A profissão de Enfermagem está classificada como uma profissão emocional e fisicamente desgastante, devido à sua proximidade com os doentes, à natureza específica de seus cuidados e às próprias características de seu ambiente de trabalho e de sua organização (Hersch et al., 2016; Seabra et al., 2019). De facto, os enfermeiros são a classe profissional que mais tempo passa no cuidado aos seus doentes e, por isso, mais expostos a um grande número de riscos, nomeadamente, o trabalho por turnos, longas jornadas de trabalho (Machado et al., 2018; Silva et al., 2017), ter que gerir as necessidades emocionais do doente e da família (Areces & García, 2017; Justo-Henriques, 2020; Ko & Kiser-Larson, 2016; Oliveira et al., 2014; Souza et al., 2017; Starc, 2018; Srinivasan & Samuel, 2014).
Esta atividade profissional torna-se desgastante, não só pela carga de trabalho, como também pelas características das tarefas associadas, muitas vezes agravada por condições sofríveis de recursos materiais e humanos com que são confrontados, muito aquém do necessário para a prestação de uma assistência efetiva e eficaz (Stumm et al., 2008).
Assim os fatores psicossociais de risco identificados como críticos e graves, no contexto de trabalho dos enfermeiros (Cargnin et al., 2019), estão, frequentemente, associados a condições de trabalho e alterações organizacionais e à insuficiente gestão de recursos (Gonçalves et al., 2018) que apresentam risco de adoecimento psíquico ou físico (Moreira et al., 2017).
Estudos epidemiológicos evidenciam um modelo multifatorial de risco para o desenvolvimento de lesões músculo-esqueléticas relacionadas com o trabalho (LMERT), nomeadamente, fatores profissionais, organizacionais, biomecânicos e psicossociais (Barros, 2017; Jerónimo & Cruz, 2014, Oliveira & Almeida, 2017).
São diversos os estudos, efetuados a nível nacional e internacional, realizados no âmbito hospitalar ao longo dos últimos anos, que comprovam que a enfermagem é das profissões mais afetadas pelas lesões músculo-esqueléticas relacionadas com o trabalho (Cargnin et al., 2019; Freimann et al., 2016).
O ritmo intenso de trabalho, com elevada exigência de produtividade e monotonia das tarefas, a intensificação do ritmo de trabalho, devido à sobrecarga de atividades que pode levar o enfermeiro à adoção de posturas inadequadas (Castelôa et al., 2019) o contacto constante com a morte, com o sofrimento e a ansiedade daí decorrentes, a sobrecarga do trabalho, associado à pressão do tempo e o trabalho por turnos (Jerónimo & Cruz, 2014) e as atividades associadas à preparação e administração de medicamentos, ao trabalho estático e as posturas são fatores de risco a que os enfermeiros estão expostos durante o exercício da profissão identificados com o risco de desenvolvimento de lesões músculo-esqueléticas.
Método
Participantes
Participaram no presente estudo, 105 enfermeiros que exercem a profissão em hospitais públicos e privados no norte do país. A amostra é maioritariamente do sexo feminino, sendo 84,8% do sexo feminino e 15,2 % do sexo masculino, com idades compreendidas entre os 24 e os 57 anos de idade (M=37,52; DP=8,69). Dos 105 enfermeiros que participaram neste estudo, 58,1% eram casados ou viviam em união de facto e 39,0% não tinham filhos. No que se refere aos anos de experiência profissional, representam uma amplitude considerável, desde os que trabalham apenas há um ano até aos que trabalham há 35 anos (M=11,22; DP = 8,59). Relativamente ao tipo de contrato, 91,4 % dos participantes trabalham em regime de contrato efetivo ou sem termo. Em termos e horário de trabalho, 95,2 % têm horário de trabalho a tempo inteiro, 75% trabalham em turnos rotativos e 64,8 % trabalham ao fim-de-semana.
Material
O inquérito utilizado neste estudo, Inquérito de Saúde e Trabalho - INSAT, foi desenvolvido para analisar a relação entre condições de trabalho e saúde e bem-estar. O Inquérito INSAT é um questionário autopreenchimento organizado que avalia as condições de trabalho, saúde e bem-estar, e a relação entre eles. Sete os eixos estruturam este inquérito que contemplam, na sua maioria, escalas de Likert: (I) O trabalho; (II) Condições de trabalho e fatores de risco; (III) Condições de vida fora do trabalho; (IV) Formação e trabalho; (V) Saúde e trabalho; (VI) A minha saúde e o meu trabalho; e (VII) A minha saúde e o meu bem-estar. Tendo presente o objetivo deste estudo, foi utilizada a subescala dos fatores psicossociais do trabalho: ritmo e intensidade de trabalho; falta de autonomia; relações de trabalho com colegas de trabalho; relações de emprego com a organização; exigências emocionais; conflitos éticos e de valores; e as características do trabalho. O INSAT foi validado para a população portuguesa através do Modelo de Rasch e Crédito Parcial (PCM) tendo sido obtido um valor considerado muito bom (> 0,8) (medida semelhante ao alfa de Cronbach em definição e valor) (Barros et al., 2017).
Procedimento
Após aprovação do estudo pela Comissão de Ética da Universidade Fernando Pessoa, os profissionais foram convidados a participar voluntariamente. A recolha de dados foi efetuada através da técnica snowball. Tratando-se de um questionário anónimo, confidencial e voluntário, foi solicitada a assinatura dos formulários de consentimento informado, após a qual foram guardados num envelope previamente definido e devidamente identificado para o efeito e os instrumentos foram entregues em envelopes individuais que, foram devolvidos devidamente fechados pelos participantes, após preenchimento.
Os dados foram analisados com o apoio do programa estatístico SPSS for Windows, versão 22.0. O nível de significância adotado foi p≤0,05. Foram realizadas análises de frequências e percentagens sobre características demográficas dos participantes (variáveis nominais do questionário INSAT - fatores psicossociais). Seguidamente e para analisar as associações entre fatores de risco e lesões músculo-esquelética, todas as variáveis foram transformadas em variáveis nominais (não - 0, sim - 1) e integradas numa análise de regressão logística bivariada (Método Enter). As equações de regressão do estudo satisfizeram todas as hipóteses, e os resultados da análise de regressão obtidos foram considerados confiáveis.
Resultados
Análise descritiva
A análise descritiva do INSAT, apresentada no quadro 1, mostra a distribuição de frequência das respostas “sim” aos fatores psicossociais do trabalho que têm impacto significativo no exercício profissional dos enfermeiros.
Associações e preditores das lesões músculo-esqueléticas em função dos fatores psicossociais do trabalho
Os fatores psicossociais do trabalho foram associados às dimensões das lesões músculo-esqueléticas, tendo-se identificado relações significativas com os fatores psicossociais (cf quadro 2)
Da análise multifatorial existem dois fatores-chave que aumentaram significativamente a perceção de dores musculares e articulares. O fator “Estou exposto a instruções contraditórias” aumentou mais de vinte vezes (20,743; IC 95% 3,447-124,818) e o fator “Estou expostos a depender de clientes” que aumentou quase quarenta vezes (39,948; IC 95% 3,551-449,365) a perceção de dores musculares e articulares. Outros fatores de risco também revelaram associações importantes: “Estou exposto a ter que simular boa disposição” aumentou mais de sete vezes a perceção de dores musculares e articulares (7,359; IC 95% 1,862-29,080), “Estou exposto a ultrapassar a hora normal de trabalho” que aumentou quase cinco vezes (4,822; IC 95% 0,979-23,743) a perceção de dores musculares.
Discussão
Neste estudo foram evidenciadas relações entre a exposição a fatores psicossociais de risco e o desenvolvimento de lesões músculo-esqueléticas. Sendo um tema já debatido, só nos últimos anos se verificou um maior interesse nesta área e na análise dos efeitos negativos dos riscos psicossociais.
Uma das maiores queixas dos profissionais de saúde, nomeadamente dos enfermeiros, está relacionada com a um número excessivo de doentes atribuídos a cada profissional, aumentando a sobrecarga física e mental, o que obriga a um ritmo intenso no trabalho, agravadas pela hipersolicitação e pelas instruções pouco claras, e o tempo insuficiente para o cumprimento da tarefa (Gonçalves et al., 2018).
A tensão com o público é caracterizada como uma das consequências do atendimento ao público destes profissionais que, além de terem de lidar com situações de doentes graves ou até mesmo com os seus familiares e histórias de vida e doença bastante complexas, também são confrontados com queixas e reclamações do público, com as quais nem sempre é fácil de lidar (Furtado & Júnior, 2010; Serranheira et al., 2012).
Além destes fatores, à falta de meios e recursos para realizar um trabalho de qualidade, agravam as condições de trabalho, tornando-as desgastantes, física e emocionalmente, e mais propícia a desencadear de problemas de saúde física e mental (Castelôa et al., 2019; Silva et al., 2015; Silva et al., 2018).
Trata-se, portanto, de um conjunto de fatores psicossociais de risco que têm consequências ao nível do desgaste físico e mental em enfermeiros e, mais concretamente, no desenvolvimento de perturbações músculo-esqueléticas (Attar, 2014; Oliveira & Almeida, 2017; Soylar & Ozer, 2018).
A investigação nesta área revela-se fundamental para a compreensão dos riscos psicossociais que afetam os profissionais de enfermagem e avaliação das relações menos visíveis e menos óbvias entre o trabalho e a saúde. De facto, a melhor compreensão dos fatores de risco permite o desenvolvimento de práticas de intervenção, quer no plano individual, quer no plano organizacional de forma a prevenir e a promover a saúde e o bem-estar no trabalho.