Após uma amputação do membro inferior, os pacientes entram numa espiral de emoções e desafios resultante da necessidade de ajustamento físico, social e psicológico, de forma a alcançar uma qualidade de vida satisfatória. Compreensivelmente, o ajustamento psicossocial a uma amputação e a um membro artificial é determinante para o funcionamento geral e para a qualidade de vida dos pacientes após amputação (Coffey et al., 2014; Gallagher & MacLachlan, 2004; Pedras et al., 2020; Sinha et al., 2014), tanto nos pacientes que são candidatos elegíveis a um membro artificial (prótese), mas também naqueles que não preenchem os critérios clínicos exigidos para receber um membro artificial e, por isso, têm de se adaptar à amputação utilizando uma órtotese (no caso de amputações minor de dedos), canadianas, cadeira de rodas, ou sem nenhum tipo de dispositivo de assistência.
O ajustamento psicossocial a uma doença crónica e/ou incapacidade é um processo complexo, dinâmico e contínuo (Livneh & Antonak, 1997), que implica a satisfação e aceitação da doença/condição crónica ou da incapacidade. Este processo envolve as relações interpessoais do indivíduo mas também a sua relação com o meio envolvente, a manutenção da capacidade de independência e resolução de problemas na vida diária, a sensação de controlo e domínio/mestria pessoal, a capacidade de navegar em ambientes sociais e físicos, desenvolver e manter um autoconceito positivo e a capacidade de trabalhar e manter hobbies (Dunn et al., 2016). Esta visão ecológica de ajustamento sugere uma interação contínua entre experiências pessoais, sociais e ambientais, e entre as exigências da situação e os recursos do indivíduo, ao longo do processo de adaptação que, por sua vez, culminará num ajustamento bem ou malsucedido. É importante enfatizar que nem todos os pacientes têm dificuldade em se adaptarem a uma condição/doença crónica ou incapacidade e outros, apresentam formas de ajustamento que podem não parecer as mais adequadas aos olhos dos outros. Sabemos também que o processo de ajustamento se encontra favorecido se os pacientes considerarem e percecionarem a amputação como um meio necessário para atingir um fim (salvar a sua vida) (Horgan & MacLachlan, 2004). Para além disso, em relação ao uso da prótese, nem todos os pacientes submetidos à amputação atendem aos critérios físicos e cognitivos necessários para serem candidatos a uma prótese, principalmente os pacientes que sofreram amputação devido a uma doença crónica, como é o caso dos pacientes amputados devido a uma úlcera do pé diabético (UPD).
Neste sentido, revela-se necessário disponibilizar um instrumento que permita avaliar adequadamente o ajustamento psicossocial em pacientes amputados do membro inferior devido a uma UPD que não usam prótese.
Os instrumentos de avaliação para indivíduos com amputação do membro inferior podem ser divididos em três categorias: autorrelato (ex.: Prosthesis Evaluation Questionnaire, PEQ), registo profissional (ex.: International Classification of Function, Disability and Health, ICF, checklist), e instrumentos baseados no desempenho (ex.: Teste 6 Minutos de Marcha, 6MWT, e o Time Up & Go, TUG) e, que tenhamos conhecimento, em Portugal, existem dois questionários validados: um questionário de autorrelato - Prosthesis Evaluation Questionnaire (PEQ, Matos, 2015) - para avaliar tanto a funcionalidade com a prótese como a funcionalidade do indivíduo após a amputação, e o - Amputee Mobility Predictor (AMP, Anjos et al., 2005) - que avalia o potencial de marcha com prótese. O PEQ-PT é um questionário de autorrelato constituído por 84 itens e 9 subescalas, sendo uma delas denominada de bem-estar por avaliar o grau de satisfação desde a amputação e o grau de qualidade de vida. O AMP é constituído por seis domínios (equilíbrio na posição de sentado, transferências, equilíbrio na posição ortostática, marcha, subida e descida de escadas, utilização de auxiliares de marcha) relacionados com o desempenho do indivíduo após amputação. Por isso, os instrumentos de avaliação na área da reabilitação e fisioterapia avaliam principalmente a condição física dos pacientes, como indicadores físicos e motores associados à mobilidade e funcionalidade, o que é indiscutivelmente essencial e pertinente.
No entanto, o ajustamento é um fenómeno multidimensional e, até há poucos anos atrás, era concetualizado e avaliado através de instrumentos de avaliação da qualidade de vida, com foco em fatores mais relacionados com a incapacidade e, quase sempre, com foco no ajustamento e satisfação protésico (Baars et al., 2018; de Souza et al., 2019; Webster et al., 2012). Não obstante, um ajustamento global bem-sucedido à perda de um membro requer também um ajustamento psicossocial que inclua os aspetos psicológicos e sociais (Hamill et al., 2010; Senra et al., 2011; Sinha et al., 2014), emergindo assim a necessidade de disponibilizar um instrumento que se distinga dos existentes por se focar num âmbito mais alargado, como o ajustamento psicossocial, e não apenas na incapacidade e capacidade de mobilidade. As Trinity Amputation and Prosthetics Experience Scales-revised (TAPES-R) distinguem-se destes questionários por se constituírem como um questionário de autorrelato que avalia de forma breve, o ajustamento psicossocial dos pacientes após amputação, e não apenas, o desempenho físico e a capacidade ambulatória.
Gallagher e MacLachlan (2004) desenvolveram a Trinity Amputation and Prosthesis Experience Scales. As Escalas de Experiência de Amputação e Prótese Trinity (TAPES) constituem um instrumento de autorrelato multidimensional para compreender a experiência de amputação e ajustamento a uma prótese do membro inferior. Em 2010, a TAPES foi revista e surgiu o Trinity Amputation and Prosthesis Experience Scales - Revised (TAPES-R, Gallagher et al., 2010) que inclui 64 itens distribuídos por duas secções: a 1ª secção inclui três escalas de ajustamento psicossocial (geral, social e às limitações), uma escala de restrição nas atividades e duas escalas de satisfação com a prótese (estética e funcional); a 2ª secção explora a presença e características da dor fantasma, da dor residual no coto e de outro tipo de dor não relacionada com a amputação, abordando especificamente questões relacionadas com a frequência da dor, descrição, duração de cada episódio e interferência no estilo de vida diário. Por fim, dois itens avaliam a saúde e a capacidade física (Gallagher et al., 2010). Este instrumento já foi traduzido em vários idiomas apresentando propriedades psicométricas adequadas e estruturas fatoriais semelhantes à versão original (Luthi et al., 2020; Massarweh & Sobuh, 2019; Matos et al., 2018; Mazaheri et al., 2011; Topuz et al., 2011).
Em Portugal, cerca de 14% da população adulta portuguesa tem Diabetes Mellitus (DM) (Sociedade Portuguesa de Diabetologia, SPD, 2015) sendo o país da União Europeia com a taxa mais alta de DM (Organisation for Economic Cooperation and Development (OECD), 2016), com tendência de crescimento devido às especificidades da população portuguesa (de Sousa-Uva et al., 2016). Segundo o Observatório Português da Diabetes (SPD, 2016), em 2015, registaram-se 1863 internamentos relacionados com a UPD e 1037 amputações (433 major e 604 minor), embora com uma tendência decrescente nos últimos anos. Por estas razões, esta doença é considerada um problema de saúde pública e a UPD representa uma das complicações mais sérias da DM por, frequentemente, culminar numa amputação do membro inferior. Estima-se que a cada 20 segundos seja realizada uma amputação algures no mundo devido à UPD (Boulton et al., 2005; International Diabetes Federation, 2019), a qual também aumenta drasticamente as taxas de mortalidade e morbilidade nesta população (Moxey et al., 2011). As complicações relacionadas com as amputações dos membros inferiores devido a DM representam um enorme burden para os indivíduos, sociedades e sistema de saúde. Em 2016, cerca de 131 milhões de indivíduos (1,8% da população global) apresentavam complicações relacionadas com as amputações de membros inferiores devido a DM (Zhang et al., 2020). Estima-se que 16,8 milhões de anos vividos com incapacidade (years lived with disability-YLD) (2,1% YLD globais) foram causados pelas complicações destas amputações, incluindo 12,9 milhões (IC 95% 8,30-18,8) devido às UPDs e 1,1 milhão (0,7-1,4) devido a amputações sem prótese.
Os pacientes com amputação devido a DM e a UPD precisam de se adaptar não só às consequências “gerais” de uma amputação mas também precisam de aderir aos autocuidados essenciais e indispensáveis na gestão da doença crónica subjacente à amputação (DM), dado que foi o padrão de não adesão recorrente e persistente aos autocuidados que contribuiu, em grande parte, para a mesma. Em geral, após uma amputação, existe um risco aumentado de reamputação, não cicatrização das feridas e mortalidade (López-de Andrés et al., 2019; Pedras et al., 2020; Thorud et al., 2016). Mas, para além destas consequências e eventos adversos clínicos possíveis após amputação, o paciente tem ainda de se adaptar a uma série de mudanças sociais, ambientais, financeiras e psicológicas realçando, assim, o papel fundamental da avaliação psicossocial, e não apenas da avaliação de indicadores físicos e clínicos associados à incapacidade, como se fossem os responsáveis e determinantes únicos do processo de ajustamento após uma amputação.
Assim, este estudo teve como objetivo validar a TAPES-R em pacientes portugueses amputados devido a uma UPD e que não usam prótese, através de uma análise fatorial confirmatória e da avaliação das propriedades psicométricas, tendo em conta a variância média extraída (AVE), e a variância máxima e média quadrada compartilhada (MSV/ASV). A TAPES-R-PT será útil em contextos clínicos multidisciplinares, para informar os profissionais de saúde na estruturação e conceção de planos de reabilitação bem como no âmbito da investigação sobre o processo de ajustamento psicossocial à amputação.
Método
Participantes
Cento e quarenta e quatro pacientes foram avaliados um mês após a amputação. O quadro 1 apresenta as características sociodemográficas e clínicas da amostra. Todos os participantes apresentavam Diabetes Mellitus Tipo 2 (DMT2) e UPD, e 52,1% (n=75) já tinham sido submetidos a uma amputação prévia.
Material
Questionário sociodemográfico que incluiu questões relativas à idade, escolaridade, estatuto marital e estatuto profissional.
Questionário clínico que incluiu questões referentes à duração do diagnóstico de DMT2, número de complicações da DM, tipo de pé (neuropático ou neuroisquémico), duração da UPD, amputações prévias e nível da amputação prévia, nível da amputação index (a amputação atual) e índice de massa corporal (IMC).
Trinity Amputation and Prosthesis Experience Scales Revised (TAPES-R, Gallagher et al., 2010). A TAPES-R compreende duas partes. A 1ª parte é constituída por três escalas de (1) Ajustamento psicossocial (geral, social e às limitações); (2) uma escala de Restrição de atividades; (3) e duas escalas de Satisfação com a prótese (funcional e estética). A 2ª parte é constituída por um conjunto de questões qualitativas que exploram a dor no membro fantasma, dor no membro residual e outras condições médicas não relacionadas com a amputação. As duas escalas de Satisfação com a Prótese (3) não foram incluídas nas análises psicométricas pois esta amostra não preenchia os critérios para o uso de prótese e, o objetivo deste estudo, foi disponibilizar aos profissionais de saúde um instrumento que lhes permitisse avaliar o ajustamento psicossocial dos pacientes amputados sem prótese. Especificamente, as três escalas de ajustamento psicossocial incluem a avaliação do Ajustamento Geral (AG: itens 1 a 5, ex.: “Já me adaptei a não ter o membro”), Ajustamento Social (AS: itens 6 a 10, ex.: “Não me incomoda que as pessoas façam perguntas sobre a falta do membro”) e Ajustamento às Limitações (AL: itens 11 a 15, ex.: “A falta do membro torna-me mais dependente dos outros do que eu desejaria”). Os itens são medidos numa escala Likert de quatro pontos (1-“discordo totalmente” a 4 -“concordo totalmente”; e uma categoria adicional sem pontuação “não aplicável”). Os itens 11 a 15 devem ser invertidos. Pontuações mais elevadas indicam níveis mais altos de ajustamento em cada uma das três escalas.
A Escala de Restrição nas Atividades (RA) compreende 10 itens (ex.: “Correr para apanhar o autocarro”), medidos numa escala de Likert de três pontos (1-"sim, muito limitado ", 2-"um pouco limitado", e 3- “não, nada limitado”). Pontuações mais elevadas representam níveis mais baixos de restrição nas atividades.
A versão da TAPES-R-PT apresentou propriedades psicométricas adequadas em todas as escalas tal como a versão original. Os alfas de Cronbach do presente estudo são apresentados no quadro 2 juntamente com os alfas das demais versões validadas (Tapes-R-PT é apresentada como material suplementar).
Short Form Health Survey (SF-36) (Ferreira et al., 2012; Ware et al., 1993). Esta escala avalia duas medidas sumário de qualidade de vida: a Medida Sumário Física (MSF) e a Medida Sumário Mental (MSM) que compreendem oito subescalas que avaliam a Qualidade de Vida Relacionada com a Saúde (QdVRS): Funcionamento físico, Limitação de papéis devido à saúde física, Problemas de dor, Perceção geral de saúde, Vitalidade, Funcionamento social, Limitação de papéis devido ao funcionamento emocional e Saúde mental. As primeiras quatro escalas refletem a perceção do estado de saúde física e as quatro seguintes, a perceção do bem-estar psicológico. Uma pontuação mais elevada indica uma QdVRS mais alta na MSF e na MSM. O alfa de Cronbach para MSF foi 0,87 e 0,90 para MSM.
Hospital Anxiety and Depression Scales (HADS) (Pais-Ribeiro et al., 2007; Zigmond & Snaith, 1983). Esta escala é composta por 14 itens, sete itens que avaliam a ansiedade (HADS-A) e sete itens que avaliam a depressão (HADS-D). Todos os itens são avaliados de 0 a 3 com uma pontuação total máxima de 21 pontos para ansiedade e depressão. Pontuações mais altas indicam um maior nível de sintomas de ansiedade e de depressão. O alfa de Cronbach para HADS-A foi de 0,86 e 0,88 para a HADS-D.
Procedimento
Este estudo integra-se num estudo alargado onde os critérios de inclusão dos participantes foram os seguintes: i) ter DMT2 e UPD; ii) ter realizado uma cirurgia de amputação há menos de um mês, e iii) ter mais de 18 anos. Os critérios de exclusão incluíram o diagnóstico de psicose ou demência registada no processo clínico. Os doentes foram referenciados por profissionais de saúde de dois Serviços de Cirurgia Vascular e de quatro Clínicas Multidisciplinares de Pé Diabético de seis hospitais do Norte de Portugal, durante três anos. Um mês após a cirurgia de amputação foram avaliados 144 pacientes, nas consultas de acompanhamento no hospital. O protocolo do estudo foi aprovado pelas Comissões de Ética dos seis hospitais onde os dados foram recolhidos. Os participantes foram previamente informados sobre os objetivos do estudo, participaram voluntariamente e assinaram um consentimento informado. O estudo seguiu os princípios éticos da Declaração de Helsínquia.
Processo de tradução
O processo de tradução da TAPES-R para a língua portuguesa foi realizado com base nas orientações recomendadas pelo Projeto International Quality of Life Assessment para tradução transcultural (Aaronson et al., 1992). A tradução focou-se nos aspetos interculturais e conceptuais, ao invés de aspetos associados com equivalência linguística / literal através de um método de forward-translations e back-translations. Assim, este estudo seguiu as seguintes etapas: 1) tradução direta (forward-translation); 2) retroversão do painel de especialistas (back-translation); 3) pré-teste e entrevista cognitiva, e 4) construção da versão final. Na primeira etapa, uma psicóloga da saúde com experiência e conhecimentos na área da reabilitação de pacientes com amputação traduziu a versão inglesa para português. Na segunda etapa, a tradução direta foi realizada por uma psicóloga da saúde, bilíngue, que identificou e resolveu as dificuldades/dúvidas que surgiram relativamente a expressões, palavras, frases que não captaram o conceito original do item. De seguida, a TAPES-R foi retrotraduzida para o inglês por outro psicólogo da saúde bilíngue. Por fim, o pré-teste e as entrevistas cognitivas (reflexão falada) na população-alvo foram realizados com 10 pacientes com amputação devido a DMT2 e UPD não tendo sido necessário alterar os processos de tradução e retroversão.
Análise de dados
A análise dos dados foi realizada usando o IBM SPSS Statistics (v.24, SPSS Inc., Chicago, IL). Foram validados os pressupostos de normalidade e multinormalidade, outliers e valores ausentes. A estatística descritiva foi utilizada para caracterizar a amostra. A estrutura fatorial foi avaliada usando uma análise fatorial confirmatória (AFC), usando o software AMOS v24.0. O estimador de máxima verossimilhança (ML) foi usado para avaliar erros padrão robusto de não normalidade e o qui-quadrado.
A qualidade de ajustamento dos modelos, foi avaliada através do cumprimento de valores de referência de indicadores de boa qualidade: 1) χ2 /gl ≤ 5; 2) o Comparative Fit Index (CFI), 3) o Tucker Lewis Index (TLI) ≥ 0,95; o 4) o Root-Mean Square Error Approximation (RMSEA) < 0,08; e 5) o Standardized Root Mean Square Residual (SRMR) < 0,05 (Hu & Bentler, 1999).
Os índices de modificação (IM) indicam o nível de extensão do qui-quadrado que aumenta (melhora) se os parâmetros restritos covariarem. Por isso, valores de IM superiores a 20 em itens no mesmo factor foram inspecionados. Assim, foi hipotetizado à priori, que os erros estariam correlacionados dado que as variáveis apresentam componentes compartilhadas e os itens estariam fortemente correlacionados. Além disso, os fatores possuíam semelhanças no conteúdo dos itens diferindo apenas numa ou duas palavras (Byrne, 2010). Sendo assim, as abordagens de modelagem são uma alternativa viável quando não controlamos a qualidade e a redação dos itens (Brown, 2015).
Para testar a validade convergente e discriminante, foram utilizadas a variância média extraída (AVE), a variância máxima e média quadrada compartilhada (MSV/ASV). O valor de AVE deve estar acima de 0,5 para ser indicador de boa validade convergente. Os valores de MSV/ASV devem ser menores que o resultado do valor AVE para serem considerados um indicador de boa validade discriminante. Para testar a consistência interna, o alfa de Cronbach (α) foi usado.
Resultados
O quadro 3 apresenta os valores da estatística descritiva e do coeficiente de correlação de Pearson entre as escalas da TAPES-R-PT, medidas sumárias do SF-36 e escalas do HADS.
Nota: DP: desvio padrão: MSF: Medida Sumário Física; MSM: Medida Sumário Mental; HADS-D: Sintomas de depressão; HADS-A: Sintomas de ansiedade; **p<0,01
Validade de Construto
Foi realizada uma análise fatorial confirmatória (CFA), de acordo com a estrutura original, ou seja, um modelo com três fatores para as Escalas de Ajustamento Psicossocial e um fator unidimensional para a Escala de Restrição nas Atividades. A solução de três fatores nas Escalas de Ajustamento Psicossocial apresentou bons índices de ajustamento, χ2/gl=1,80, p<0,001; GFI=0,893; AGFI=0,845; CFI=0,972; RMSEA=0,075, assim como a solução unidimensional da Escala de Restrição nas Atividades, χ ²/gl=1,43, p=0,192; GFI=0,978; AGFI=0,933; CFI=0,995; RMSEA = 0,054. Todos os itens saturaram significativamente nos fatores originais, p<0,001, com saturações acima de 0,50, e a maioria das correlações entre itens e fatores revelaram-se fortes (0,73 a 0,97) (figuras 1 e 2). Porém, tanto na escala de Ajustamento Geral como na Escala de Ajustamento às Limitações, foram permitidas correlações entre pares de itens (entre os itens 1 e 2; 1 e 3; e 1 e 5 na escala de AG; e entre os itens 11 e 15 na escala de AL). Na Escala de Restrição nas Atividades, os itens 7, 8, 9 e 10 foram excluídos. Para além disso, os índices de modificação (IM) indicaram que a extensão do qui-quadrado melhoraria se os parâmetros restritos fossem covariados e, como esses itens possuíam semelhanças de conteúdo, permitiu-se a correlação entre erros no mesmo fator (entre os itens 2 e 5 e entre 4 e 5) (figuras 1 e 2).
Validade convergente e divergente entre as escalas da TAPES-R
Os valores da variância média extraída (AVE) e a variância máxima e média quadrada compartilhada (MSV/ASV) revelaram-se adequados (quadro 4).
Validade convergente e divergente entre as escalas da TAPES-R, subescalas do HADS e medidas sumário do SF-36
Os coeficientes de Pearson são apresentados no quadro 3. Foram encontradas correlações positivas estatisticamente significativas entre as escalas de ajustamento da TAPES-R-PT, a escala de restrição nas atividades e as MSF e MSM. Verificaram-se também correlações negativas entre as escalas de ajustamento da TAPES-R-PT, escala de restrição nas atividades e HADS-D e HADS-A.
Discussão
A versão adaptada e validada da TAPES-R numa amostra de pacientes portugueses com uma amputação do membro inferior sem prótese mostrou uma estrutura fatorial idêntica à da versão original, níveis de fidelidade adequados e um padrão de validade convergente e divergente na linha do esperado. No entanto, a solução fatorial encontrada implicou a eliminação de quatro itens da escala de restrição nas atividades que, nesta amostra, não se revelaram pertinentes.
As relações observadas entre as dimensões da qualidade de vida mental e física e as escalas de ajustamento psicossocial e a escala de restrição nas atividades são indicadores de que a TAPES-R-PT tem validade convergente. Da mesma forma, a relação com os sintomas de depressão e ansiedade mostrou que a TAPES-R-PT tem validade divergente.
Na análise fatorial confirmatória, ambos os construtos, ajustamento psicossocial e restrição nas atividades, apresentaram um bom ajustamento. As escalas de ajustamento psicossocial mantiveram o mesmo conjunto de itens tal como na versão original. A escala de restrição nas atividades, constituída originalmente por 10 itens num fator unidimensional, na versão portuguesa mostrou-se mais adequada e ajustada apenas com seis itens, tendo sido excluídos os itens 7, 8, 9 e 10.
Para melhorar o ajustamento do modelo na escala de ajustamento geral, e com base em considerações teóricas, foram incluídas correlações entre os erros dos pares de itens pertencentes ao mesmo fator, cujos valores dos índices de modificação por multiplicadores de Lagrange (LM) se apresentaram superiores a 11 (p<0,001) (Hair et al., 2010). Essas correlações entre os erros foram antecipadas e esperadas porque, além de se encontrarem no mesmo fator, o conteúdo dos itens é muito semelhante. No que diz respeito à escala de Ajustamento Geral, o item 1 “Já me adaptei a não ter o membro” e o item 2 “À medida que o tempo vai passando, aceito cada vez melhor a perda do membro”, item 3 “Sinto que lidei bem com esta situação na minha vida” e o item 5 “Já me habituei à perda do membro”. O facto de os itens se encontrarem no mesmo fator permite que os erros de medição se correlacionem. Além disso, na escala de Ajustamento às Limitações, o item 11 “A falta do membro interfere com a minha capacidade para trabalhar” e o item 15 “A falta do membro limita a quantidade de trabalho que gostaria de fazer”, partilham a variância entre erros. Ambos os itens se referem ao trabalho, porém, o item 11 refere-se à capacidade para o trabalho e o item 15 refere-se à quantidade de trabalho. A relação entre a capacidade e a quantidade é tão forte que aceitamos a correlação entre os erros nestes pares de itens juntamente com os valores baixos das correlações (Hinkle et al., 2003). Para além da semelhança de conteúdo, acreditamos que características particulares da amostra bem como aspetos culturais/sociais também justificam estes resultados. Esta amostra é constituída sobretudo por homens (71%) que sabemos apresentarem mais facilidade de adaptação à perda de um membro do que as mulheres (Sinha et al., 2014). Além disso, a maior parte dos participantes apresenta uma média de idades de 66 anos, sendo na sua maioria reformados (76%) que foram sujeitos a uma amputação minor (dedos ou transmetatársica) (81%). Neste sentido, é natural que o trabalho não tenha sido substancialmente afetado ao ponto de poder diferenciar os itens. Em relação à escala de restrição nas atividades, os itens 7 a 10 foram excluídos do modelo final e foi permitida a inclusão de correlações entre os erros nos seguintes pares de itens: par 2 e 5 e par 4 e 5. O item 2 avalia a limitação no “Subir vários lanços de escadas”, o item 5 avalia “Subir um laço de escadas”, e o item 4 avalia a limitação para “Desporto e atividades recreativas”. Os itens 7 a 10 foram excluídos e avaliavam: “Caminhar meio quilometro”, “Caminhar 100 metros”, “Dedicar-me a atividades de passatempos”, “Ir trabalhar” (ver versão original da TAPES-R de Gallagher e MacLachlan, 2010). Este facto deve-se provavelmente à falta de variabilidade na resposta dado que a grande maioria dos pacientes respondeu 1 (“Sim, muito limitado”) nestes itens.
TAPES-R-PT apresentou validade divergente e convergente com os sintomas de depressão e ansiedade e com a qualidade de vida física e mental. Todas as relações se revelaram moderadas a elevadas entre as escalas de ajustamento psicossocial, exceto na escala de restrição nas atividades, onde as correlações se revelaram baixas com o ajustamento geral e social.
Um ajustamento global bem-sucedido à perda de um membro requer um ajustamento psicossocial holístico que englobe o ajustamento de aspetos psicológicos e sociais e não apenas físicos (Hamill et al., 2010; Pedras et al., 2018; Sinha et al., 2014). Até alguns anos atrás, não existia um instrumento de avaliação psicométrica multidimensional específico para avaliar o ajustamento psicossocial à perda de um membro, teórica e empiricamente validado (Gallagher & MacLachlan, 2010). Atualmente, a TAPES-R representa uma medida confiável de ajustamento psicossocial e restrição nas atividades, adequada para conhecer e compreender o processo de ajustamento à incapacidade provocada pela amputação de um membro inferior. Na prática clínica, este instrumento revela-se uma ferramenta de rápida administração que auxiliará os profissionais de saúde, que trabalham em contextos de fisioterapia e reabilitação, a identificar pacientes em risco de não ajustamento ou de dificuldades de adaptação, e a monitorizar o progresso e o sucesso do processo de reabilitação, que é indissociável do processo de ajustamento psicossocial. Esta avaliação permitirá identificar pacientes em risco de não ajustamento e encaminhá-los, atempadamente, para acompanhamento psicológico (Hamill et al., 2010). Embora, um ajustamento bem-sucedido à amputação deva ter início na pré-habilitação (no pré-cirurgia), como nos demonstra o estudo de Hamil e colegas (2010). Estes autores recorreram à Análise Interpretativa Fenomenológica para compreender a experiência do ajustamento psicossocial de um grupo de pacientes, 18 meses após a amputação, e verificaram que emergiram três temas das entrevistas semiestruturadas: (1) importância do processo de tomada de decisão pré-amputação e controlo da informação, (2) necessidade de renegociação da identidade própria e a luta para aceitar uma nova identidade "deficiente" e (3) a perceção do ajustamento como um processo social (Hamill et al., 2010). Ainda, os autores realçaram que, para a maioria dos indivíduos, o processo de ajustamento começa muito antes da cirurgia, assim que a possibilidade de amputação é considerada (Desmond & MacLachlan, 2002). Assim, o paciente deve ser envolvido de forma ativa no processo de tomada de decisão pré-amputação; deve percecionar controlo sobre a informação recebida e partilhada pelo médico/cirurgião responsável não só por ser fundamental para o processo de ajustamento à amputação mas também por estimular o vínculo e a confiança no profissional de saúde o que, por sua vez, irá promover maior adesão ao tratamento e à reabilitação. A negociação, a partilha e o envolvimento do paciente nas decisões tomadas no período pré cirurgia irão permitir que o paciente possa iniciar o processo de reconstrução da sua identidade (ameaçada pela cirurgia de amputação) e fazer o luto do membro amputado.
O presente estudo tem várias limitações que restringem e impedem a generalização dos resultados. O tamanho reduzido da amostra, a recolha dos dados ter sido realizada apenas na zona Norte do país e os questionários utilizados serem de autorrelato podendo as suas respostas ter sido influenciadas pela desejabilidade social.
Hoje em dia, assistimos a um aumento exponencial no número de pessoas com doenças crónicas que podem culminar em consequências incapacitantes. Porém, nos pacientes com DM, que são sujeitos a uma amputação (ou várias), as exigências físicas, psicológicas e sociais que enfrentam são ainda maiores. Estes pacientes devem adotar um conjunto de autocuidados necessários para uma gestão eficaz e bem-sucedida da doença crónica (a DM) que deu origem à necessidade de amputação. Pode-se ter saúde ao viver com uma doença crónica, se esta doença estiver controlada e monitorizada de forma a prevenir complicações ainda mais adversas para a saúde do indivíduo. Para isso, é necessário adotar comportamentos que promovam e aumentem a saúde na doença crónica, neste caso a DM, de forma a evitar o desenvolvimento de outras complicações, tais como a retinopatia e a nefropatia.
A maioria dos estudos realizados nesta população após a amputação debruçaram-se sobre o ajustamento à amputação e prótese (Baars et al., 2018; de Souza et al., 2019; Desmond & MacLachlan, 2002; Matos et al., 2018; Sinha et al., 2014; Webster et al., 2012). Não que este foco não seja de extrema importância, no entanto, uma percentagem substancial de pacientes não utilizam nem utilizarão prótese necessitando igualmente de ser avaliados no seu processo de ajustamento à amputação. Contudo, existem poucos estudos que se tenham debruçado exclusivamente sobre os desafios impostos ao processo de ajustamento psicossocial à amputação e, alguns dos existentes, têm mais de duas décadas (Coffey et al., 2014; Hamill et al., 2010; Horgan & MacLachlan, 2004; Pedras et al., 2018). Espera-se que disponibilizando este instrumento, tanto os profissionais de saúde na prática clínica, como os investigadores, na academia, façam uso dele para aumentar a compreensão dos clínicos e da comunidade científica sobre as particularidades deste processo de ajustamento. Recentemente, num estudo longitudinal com pacientes amputados devido a DMT2 e UPD, os resultados sugeriram a necessidade de implementar uma triagem psicológica para o tratamento precoce e eficaz dos sintomas de ansiedade antes da cirurgia, bem como dos sintomas de depressão e de stress traumático após a cirurgia de amputação, aumentando o apoio social ao longo do tempo, a fim de promover o ajustamento psicossocial à amputação (Pedras et al., 2018).
Em suma, a TAPES-R-PT, apesar de ter sido modificada, convergiu com os dados de outras versões internacionais, está adaptada a pacientes amputados que não usam prótese, é de fácil e breve administração, sendo por isso um instrumento útil para a prática clínica mas também para a investigação na população de pacientes com DM, UPD e amputados que não podem usar prótese, no sentido de avaliar e monitorizar o processo de ajustamento à amputação.
Agradecimentos
Os autores agradecem a contribuição dos profissionais de saúde das Consultas Multidisciplinares do Pé Diabético dos seguintes hospitais: CHP, CHSJ, CHVNG/E, CHTS, ULSAM e dos Serviços de Cirurgia Vascular do Hospital de Braga e CHSJ. Os autores agradecem sobretudo aos pacientes que participaram no estudo porque sem a sua colaboração, este estudo não seria possível.
Financiamento
Este estudo foi realizado no Centro de Investigação em Psicologia (PSI/01662), Universidade do Minho, e financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia e pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, através de fundos nacionais e cofinanciado pelo FEDER através do COMPETE2020 no âmbito do Acordo de Parceria PT2020 (POCI-01-0145-FEDER-007653). Este trabalho foi financiado por uma bolsa (SFRH / BD / 87704/2012) da Fundação para a Ciência e Tecnologia.