mais recentemente o crescimento exponencial de infetados com COVID-19 e a enorme capacidade de contágios pelo SARS-CoV-2 levaram a que, primeiro na China, se pusessem em prática procedimentos de atendimento psicológico à distância aos doentes, aos familiares e aos especialistas da saúde (Duan & Zhu, 2020).
Foram então criados modelos de intervenção e de pesquisa em que alguns domínios foram considerados cruciais. Entre estes merecem realce os agentes de stress ou de angústia a que ficaram sujeitos os pacientes e cuidadores. Sendo que o medo da morte, o medo de contaminarem familiares (filhos, pais e esposos em primeiro lugar), a angústia do isolamento implicando a rotura dos hábitos do quotidiano, dos contactos sociais e afetivos, medo de se verem excluídos dos tratamentos (por razões económicas ou por qualquer outro critério de seleção), perda de rendimentos e de emprego tendo como consequência a pobreza, discriminação, surgem nos primeiros lugares (Barzilay et al., 2020).
Outro domínio, entre os mais relevantes identificados, conta-se a capacidade de resistir ao efeito das circunstâncias anteriormente descritas. Ou seja, o conhecimento dos mecanismos ou das estratégias comportamentais, emocionais ou sociais utilizadas como resposta adaptativa aos medos e angústias. A espiritualidade (crenças e práticas religiosas), por exemplo, o apoio dos familiares, o apoio dos médicos e enfermeiros, atividades de lazer, como ler, ver cinema ou ouvir a música preferida, fazer trabalhos de jardinagem, manter a atividade profissional, têm sido descritos como fatores que permitem o enfrentamento da situação altamente stressante também do ponto de vista psicológico e sócio afetivo (Rodríguez-Rey et al., 2020).
De referir, por fim, uma outra dimensão que resulta também das conclusões da investigação, entretanto já realizada sobre o tema. Trata-se da capacidade de, sofrendo tudo o que é esperado que o doente sofra (ou o cuidador) ao longo do processo do adoecer até ao de convalescer, o doente recuperar a sua sanidade mental, isto é, esquivar-se ao que já foi comparado a uma perturbação de stress pós-traumático. Ou seja, os fatores de resiliência (e.g. Southwick et al., 2014). Para muitos são fatores protetores da personalidade (como o otimismo, por exemplo), para outros o apoio que vivenciariam, a crença de que tudo iria “correr bem”, a fé religiosa, etc., foram as razões apontadas.
Dada a quantidade de pessoas diagnosticadas, a necessidades do seu isolamento, a angústia associada à probabilidade de morte, levaram a que se detetasse a necessidade de providenciar aos doentes e familiares apoio emocional complementar aos tratamentos médicos. No Centro Hospitalar Universitário S. João (CHUSJ) - Porto, o recente Serviço de Psicologia mobilizou-se para atender todos os doentes diagnosticados no Hospital adotando, e adaptando-se, às estratégias de apoio à distância especialmente a teleconsulta. Se bem que em alguns países estas estratégias já tinham sido adaptadas antes para apoio a doentes com patologias altamente infeciosas e para os profissionais de saúde envolvidas no seu tratamento, esta foi a primeira oportunidade para que tais medidas fossem implementadas em Portugal, à semelhança daquilo que sucedeu noutros países (e.g. Zhang et al. 2020).
Este estudo teve como objetivos identificar eventos “stressores” e respostas associadas a estes eventos em pacientes diagnosticados com COVID-19 que estiveram internados, e de pessoas sem diagnóstico e sem um familiar próximo infetado; identificar as suas estratégias de confronto psicológico com a situação no seu todo; e identificar quais os recursos psicológicos mobilizados, ou não, visando o ultrapassar de modo positivo desta situação traumática.
Pretende-se que a informação recolhida possa contribuir para o desenhar de estratégias de intervenção destinadas a pacientes com esta patologia ou com outras de características idênticas que envolvam o isolamento do doente.
Método
Participantes
Este estudo qualitativo, observacional e exploratório, incluiu 13 informantes que tinham sido diagnosticados com COVID-19 e estiveram internados e em situação de isolamento, seguidos telefonicamente pelos autores e que estavam capazes de responder às questões colocadas e aceitaram participar. O número de participantes foi definido de acordo com a regra da saturação dos dados (Falqueto et al., 2018; Rego et al., 2018). Destes, 8 eram do sexo feminino e 5 do sexo masculino. Quanto às idades estas distribuíam-se entre os 26 e os 76 anos (M = 55,1; DP=12,7). A escolaridade distribuía-se entre o 4º ano e a licenciatura (M=11; DP=4,7). Entre as profissões contavam-se operárias, vendedoras, empresárias, e técnicos superiores. As respostas destes informantes foram registadas e classificadas com a letra A e o número da sequência da entrevista, de A1 a A13).
Foi incluído no estudo um grupo de pessoas que não tinham um diagnóstico de COVID-19, ou em qualquer familiar próximo. Estes foram igualmente abordados telefonicamente e procurou-se que apresentassem características semelhantes ao grupo anteriormente descrito, em número e género. Destes, 9 eram do sexo feminino e 4 do sexo masculino. As idades distribuíam-se entre os 29 anos e os 51 anos (M = 40,2; DP=5,3). A escolaridade distribuía-se entre o 5º ano e a licenciatura (M =10,3; DP= 3,8). As profissões incluíam um cozinheiro, costureiras, empregadas comerciais, administrativas, e dois técnicos superiores. As respostas dos informantes deste, que quisemos fosse um grupo de contraste, foram classificadas com a letra B (de B1 até B13).
Material
Os instrumentos utilizados consistiram num questionário sociodemográfico e uma entrevista semiestruturada elaborados para este trabalho e baseados no modelo “Antecipate, Plan and Deter (APD) Responder Risk and Resilience” (Schreiber et al., 2019) anteriormente descrito.
Dada a situação do doente, as suas dificuldades em comunicar, em muitos casos devido a cansaço, e os objetivos do estudo, optou-se por um protocolo simplificado semiestruturado preparado para ser pouco demorado. O guião de entrevista incidiu sobre quatro domínios: fatores de stress, consequências psicológicas, estratégias de “coping” e fatores de resiliência.
Procedimento
Foi realizado previamente um estudo piloto em que alguns sujeitos “testaram” a entrevista considerando a facilidade de compreensão das questões, a fluidez da mesma, o tempo da demora, e a relevância da informação obtida. O limite para o número de entrevistas a realizar foi obtido conforme o pressuposto da saturação de dados (Rego et al., 2018), pelo que se terminou o seu registo quando foi atingido este critério.
A investigação foi realizada entre Maio e Agosto de 2020, correspondendo por isso ao período da “primeira vaga” do COVID-19 em Portugal. Os informantes foram contactados telefonicamente pelos autores do estudo. De acordo com o protocolo de Helsínquia, era lido ao paciente o texto do consentimento informado e a entrevista prosseguia se o doente desse o seu consentimento. As respostas foram anotadas e cada protocolo demorou cerca de 20 minutos a ser respondido. A investigação foi aprovada pela Comissão de Ética do CHUSJ.
As respostas obtidas foram examinadas através da análise de conteúdo e esta obedeceu a três etapas fundamentais: (1) pré-análise (organização dos dados, leitura e análise das respostas); (2) exploração do material (identificação de temas específicos mencionados pelos informantes); (3) tratamento dos resultados, inferência e interpretação (atribuição de significado aos dados obtidos, agrupando-os em dimensões mais globais). Assim, as respostas à entrevista fornecidas por cada informante foram classificadas de acordo com o seu conteúdo manifesto em categorias exclusivas, de modo a se explicitarem conteúdos ou temas recorrentes. As suas frequências foram registadas.
Visto que se optou por uma metodologia qualitativa apresentam-se valores a propósito do sexo e da idade, escolaridade e profissão e, para as questões da entrevista apresentam-se frequências e percentagens não se tendo realizado qualquer análise estatística. Para interpretação dos resultados foram considerados os próprios conteúdos, elementos obtidos da bibliografia, foram tidos em conta aspetos relevantes do ambiente cultural, divulgados pela comunicação social, ao tempo da primeira fase da COVID-19.
Resultados
Os resultados, quer das características sociodemográficas quer das respostas à entrevista, encontram-se no quadro 1 para os informantes com COVID-19 e no quadro 2 para os participantes sem COVID-19.
Constata-se que seis informantes com COVID-19 e quatro do grupo sem COVID-19 eram portadores de doença crónica. No primeiro grupo os sujeitos A1, A2, A4, A6 e A7 foram diagnosticados com patologia que constitui risco para a COVID-19, não sendo o caso do paciente A11 diagnosticado com Epilepsia. No segundo grupo quatro informantes indicaram apresentar patologia crónica, os sujeitos B4 e B6 têm patologia que constitui risco para a COVID-19 enquanto que os sujeitos B9 e B11 eram portadores de patologia psiquiátrica.
As respostas na entrevista estão organizadas conforme os temas da mesma e que são: fatores de stress, consequências psicológicas (ou da ameaça no caso do grupo sem COVID-19), estratégias de enfrentamento e fatores de resiliência. É de notar que os valores em percentagem que se apresentam dizem respeito a cada categoria em relação ao total do número de sujeitos (n= 13) e não ao total das categorias identificadas.
Fatores de stress
As principais causas de stress identificadas no primeiro grupo (Quadro 1) foram: medo da morte (n=7; %53,8), de ficar isolado (n=4; %30,8), de contagiar e perder familiares (n=4; %30,8). Também foi relatado o medo das sequelas (n=2; %15,4) e dos sintomas e também o medo de sufocar (n=1; %7,7), esta última foi a resposta de A1 (doente asmático).
Foram ainda identificadas outras dificuldades, nomeadamente a sensação de solidão, o medo de infetar e até não melhorar ou ficar com sequelas. Foi ainda identificado o medo de “ser discriminado” (A10), e o medo “das notícias”.
No caso dos participantes sem COVID-19 (Quadro 2) os principais medos foram: medo de ser contagiado (n=11; %46,2), medo de perder familiares (mais velhos ou de risco) (n=8; %61,5), medo de ter de ficar isolado (n=5; %38,5), dos sintomas (n=3; %23,1), de perder o emprego ou rendimentos (n=2; %15,4) e medo da falta de cuidados em quem os rodeia (n=2; %15,4). Neste grupo um participante não identificou nenhuma causa de stress.
Consequências psicológicas
A totalidade dos informantes do primeiro grupo identificou a ansiedade como principal consequência (n=13; %100), com descrições de uma ansiedade generalizada. Outra consequência psicológica relatada foi a irritabilidade (n=5; %38,5) e os problemas de sono (n=5; %38,5). O sentimento de revolta foi identificado em 3 participantes (n=3; %23,1). Com pequena expressão (n=1; %7,7) surgiram a perda de apetite e problemas de concentração.
Os informantes sem COVID-19 reagiram ao ambiente social associado à pandemia. A principal consequência identificada por estes foi a ansiedade (n= 11; %84,6). Em dois casos (%15,4) é referida a irritabilidade e, com a mesma frequência, problemas de sono, num outro caso é reportada a perda de apetite (%7). Dois informantes deste grupo não identificaram consequências psicológicas do stress.
Enfrentamento
As principais “estratégias” de confronto identificadas no grupo de doentes foram o recurso ao suporte (emocional) familiar (n=9; 69,2%). Sentimento de esperança (n=7; 53,8%), foco no presente (n=5; 38,5%) e também a religião (n=4; 30,8%). Com menor expressão foram identificadas a jardinagem (n=3; 23,1%) e outras atividades de lazer (n=1; 7,7%). Três informantes não referiram estratégias de enfrentamento.
No grupo sem COVID-19 foram identificadas a profissão (n= 7; 53,8%), a esperança (n=6; 46,2%), o foco no presente (n=5; 38,5%), os cuidados pessoais (distância social, higienização das mãos e uso de máscaras) (n=3; %23,1), o suporte da família e a confiança na informação (n=2; 15,4%).
Resiliência
Os informantes do Grupo com COVID-19 assinalaram maioritariamente o convívio, com a família (n=9; %69,2), como sendo o principal elemento a contribuir para a sua recuperação psicológica. Por exemplo o otimismo (n=8; %61,5), a confiança no SNS (n=4; %30,8), o foco no presente (n=3; %23,1) foram também identificados pelos informantes como fatores de resiliência.
No caso dos Informantes sem COVID-19 o otimismo foi referido em 6 casos (46,2%). O apoio da família foi descrito em 5 casos (38,5%). Foram ainda identificados como fatores de sucesso no ultrapassar das consequências a confiança no SNS (n= 3; 23,1%). Foram ainda assinalados a esperança, a prática de desporto, o foco no presente, confiança na ciência (todos com n= 1; 7,7%).
Discussão
No final da 2019 chegaram à Europa os rumores de uma nova doença causada por um novo vírus. A mortalidade era elevada, mas era uma realidade bem distinta da nossa. Rapidamente estes rumores se transformaram numa onda catastrófica e o que parecia acontecer lá longe foi-se aproximando, instalou-se na Itália e foi-se espalhando pela França, Alemanha, Espanha, etc. O índice de transmissibilidade parecia imparável e também a mortalidade era a assustadora. Os grupos de risco eram os mais suscetíveis, mas algumas pessoas aparentemente saudáveis foram vitimadas pela COVID-19. Os sistemas de saúde de alguns dos mais ricos países europeus estavam prestes a soçobrar ao que era já classificado como pandemia. Esta primeira vaga foi relativamente bem suportada em Portugal, o Sistema Nacional de Saúde foi capaz de corresponder à nova doença. Apesar de tudo, o ambiente era de medo, angústia, incerteza e a informação veiculada pela comunicação social ajudava a este cenário. Foi assim que os portugueses se confrontaram com a pandemia, corresponderam às solicitações de confinamento do estado de emergência. Mas como se disse, imperava o medo e a incerteza. Foi ainda nesta contingência que os nossos informantes, os que tiveram COVID-19 e os que não tiveram, se confrontaram com a nossa entrevista.
Consistentemente com o verificado noutros estudos (e.g. Pombo et al., 2020), o medo de morrer, também o medo de contagiar familiares, e o medo de ficar isolado, são as principais causas de angústia e stress das pessoas que tiveram COVID-19. Note-se o que disseram: A9 - “medo de infetar a família, de não melhorar, de estar fechada”, e A13: - “agora tenho medo da recuperação, é lenta, medo de não ficar a 100%, das sequelas”.
Quanto às consequências psicológicas dos acontecimentos, o stress, a ansiedade e a depressão têm sido identificados entre as principais consequências, quer como resultado do confinamento quer como consequência da doença e do internamento hospitalar (Dozois & Mental Health Research Canada, 2020; Hyland et al., 2020). Na nossa população não foi diferente. A ansiedade foi a resposta mais frequente e também outros sinais relacionados, como problemas de sono ou de apetite. Apenas uma informante portadora de perturbação de ansiedade (B11) identificou pânico e o risco de ficar deprimida. A informante B6, que identificou como consequências a ansiedade e a depressão, descreveu a propósito do confinamento: “está-me a deixar maluca, se continua assim vou ficar com depressão”. Para o grupo sem COVID as principais causas de stress foram a medo de ficar contagiado, o isolamento e o medo de perder familiares.
A propósito das consequências psicológicas da doença, no primeiro grupo, ou da ameaça no segundo grupo, as principais foram, nos dois casos, principalmente a ansiedade, se bem que em maior percentagem no 1º grupo. Outras consequências como a irritabilidade, os problemas de sono ou de apetite, devem ser vistas como consequência da ansiedade. A seguinte descrição afigura-se um excelente exemplo da ansiedade generalizada: A12 “Agora tenho medo de tudo, de não voltar a andar sozinho, medo de não poder conduzir, medo de não voltar a trabalhar, de não ser o que era”.
Quanto às estratégias de enfrentamento, a família é considerada o mais importante fator de segurança e de confiança (Salin et al., 2020). Para os informantes com COVID-19 o apoio e o suporte emocional da família foi a estratégia de enfrentamento mais frequentemente identificada, seguida das características pessoais como a esperança, o foco no presente, o informante A3 explicou: “Eu foco-me muito no hoje, não estou a pensar no amanhã, o que tiver de acontecer há de acontecer”; A9: “viver um dia de cada vez”; e A8: “esta experiência faz-me pensar que devo usufruir mais da vida... Um petisco em casa.... Fomos sempre muito poupados, mas se morrermos não levamos o dinheiro connosco. Temos que aproveitar agora.”.
A atividade lúdica para uns, A9: “acho que é fazer renda, e não posso pensar em mais nada”, a vida profissional para outros: B8 respondeu: “O trabalho, o trabalho distrai”.
Por oposição ao apoio da família, o impacto negativo da falta deste, da solidão e do isolamento (e.g. A11: “Sinto-me solitário na minha casa”).
Apenas no grupo sem a doença a religião foi apontada como estratégia de enfrentamento. No grupo sem COVID-19 foram ainda identificadas a atividade profissional e o sentimento de esperança.
A família foi identificada por um grande número de informantes como determinante também da resiliência. Mas neste caso o foco foi colocado no convívio, no passar tempo com a família. O grupo com COVID-19 foi o mais frequentemente escolheu este fator. A propósito, o informante A7 descreveu: “estar com a minha esposa, com a filha e neto, sem dúvida, eu vivo muito a família”. Para A13: “ter a família comigo e a empresa, isso dá-me muita força”. Este (A3) também identificou os profissionais de saúde “que puxam muito por mim”. O otimismo (encontrar uma vacina, uma cura) foi identificado nos dois grupos.
A análise dos resultados mostrou que havia muitas semelhanças entre as respostas dos dois grupos, mas havia também algumas diferenças. Nos dois grupos o medo de perder familiares para a COVID-19 foi um dos mais importantes determinantes da ansiedade. O medo da morte estava presente no grupo dos doentes, parecendo estar associado à gravidade dos sintomas que experienciaram, já que todos os doentes com um quadro clínico muito grave assim o relataram, parecendo remeter para um risco real de morte. O medo de ser contagiado é o aspeto mais frequentemente identificado no grupo sem COVID-19. Neste grupo o contágio era apenas e ainda só uma ameaça. Em ambos o grupo a confiança no SNS constituía um importante determinante da resiliência. É de realçar que recurso à família quer como estratégia de enfrentamento quer como fator de resiliência foi mais usado no grupo dos doentes. Este recurso poderá ser explicado pela maior carga emocional dos fatores de stress e das consequências psicológicas (medo da morte, maior ansiedade) e, por isso, maior necessidade de algum tipo de compensação com maior impacto emocional (o apoio da família, passar tempo com a família).
As categorias mais frequentes associadas aos fatores investigados (causa de stress, consequências psicológicas, estratégias de enfrentamento e resiliência) mostram como a generalidade dos sujeitos reagiu à pandemia. É interessante atentar aos casos pontuais que mostram como poucas pessoas reagiram, sugerindo a necessidade por vezes de estratégias de intervenção particulares. Por exemplo, o sujeito asmático manifestou medo de sufocar, o sujeito com perturbação de ansiedade reagiu com pânico. Realçamos que enquanto para um informante infetado as notícias (más) sobre a pandemia em Portugal foram um fator de stress: (A6: “algum receio de ouvir as notícias com este aumento de casos na zona Sul”), para outro as (boas) notícias sobre a prevalência da COVID-19 em Portugal promoveram um melhor enfrentamento (B2: “as notícias que mostram uma imagem de Portugal otimista em relação aos outros países”. É reconhecido o papel que a comunicação social tem no modo como transmite a informação contribuindo para uma melhor adaptação e resposta ou, pelo contrário, para o pânico (Garfin et al., 2020; Ozamiz-Etxebarria et al., 2020). É de esperar que os fatores de stress determinem consequências psicológica que por sua vez se associem quer às estratégias de enfrentamento quer a melhor resiliência. Para Barzilay e colaboradores (2020), melhor resiliência decorre de menor ansiedade e menor depressão. Estes autores atribuem um papel importante a fatores culturais enquanto determinantes de maiores ou menores níveis da ansiedade e da resiliência, tais como maior experiência coletiva com acontecimentos stressantes, como seria o caso de países frequentemente sujeitos a catástrofes.
O estudo apresenta algumas limitações. A principal é um resultado do tipo de entrevista, simples de modo a ser respondida ao telefone, e por informantes nem sempre nas melhores condições saúde (dificuldades respiratórias e fadiga fácil). Por essa razão, as respostas não terão atingido a profundidade desejada. Selecionou-se uma metodologia qualitativa, primeiro porque se pretendia abordar aspetos do âmbito emocional eventualmente não observáveis através dos instrumentos tradicionais e depois porque se tratava de uma população fragilizada, física e emocionalmente, em que instrumentos complexos poderiam constituir obstáculo ao curso da investigação. Optou-se por esta metodologia porque era o único modo de os pacientes serem abordados dadas as regras do confinamento que então se viviam acrescidas das medidas profiláticas obrigatórias face a pacientes com COVID-19 que impunham um contacto à distância.
Apesar das limitações identificadas, esta investigação apresenta alguns pontos que poderão servir de orientação quer para investigação quer para a intervenção nos sujeitos em risco e nos já doentes (agora que nos encontramos numa nova vaga ainda mais catastrófica) que sistematizamos de seguida.
- Valorizar os “stressores” identificados já pelas pessoas na primeira vaga da pandemia com tendência ao agravamento exponencial, nomeadamente os que decorrem da perda de rendimentos económicos (Rodríguez-Rey et al., 2020).
- A necessidade de intervir ao nível da saúde mental, nos doentes, mas também nos não doentes. O confinamento e suas repercussões emocionais, a ansiedade, o stress, para além do sofrimento inerente, têm um profundo impacto na depressão e na saúde mental global dos sujeitos expostos (Brooks et al., 2020; Ho et al., 2020). Realçar que os aspetos identificados na literatura com maior impacto psicossocial negativo foram: ter história de doença anterior “física” e ou mental (Almeida et al., 2020; Pombo et al., 2020). Numa pandemia, o medo aumenta os níveis de ansiedade e stress em indivíduos saudáveis e intensifica os sintomas daqueles com transtornos psiquiátricos pré-existentes.
- A vantagem em “capitalizar” os recursos (“coping” e fatores de resiliência) já existentes ou que naturalmente as pessoas e os psicólogos, psiquiatras e outros em contexto de ajuda, estarão já predispostas a usar: o apoio familiar, confiança no SNS, foco no presente, religião, atividade profissional.