Nas últimas décadas observa-se no Brasil, país historicamente marcado pelo sexismo, pela misoginia e pelo autoritarismo, aumento considerável de crimes com caráter transfóbico, isto é, aqueles cometidos especificamente contra a comunidade trans - termo êmico para designar transexuais, transgêneros e travestis1 - aumentando os riscos e vulnerabilidades sociais dos pertencentes a essa comunidade (Genevides & Nogueira, 2020). Apesar de a transfobia ser composta em sua maioria por crimes de características extremamente violentas ela reflete em outros âmbitos, tais como nas interações sociais gerais (discriminações, preconceitos e estigmatizações) e nos impedimentos à efetivação de direitos, inclusive na área de saúde. Assim, a comunidade trans não raro tem dificuldades no acesso, na adesão e na permanência no sistema público de saúde brasileiro quando são marginalizados por parte dos próprios profissionais de saúde (Nogueira et al., 2017).
Assim, para que a transfobia - tanto a geral quanto a que ocorre na área de saúde - seja combatida é fundamental a implementação de mecanismos igualitários e democráticos para parte da população que viveu e vive negligenciada. Neste sentido, as principais pautas dos ativismos transexuais brasileiros são o respeito à autodeterminação de identidade de gênero, o reconhecimento e utilização do nome social nos espaços públicos e a integralidade da atenção em saúde não restrita aos procedimentos do processo de redesignação social (Genevides & Nogueira, 2020).
Assim, historicamente, nem os direitos e nem as especificidades de atenção à saúde da comunidade trans no Brasil foram plenamente reconhecidos, resultando no afastamento dessa população do sistema público de saúde que atende a maior parte da população brasileira. Apenas na última década o Governo Federal do Brasil passou a implementar algumas políticas públicas específicas para a comunidade trans conforme recomendações dos Princípios de Yogyakarta (Princípios, 2007) ao estabelecer normas específicas visando a proteção das orientações sexuais e das identidades de gênero2 de pessoas trans em busca da superação de situações de vulnerabilidade e riscos psicossociais e de seus padrões de marginalização, tais como agressões sexuais, torturas e negação de oportunidades de emprego e educação dentre outros (Genevides & Nogueira, 2020). Todavia, nos últimos anos essas políticas públicas têm sido progressivamente desincentivadas (especialmente pelo esvaziamento de conselhos e fóruns de discussão e pelo restrito repasse de recursos públicos para serviços específicos destinados à comunidade trans) devido ao retorno dos tradicionalismos de gêneros e de orientações sexuais heteronormativas adotadas pelo Estado Brasileiro (Birolli, 2018).
Embora na área de saúde parte específica da comunidade trans - as/os transexuais - tenham seus direitos assegurados desde 1997 (Conselho Federal de Medicina, 1997) com a possibilidade de realização da cirurgia de transgenitalização ou de redesignação sexual, apenas em 2008 (Ministério da Saúde do Brasil, 2008) esse procedimento começou a ser realizado no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), ou seja, gratuitamente. Apesar disso, são poucos os serviços de saúde credenciados e autorizados a realizar essa cirurgia no Brasil. Assim, há de se considerar que outro avanço expressivo ocorreu em 2018 quando as/os transexuais obtiveram o direito de alterar seu nome e sexo atribuídos no nascimento nos documentos de identificação sem necessidade de realização prévia da cirurgia de transgenitalização ou após decisão judicial (Superior Tribunal Federal do Brasil, 2018). Essas ações são significativas uma vez que para muitos transexuais a diminuição do sofrimento só se torna possível com modificações corporais ou com mudanças no nome no registro civil (Almeida & Murta, 2013).
Também em 2018 em sua décima primeira edição o Código Internacional de Doenças (CID) da Organização Mundial da Saúde (WHO, 2018) alterou a transexualidade de transtorno de identidade de gênero para condições relacionadas à saúde sexual. A alteração foi uma medida estratégica tanto para garantir atendimento às pessoas transexuais nos serviços públicos de saúde (WHO, 2018) - pois no Brasil as/os transexuais dependem de laudos médicos específicos para terem acesso ao processo transexualizador - quanto para tentar diminuir os estigmas relacionados a essa população. No entanto, mesmo com essa modificação a transexualidade permaneceu num documento de classificação psicopatológica, o que pode reforçar processos de estigmatização e marginalização social dessa comunidade (Genevides & Nogueira, 2020).
Ainda neste sentido, as políticas públicas brasileiras específicas de atenção à saúde para a comunidade trans no geral e para as/os transexuais em específico oferecem serviços e procedimentos na atenção básica (promoção da saúde e prevenção de agravos) e na especializada (atendimentos especializados) à saúde, sendo os mais incentivados o acompanhamento clínico, a hormonioterapia e a cirurgia de transgenitalização para transexuais no SUS (Ministério da Saúde do Brasil, 2013). É preciso destacar que apesar da sua evidente importância a saúde da comunidade trans não se limita ao processo transexualizador (atenção especializada) e engloba a atenção básica/primária em saúde. Portanto, por conta da necessidade de compreender as condições de oferta de atenção em saúde para a comunidade trans e para as/os transexuais por parte dos serviços públicos este artigo teve como objetivo investigar como profissionais de uma equipe multiprofissional de saúde organizam seus conhecimentos e suas práticas nos atendimentos em saúde para transexuais.
Método
O estudo realizado é uma pesquisa empírica, transversal e qualitativa. A investigação foi realizada no Hospital (doravante HC) de uma universidade federal brasileira situado na região do Triângulo Mineiro no Estado de Minas Gerais no Brasil que atende 28 municípios (aproximadamente dois milhões de habitantes), ofertando diversas especialidades clínicas pelo SUS.
Participantes
Foram entrevistados seis profissionais da equipe multiprofissional de saúde do HC responsáveis pelos atendimentos da comunidade trans no geral e das/dos transexuais em específico. O Quadro 1 apresenta as principais características da amostra.
Procedimentos
Foram realizadas entrevistas individuais com duração média de 50 a 60 minutos pautadas em um roteiro semiestruturado com 10 perguntas elaborado pelos próprios pesquisadores. Esse roteiro de perguntas abordava os seguintes temas relacionados aos atendimentos prestados apenas aos transexuais: concepções sobre transexualidade, aspectos legislativos e de direitos das/dos transexuais, ação/capacitação/atualização profissional, organização do serviço e percepções acerca do atendimento ofertado aos transexuais. As entrevistas foram realizadas entre junho e dezembro de 2018 no próprio HC em salas de atuação dos participantes em momentos em que não estavam em atendimentos clínicos após esclarecimentos e assinatura dos termos de consentimento. Cinco entrevistas foram audiogravadas e uma foi registrada em notas de campo pela entrevistadora, pois não foi audiogravada a pedido do participante. Todas as entrevistas foram transcritas na íntegra com auxílio de um programa computacional de edição de textos.
Análise dos dados
Após as transcrições os conteúdos das entrevistas foram organizados segundo as recomendações para a análise de conteúdo temáticas a partir de critérios semânticos (Turato, 2008) - etapas de leituras exaustivas, codificação e categorização, e categorização dos resultados; todas essas etapas foram acompanhadas por um juiz independente. As etapas de codificação e categorização dos conteúdos foram realizadas com suporte do software WebQDA (Souza et al., 2019) sendo que para a codificação foram estabelecidos quatro códigos, a saber: atendimentos (codificados 69 trechos do conjunto de entrevistas referentes aos atendimentos ofertados aos transexuais, separados entre satisfatórios e insatisfatórios), concepções (codificados 20 trechos do conjunto de entrevistas referentes às definições de transexualidade); informações (codificados 20 trechos do conjunto de entrevistas referentes às informações que os profissionais possuíam e ou buscavam sobre transexualidade e direitos das/dos transexuais); busca do serviço de saúde (codificados 5 trechos do conjunto de entrevistas referentes às supostas motivações das/dos transexuais pela busca do serviço de saúde). Após a codificação foram estabelecidas a posteriori quatro categorias temáticas: (1) concepções sobre transexualidade; (2) busca pelo serviço; (3) aspectos positivos e negativos dos atendimentos; (4) informações sobre direitos da comunidade trans e transexual. Para a interpretação dos dados foram mobilizadas produções científicas que pretendem compreender criticamente as estruturas de dominação cisheteronormativas.
Considerações Éticas
A pesquisa foi aprovada pelo comitê de ética de pesquisas da instituição de origem dos pesquisadores (protocolo de aprovação CAAE 79684217.9.0000.5154 disponível na Plataforma Brasil). Todas as recomendações éticas das Resoluções 466/12 e 510/16 do Conselho Nacional de Saúde do Brasil foram observadas.
Resultados
Os participantes são todos profissionais da área da saúde que prestam atendimentos em saúde para a comunidade trans, sendo três médicos (psiquiatra, endocrinologista, urologista), uma psicóloga e duas assistentes sociais. São dois homens e quatro mulheres, todos cisgêneros e heterossexuais, com idade média de 52 anos (41 a 68 anos de idade), com média de tempo de atuação profissional de 25 anos (entre 15 e 40 anos) e com média de atuação na saúde destinada a comunidade trans de aproximadamente 14 anos (entre 9 meses e 33 anos). Trata-se, assim, de uma equipe de profissionais experientes.
Em relação as entrevistas são apresentadas - devido às limitações de espaço - apenas os trechos considerados mais significativos de cada categoria.
Categoria 1 - Concepções sobre transexualidade
Foram codificados 20 trechos das entrevistas para a constituição dessa categoria. A seguir constam alguns dos trechos das entrevistas nos quais os participantes definiram a transexualidade:
P1: Transexual é alguém que de fato se situa é... no gênero psíquico né... é... no gênero sexual identidade, vamos dizer assim, toda, é... principalmente psíquico que entra em conflito com aquela... do... é genótipo, né, características sexuais secundárias
P2: Quando ela nasce com um sexo e não se identifica com aquele sexo que ela nasceu e deseja mudança de identidade em todos os sentidos. Não é só a mudança do nome como eles estão conseguindo agora... como a sua mudança, a sua imagem corporal
P3: Uma pessoa transexual é uma pessoa que não é... que não é daquele sexo, que ela se mostra e geralmente relaciono isso a como ela se identifica (...) a questão da identidade, eu olho pra ela e vejo ela naquele sexo, naquela orientação e penso que é um transexual
P3: O transexual ele não se vê no corpo dele (...) eles não se sentem dentro do corpo físico deles, o corpo mental não é o corpo físico
P3: O cérebro é de outro sexo
P4: Não sei se tem diferença. Assim pra mim... assim ela é uma pessoa como outra. Eu não consigo, é falar assim, é transexual é isso, isso e isso. Porque eu teria que falar que uma mulher é isso, isso e isso. Um homem é isso, isso e isso
P6: A pessoa que não aceita o corpo que veio para ela
Categoria 2 - Busca pelo serviço de saúde
Foram codificados 5 trechos do conjunto das entrevistas para a constituição dessa categoria que versa sobre as alegações que os participantes têm a respeito das razões e motivações das/dos transexuais quando buscam pelo serviço de saúde, bem como as possibilidades de prestação de serviço:
P1: Esses casos têm chegado muito por algumas buscas muitas vezes pessoais... Algumas pessoas transexuais que têm... acho que compartilhado a informação, de alguma disponibilidade
P3: Olha, devagar, vamos olhar se é isso mesmo, se eu não tiver seu documento eu não posso fazer a sua cirurgia, eu não posso fazer nada, eu tenho que ter uma comprovação de que a sua cabeça realmente é de um outro sexo. Preciso muito do psiquiatra e do psicólogo para acompanhar
P4: Essa demanda ela é muitas vezes... é a própria pessoa que vai em busca desses profissionais. Que fica tentando achar a solução, né, entre aspas das suas questões
P5: Acabam alguns de nós se tornando referência para esse público. Eu acho que eles informam de uns para os outros e acaba vindo procurar ‘eu quero falar com fulano’, pois eu percebo muita dificuldade por parte das pessoas quando eu trago esses assuntos
P5: Eu não vejo a instituição se organizando nesse sentido não. Ela é tratada como qualquer indivíduo, cidadão. Só que quando eu falo é tratado como qualquer... quando ele apresenta especificidade da questão da transexualidade, aí começa a aparecer às dificuldades por parte de quem atende
Categoria 3 - Aspectos positivos e negativos dos atendimentos
Foram codificados 69 trechos das entrevistas para a constituição dessa categoria que diz respeito sobre quais atendimentos em saúde são ofertados aos transexuais e, por vezes, se são qualificados como satisfatórios ou insatisfatórios pelos participantes:
P1: Ação com o pessoal da endocrinologia... Alguns colaboradores na psicologia, né. É da urologia, certo. Há a cirurgia plástica e a ginecologia atualmente... da psiquiatria e do serviço social
P1: Não, e nós não estamos estruturados exatamente né, formalmente né, como uma equipe que atenda. Então tem sido um trabalho, vamos dizer assim, bem incipiente mesmo, de colaboradores nessas especialidades
P1: Uma estruturação, no sentido de... é formalizar melhor esses atendimentos, criar uma rotina mais bem definida né, de acolhimento e de comunicação entre os membros da equipe e dos profissionais
P2: Os profissionais que realizam os atendimentos são endócrino [sic.], psiquiatra e eu. Por enquanto, porque a equipe não está formada ainda com o ginecologista. É, tem a [cirurgiã] plástica também
P2: Eles [as/os transexuais] ficam desorientados dentro da instituição sem saber a quem se dirigir para marcar consultas e exames... eles ficam perdidos. Onde que é. Onde que vai. Eu vou marcar aonde. E chegam lá embaixo no guichê. Não, eles não sabem. Eles não têm essa, esse treinamento... até a recepção desses pacientes
P2: Eu procuro ser o mais profissional possível, separando a parte pessoal da profissional. Apesar de que eu penso que cada um tem seu direito a suas escolhas, é sem preconceitos, sem julgamentos, sem críticas. Quem sou eu para julgar e criticar alguém. Só Deus realmente. Na minha visão é essa. Porque, sem misturar as coisas, eu não misturo, mas eu sou católica, então Deus que está, seja ele qual for
P3: Tem a psicóloga e psiquiatra. E dentro do nosso grupo ainda participa o urologista, ginecologista. É temos também a parte da cirurgia plástica. E temos também o otorrino no caso de precisar fazer a parte de voz. Então por enquanto... ainda nós temos.... ainda aguardando a parte de assistência social, que a gente ainda não tem uma certinha. A parte de... é direito né de, de, [pausa] como é que fala, para orientação de advogado
P4: Nós temos profissionais, é de forma isolada, que presta esse atendimento. Então nós temos uma endócrino [sic.], nós temos é uma psicóloga, nós temos um urologista. É eu prestava esse atendimento como assistente social... hoje eu não estou mais atuando. Mas tem a outra assistente social que atende
P4: A demanda ela, ela chega, é atendida de forma pontual. Não existe é um ambulatório é... específico. Dizer que existe um fluxo, existe uma organização do serviço no sentido de atender a demanda... eu acredito que não, ainda não
P4: Se a gente não tiver um processo de organização do serviço né, é... se a gente continuar como nós estamos hoje dependendo de boa vontade de alguns profissionais em acolher essa demanda
P5: Temos pessoas interessadas de alguma forma ter contato com esse público, mas não existe uma equipe
P6: Médicos urologista, ginecologias, endocrinologistas, psiquiatras e psicólogos
Categoria 4 - Informações sobre direitos da população transexual
Foram codificados 20 trechos das entrevistas para constituir essa categoria que diz respeito ao fato de os participantes conhecerem (e como obtiveram esse conhecimento) os direitos das/dos transexuais:
P1: Eu não sei exatamente dizer o caminho com que cada um... é conseguiu fazer valer esse direito, mas a gente tem tido, na maioria das vezes uma referência a esses clientes, até com o nome social
P1: Basicamente através de noções básicas assim de leitura na própria psiquiatria e de alguma busca pessoal mesmo. De algum interesse mesmo pessoal, de algum trabalho
P2: No nosso trabalho dentro do hospital de saúde pública e estudando, aprofundando os estudos mais autodidatas e também o trabalho da saúde pública que você encontra
P3: Sim. Nós já temos vários que já usam o nome social, mesmo sem ter trocado ainda no documento oficial
P4: Se o nome social é respeitado dentro dessa unidade? Olha é... existe muitas discussões a respeito da... do nome social
P4: Eu tomei contato a partir da demanda que começou a chegar no ambulatório... transexuais buscavam o atendimento principalmente na perspectiva da cirurgia. Não tinha muito conhecimento a respeito da demanda é da população transexual. Principalmente por pesquisa em internet. É fui buscar a legislação do ministério da saúde em relação a atendimento. E artigos [científicos] sobre a população
P4: Eu acredito que a gente ainda tem muito o que debater a respeito desse tema, como eu falei... a gente embora nós estejamos num hospital universitário, nós discutimos muito pouco essa questão (...) eu acho que a gente precisa ter muito capacitação ainda, muita discussão, muita reflexão. Essa questão vai ter que entrar inclusive na discussão na organização desse serviço que sinceramente eu espero que ocorra em breve
P5: Hoje o nome social é mais aceito porque tem a legislação e porque hoje está bastante divulgado em relação ao passado quando ela surgiu
P5: Me fortalece é por meio da leitura ou acesso a site. A própria mídia, mais a televisão porque tem alguns canais que tratam de assuntos como esse. Quanto mais contato a gente tem com essa temática, mais a gente percebe que a gente precisa é conhecer, estudar
P4: Nós não temos as discussões especificas a respeito da transexualidade... eu acho... isso falta muito. O preparo... não conseguimos nos organizar no sentido de estudar, no sentido de refletir, de pensar essa política.
Discussão
Em relação à primeira categoria - definições e compreensões da transexualidade pelos participantes - foi possível observar a ênfase atribuída à disparidade entre a materialidade do corpo e o autorreconhecimento subjetivo das/dos transexuais. Essa definição vai ao encontro do argumento de que a/o transexual é “alguém [que] tem ‘identidade’ que não combina com a sua genitália, ou seja, com seu corpo. Nesse caso, temos um corpo ‘sadio’, salubre, higiênico, em uma ‘identidade’ que adoece por não ‘se encaixar’ nesse corpo’” (Méllo, 2012, p.203). Ainda neste sentido tornar-se visível “a influência material da tecnologia médica, não apenas na construção da categoria gênero, mas também no raciocínio que permite conceber um sistema de coerência e incoerência entre sexo e gênero” (Arán, & Murta, 2009, p.28).
Assim como a cisgeneridade a transgeneridade - e, no caso, a transexualidade - é uma das muitas expressões identitárias que surgem como respostas a um sistema normatizador que a partir das estruturas corporais produz sujeitos considerados normais (cisgêneros) ou anormais (transgêneros), nesses últimos incluindo os considerados portadores de uma psicopatologia com necessidade de atenção especializada (transexuais) (Bento, 2012). Todavia, Butler (2018) argumenta que as/os transexuais por serem uma das respostas possíveis às relações entre sexo e gênero “estão reivindicando reconhecimento e valorização, estão exercitando o direito de aparecer, de exercitar a liberdade, e estão reivindicando uma vida que possa ser vivida” (p.33). Justamente por isso uma das ênfases das lutas políticas das/dos transexuais é o reconhecimento da autodeterminação da identidade de gênero e (o direito de) viver - do que acarretou a proposta de alteração do CID-11 pela WHO que se por um lado questionou a patologização da identidade transexual ainda a considera uma condição médica carente de cuidados especializados.
Neste sentido, conforme Louro (2015) argumenta deve-se “desconstruir o processo pelo qual alguns sujeitos se tornam normalizados e outros marginalizados, tornando evidente a heteronormatividade, demonstrando o quanto é necessária a constante reiteração das normas sociais regulatórias, a fim de garantir a identidade sexual legitimada” (p.50). Neste mesmo sentido Butler (2016) argumenta que a identidade de gênero é uma forma de regulação social - “uma performance com consequências claramente punitivas” (p.241) - pois habitualmente são punidos os que não desempenham o que se considera correto para seu gênero, isto é, os cisgêneros.
Considerando a Resolução do Conselho Federal de Medicina (Conselho Federal de Medicina, 1997) que instituiu a necessidade de acompanhamento psiquiátrico por no mínimo dois anos para emissão de laudo diagnóstico indicativo de cirurgia de transgenitalização, avaliar a transexualidade como psicopatologia ou como condição médica significa considerar essa experiência identitária de gênero como patológica ou desviante (Bento, 2012). Segundo Butler (2014, 2016) o gênero é um efeito substantivo da performatividade que é produzida e imposta pelas práticas reguladoras em um processo tornar as pessoas normais (cisgêneras) e, com isso o “gênero é o aparato pelo qual a produção e a normalização do masculino e do feminino se manifestam junto com as formas intersticiais, hormonais, cromossômicas, físicas e performativas que o gênero assume” (p.253).
Por fim, “os trânsitos entre os gêneros nas sociedades ocidentais passaram a ser interpretados como uma doença” (Bento, 2012, p.18). Portanto, ao incluir as/os transexuais na categoria dos transtornos da personalidade e do comportamento do adulto (Capítulo V - Transtornos mentais e comportamentais; WHO, 2018) há a relação, conforme fizeram os participantes, entre transexualidade e transtornos da identidade sexual, e não como possibilidade de identidades de gênero. Por isso os participantes destacaram a transexualidade como um regime de não-aceitação ou de deslocamento da imagem corporal.
No que se refere à segunda categoria - atribuições se sentidos dos participantes sobre as motivações das/dos transexuais quando buscam os serviços de saúde - ressalta-se que o HC cenário desta pesquisa não possuía no momento da coleta dos dados da pesquisa ações e espaços específicos para os atendimentos da comunidade trans, sendo eles atendidos junto à população geral que procurava por atendimentos em saúde. Pode-se identificar nas entrevistas que as/os transexuais chegavam aos serviços e aos profissionais após obterem informações com outros usuários transexuais anteriormente atendidos por algum desses participantes, e não porque existia algum serviço especializado para suas necessidades e demandas. Entretanto, os participantes não esclareceram nem a frequência e tampouco a adesão das/dos transexuais a esses atendimentos.
Os participantes relataram que o principal motivo de procura das/dos transexuais pelos atendimentos em saúde era a cirurgia de redesignação sexual. A cirurgia de transgenitalização ou de redesignação sexual é uma “possibilidade concreta de se reconhecer no corpo, de agregar humanidade a corpos que são interpretados como impossíveis de existirem pelas normas de gênero” (Bento, 2012, p. 64). Além disso, “as narrativas das pessoas transexuais nos remetem para um mundo de dúvidas, angústias, solidão e medo constante de serem rejeitados” (Bento, 2012, p.23) - fato este reiterado pelos participantes. A cirurgia, portanto, seria uma das maneiras de corrigir e sanar os sofrimentos pessoais causados por questões sociais.
A pressão pela realização da cirurgia de redesignação sexual pode ser compreendida como um ato performativo de adaptação e de sobrevivência de comunidades altamente marginalizadas (Butler, 2018). Segunda a autora, quem não consegue trilhar sua identidade dentro dos limites das normas que governam o binarismo corpo-gênero fica no limite exterior de uma condição de reconhecimento - como é o caso das/dos transexuais que por romperem com essas normas acabam buscando esse reconhecimento através da medicina na tentativa de promoverem a adequação entre corpo e subjetividade, além de tentar com isso diminuir as estigmatizações e violências que sofrem.
Os relatos dos participantes não confirmaram a existência de uma rede de atendimentos mais ampla e inclusiva daquele serviço de modo a acolher e atender as múltiplas demandas de saúde da comunidade trans e da população transexual, pois elas não se resumem ao processo transexualizador e a realização da cirurgia de redesignação sexual (Almeida & Murta, 2013; Rocon et al., 2018). Assim, os participantes destacaram a necessidade de discutir a integralidade da saúde das/dos transexuais e não apenas a demanda pela cirurgia de redesignação sexual, incluindo dentre outros a atenção em saúde mental e saúde coletiva.
Por isso, ficou evidente que a rede de informações e de indicações visando a prestação de serviços da equipe para o atendimento especializado a comunidade trans e aos transexuais é estabelecida e fomentada basicamente pelos sujeitos transexuais ao indicar os serviços entre seus pares, e não em decorrência de ações institucionalmente organizadas.
Em relação à terceira categoria - pertinente aos atendimentos ofertados aos transexuais, por vezes qualificados como satisfatórios e insatisfatórios pelos participantes - os participantes destacaram o fato de que existe uma série de atendimentos ofertados a comunidade trans e aos transexuais, todavia sem que ocorram em espaços específicos ou que observem rotinas e fluxos de encaminhamentos consolidados institucionalmente. Apesar dos entraves os participantes, no geral, avaliaram positivamente esses atendimentos.
Embora cinco participantes tenham referido uma oferta - dispersa - de atendimento em saúde não houve consenso sobre quais seriam esses profissionais e suas exatas rotinas e responsabilidades, ao ponto de um dos participantes desconhecer as funções das assistentes sociais. Apesar disso, a Portaria nº 2.803 (Ministério da Saúde do Brasil, 2013) estabeleceu diretrizes para a assistência aos usuários do SUS com demanda do processo transexualizador. Uma dessas diretrizes é a integralidade da atenção básica e (não somente da) especializada para a comunidade trans, não restringindo a atenção em saúde às cirurgias de transgenitalização. O SUS estabeleceu o princípio da integralidade considerando a totalidade das pessoas em suas necessidades específicas (Ministério da Saúde do Brasil, 2019), além de integração da promoção da saúde com a prevenção de doenças e com os tratamentos de reabilitação.
Mas alguns aspectos dos atendimentos foram considerados insatisfatórios pelos participantes, especialmente a ausência de uma equipe multiprofissional e de um ambulatório (espaço físico) específico para os atendimentos da comunidade trans. Para eles essas ausências causam impactos no atendimento aos transexuais reiterando suas vulnerabilidades e dificultando a inclusão social (Arán, & Murta, 2009). Assim, os depoimentos dos participantes ao considerarem por vezes insatisfatórios os atendimentos ofertados tanto por eles como por parte dos colaboradores que realizam agendamentos das consultas impactam as condições de saúde das/dos transexuais que se sentem desorientados dentro da instituição, sem saber a quem se dirigir para marcar consultas e exames. A solução desses impasses seria a formalização das rotinas e dos fluxos de atendimentos.
Arán e Murta (2009) e Mello et al. (2011) afirmam que um dos principais desafios para implementação da integralidade da atenção em saúde aos transexuais é a baixa capacitação profissional da equipe - isto é, a pouca ou inexistente capacitação profissional sobre o tema. Assim, são necessárias medidas de incremento de informações visando a humanização que garantam atendimentos de qualidade não-discriminatórios, pois mesmo que essas temáticas constem nos planos, programas e demais documentos que apresentam diretrizes, objetivos e metas para as políticas públicas de saúde formuladas para esses segmentos elas não se concretizam nas práticas, comprometendo a integralidade da atenção à saúde (Rocon et al., 2018).
Por fim, a última categoria - sobre o conhecimento dos direitos da comunidade trans e das/dos transexuais - os participantes foram unânimes ao informar que conheciam especialmente o decreto sobre o uso do nome social (Casa Civil, 2016). A utilização do nome social encontra-se prevista desde 2006 na “Carta dos Direitos dos Usuários da Saúde que consolida os direitos e deveres do exercício da cidadania na saúde em todo o País” (Ministério da Saúde do Brasil, 2006) que obriga que nos documentos de identificação do usuário deve haver espaço para registrar o nome pelo qual ele prefere ser chamado independentemente daquele que constou no registro civil. Mesmo assim o uso e respeito ao nome social é tema de discussões pelos profissionais daquela equipe multiprofissional em saúde e pelos demais colaboradores daquela instituição, pois muitos continuam a se referir aos usuários da comunidade trans pelo nome do registro civil. A utilização e respeito ao nome social ao invés de ser um preciosismo deve ser compreendido como uma ação política de reconhecimento subjetivo e social da maior relevância, pois “não são apenas o gênero e a sexualidade que são em algum sentido performativos, mas também suas articulações políticas e as reivindicações feitas em seu nome” (Butler, 2018, p.64).
Em relação aos meios empregados para conhecerem as leis, normativas e regulamentos e as especificidades próprias aos atendimentos da comunidade trans e das/dos transexuais alguns participantes relataram que buscaram essas informações na internet e somente após demandas reais de atendimentos por parte da população transexual. Isto é, a capacitação profissional sobre o tema não é organizada pela instituição cenário desta pesquisa, apesar de prestar atenção em saúde à comunidade trans. Por isso, alguns participantes relataram a importância de se estruturar um ambulatório específico sobre transgeneridades que observe as legislações, fluxos e rotinas vigentes estabelecidos pelo SUS brasileiro.
O único espaço relatado pelos participantes para debaterem questões relacionadas à atenção em saúde da comunidade trans era o grupo institucional de discussão dos casos clínicos. Todavia, esses encontros se destinavam a discutir todas as demandas e casos considerados urgentes pelo HC e não apenas a saúde da comunidade trans. De acordo com Rocon et al. (2018) há a necessidade de os profissionais serem plenamente capacitados e, assim, respeitarem as demandas e particularidades dos transexuais ofertando acolhimento e tratamento humanizado, eliminando discriminações e preconceitos - o que facilitaria o acesso e a adesão desse segmento populacional aos serviços de saúde. Em suma, o conjunto de entrevistas permitiu identificar dificuldades na prestação de atenção em saúde das/dos transexuais, além das dificuldades em estabelecer rotinas e encaminhamentos específicos ao acolhimento e ao atendimento integral.
O conjunto dos resultados desta pesquisa permitiu compreender como os atendimentos e as demandas das/dos transexuais estavam sendo enfrentadas naquele cenário, especialmente seus entraves (inexistência de um fluxo definido de atendimentos; inexistência de um ambulatório específico para transexuais em conformidade com a legislação vigente) que dificultam responde-las de forma apropriada. Também foi destacado que muitos transexuais procuram o serviço por iniciativa própria ou por indicação de outro transexual que conhecia aquela unidade de saúde. Os participantes também relataram existir pouca mobilização institucional para ações de atualizações e capacitações profissionais sobre o tema e que obtinham e obtiveram informações sobre a temática a partir das demandas dos próprios atendimentos.
O fato de o cenário de pesquisa no momento de coleta de dados (maio a dezembro de 2018) não possuir ambulatório credenciado pelo SUS para realização de todas as etapas do processo transexualizador - podendo realizar apenas os procedimentos ambulatoriais clínicos (exames diversos e atendimentos psiquiátricos, psicológicos, fonoaudiológicos, endocrinológicos, urológicos e ginecológicos), mas não os cirúrgicos (de redesignação sexual) - certamente é o maior obstáculo para a integralidade em saúde dos usuários transexuais haja vista que a cirurgia de transgenitalização era a demanda mais requerida. De toda forma, há de se reconhecer que mesmo diante de tantas adversidades havia um trabalho incipiente voltado para o enfrentamento das vulnerabilidades e dos riscos psicossociais da comunidade trans atendida.
Essa pesquisa possui algumas limitações, dentre as quais se destacam o tamanho reduzido da amostra e o fato de que apenas um contexto (HC, serviço de atenção especializada em saúde) foi investigado - investigar o mesmo fenômeno, mas em dispositivos de atenção primária em saúde poderia enriquecer a compreensão sobre o tema. Ademais, outras investigações que abordem essa temática e que incluam outros profissionais e colaboradores dessa e de outras instituições - além de investigações com participantes transgêneros e/ou transexuais usuários dos dispositivos de saúde - podem auxiliar na luta pela integralidade e humanização da atenção à saúde brasileira como um todo.
Mesmo diante dessas limitações os resultados dessa pesquisa podem ser contributivos para a melhora da oferta da atenção saúde para a comunidade trans em geral e para as/os transexuais em específico naquele cenário que, como referido, é serviço de referência para a população daquela macrorregião. Os resultados também podem potencialmente contribuir para estimular que naquela instituição discriminações transfóbicas ocorram com menor frequência. Por fim, os resultados podem contribuir para estimular tanto o protagonismo transgênero e transexual local - ao incentivar a integralidade da atenção em saúde na rede pública - quanto os ativismos transgêneros brasileiros - ao reforçar o fato de que eles também são sujeitos de direitos e cidadãos brasileiros independentemente de suas identidades de gênero e/ou orientações sexuais.