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Psicologia, Saúde & Doenças

versão impressa ISSN 1645-0086

Psic., Saúde & Doenças vol.22 no.3 Lisboa dez. 2021  Epub 31-Dez-2021

https://doi.org/10.15309/21psd220302 

Artigos

Vivências de profissionais de saúde durante a primeira vaga COVID-19

Health professionals lived experienced during the first wave of COVID-19

Ricardo Ferreira1  2 
http://orcid.org/0000-0002-2517-0247

Andréa Marques1  2  3 
http://orcid.org/0000-0002-2026-9926

Mariana Marques4  5 
http://orcid.org/0000-0002-7856-280X

Sofia Meneses4 
http://orcid.org/0000-0002-6643-355X

Georgina Pimentel1 
http://orcid.org/0000-0001-5467-3399

Rui Gonçalves3  6 
http://orcid.org/0000-0002-7086-1776

Luís Loureiro3  6 
http://orcid.org/0000-0002-2384-6266

António Marques1  2 

1Serviço de Reumatologia, Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, Coimbra, Portugal, rferreira@reumahuc.org, 14389@chuc.min-saude.pt, 22899@chuc.min-saude.pt, amarques@chuc.min-saude.pt

2Núcleo de Investigação em Enfermagem Núcleo CHUC da Unidade de Investigação em Ciências da Saúde: Enfermagem (UICiSA:E), Escola Superior de Enfermagem de Coimbra, Coimbra, Portugal

3Escola Superior de Enfermagem de Coimbra, Coimbra, Portugal, rgoncalves@esenfc.pt, luisloureiro@esenfc.pt

4Unidade de Psicologia Clínica - Consulta Externa, Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, Coimbra, Portugal, 14363@chuc.min-saude.pt, msofiameneses@hotmail.com

5Serviço de Psicologia Médica (SPM), Coimbra, Portugal

6Unidade de Investigação em Ciências da Saúde: Enfermagem (UICiSA:E), Escola Superior de Enfermagem de Coimbra, Coimbra, Portugal


Resumo

A pandemia COVID-19 impôs aos profissionais de saúde (PS) uma sobrecarga inédita, mas existe pouca evidência sobre o seu impacto no contexto profissional do cuidar e nas suas vidas. Este estudo teve como objetivo descrever as vivências dos PS infetados com COVID-19 ou que tiveram contactos de alto risco durante a atividade profissional. Realizou-se um estudo qualitativo fenomenológico, com entrevistas semiestruturadas, individualizadas, a enfermeiros, médicos e assistentes operacionais, de um hospital universitário da região centro de Portugal. Participaram 23 PS (15 enfermeiros; 10 COVID+). Emergiram três temas centrais - Pessoa, Hospital, Sociedade - e cinco subtemas - “Eu” (pessoa/profissional), “Eu e os Outros” (doentes/familiares), “Eu e os Outros como Eu” (equipa), “Eu e os Meus” (família), e “Liderança/Gestão”. Descrevem-se alterações emocionais, adaptações no cuidar e na comunicação, o impacto do isolamento/separação e dos mass media. Pesaram particularmente as dificuldades em ser “testado” e saber os resultados, o sentimento de apoio ou de desamparo institucional e de estigma na comunidade. Conclui-se que o conhecimento das alterações emocionais, físicas, socio-relacionais e do cuidar, descritas por estes PS, pode facilitar o processo adaptativo do sistema, garantindo um apoio mais efetivo aos PS e, consequentemente, assegurando melhores cuidados de saúde, doravante.

Palavras-Chave: Profissionais de saúde; COVID-19; Eventos de Vida; Pandemia; Empatia

Abstract

The pandemic COVID-19 imposed an unprecedented burden on health professionals (HP), but there is little evidence about its impact on the professional context of care and on their lives. This study aimed to describe the HP’s experiences infected with COVID-19 or who had high-risk contacts during their professional activity. We performed a qualitative phenomenological study. Semi-structured, individual interviews were conducted with nurses, doctors, and operational assistants, from a university hospital at the central region in Portugal. A total of 23 PS participated (15 nurses; 10 COVID+). Three central themes emerged - Person, Hospital, Society - and five sub-themes: “Me” (person/professional), “Me and the Others” (patients/families), “Me and Others like Me” (team), “Me and Mine” (family), and “Leadership/Management”. Emotional changes, adaptations to care and communication, the impact of isolation/separation and mass media are described. The difficulties in being “tested” and knowing the results, the feeling of institutional helplessness and stigma in the community were also a burden. We concluded that the knowledge of emotional, physical, socio-relational and care changes, described by these HP, can facilitate the adaptive process of the system and health care, ensuring effective support for PS and, consequently, ensuring the best health care, from now on.

Keywords: Health Personel; COVID-19; Life change events; Pandemics; Empathy

A crise global espoletada em início de 2020 pela disseminação galopante do vírus SARS-CoV-2 e pela grave Pandemia de doença COVID-19 continua a evoluir e a afetar o nosso quotidiano. Milhões de vidas foram perdidas, o desemprego galopa, o impacto económico é ainda difícil de avaliar e antecipam-se desafios sem precedentes na história moderna (Gates, 2020), nomeadamente ao nível das respostas dos sistemas de saúde, em geral, e da saúde mental em particular. Disse-se que “não haverá mais normal”, o que parece ser uma afirmação demasiado forte e que, esperamos, não corresponda à verdade, até pela enorme capacidade de adaptação do Ser Humano e das Comunidades.

Um dos aspetos centrais para o futuro é a forma como as equipas de saúde irão superar e reajustar-se a este desafio sem precedentes. De que forma as suas vivências os marcarão? Como se irão reorganizar em termos de trabalho? Que novos processos de trabalho terão vindo para ficar? O “Cuidar” ficará diferente? Como será o trabalho de equipa? Muitas perguntas estão, ainda, por responder. O período vivido está em permanente mutação e sabe-se que os contextos de cada país, de cada região e de cada unidade de saúde são particulares e influenciaram, de alguma forma, a vivência específica do fenómeno, quer pelos cidadãos, quer, muito em particular, pelos profissionais de saúde (PS) (Joo & Liu, 2021; Skegg et al., 2021). Existirão certamente comunalidades na doença e na vivência profissional, mas existem seguramente ainda mais vivências, que importa desvelar, descrever e considerar para uma melhor preparação do futuro. É, por isso, importante descrever as vivências dos PS durante a primeira vaga da Pandemia, para que não sejam esquecidas, facilitando o mapeamento da evolução no entendimento que construímos enquanto sociedade, retirando as devidas aprendizagens. Por outro lado, esta descrição permitirá comparar com as fases subsequentes da pandemia.

Existem diferentes formas de registar as consequências para os PS, desde logo pela determinação das taxas de infeção e mortalidade e fatores associados (Santos et al., 2020), mas importa, também, analisar as respostas sociais e compreender os impactos individuais e coletivos desta perturbação pública. A sublimação do discurso na primeira pessoa, de quem viveu o fenómeno mais intensamente, no “lado de cá da barricada” é aquela que importará mais relevar, nacional e internacionalmente.

Apesar de a grande maioria das publicações sobre o impacto da Pandemia COVID-19 ser de cariz quantitativo, existem já várias publicações qualitativas e fenomenológicas, uma das principais, publicada em abril de 2020 (Liu et al., 2020). Foi na China que se realizou a maioria destes estudos (Joo & Liu, 2021), sendo alguns realizados em países orientais, como no Irão (Karimi et al., 2020), na Coreia do Sul (Lee & Lee, 2020) e na Turquia (Kackin et al., 2020). No ocidente europeu identificaram-se muito menos, como por exemplo, um na Suécia, relativo a transporte de doentes críticos (Dabija et al., 2021), ou um na Dinamarca reportando a perspetiva de supervisores que realizaram sessões de aconselhamento grupal a enfermeiros (Marsaa et al., 2021). Quase todos os estudos usaram o método fenomenológico e entrevistaram apenas enfermeiros, sendo que apenas dois incluíram também médicos (Kim et al., 2020; Liu et al., 2020). A maioria dos estudos incluiu entre os 10 e os 14 participantes (Joo & Liu, 2021). Não se identificaram estudos que incluíssem participantes infetados em contexto de trabalho.

Este estudo teve como objetivo descrever as vivências dos PS de um hospital universitário, que foram infetados com SARS-COV-2 ou que tiveram contactos de alto risco durante a sua atividade profissional, aquando da primeira vaga da Pandemia, descrevendo os fatores facilitadores e dificultadores da sua atividade profissional.

Método

Para a estruturação deste artigo seguiu-se a “Consolidated criteria for reporting qualitative studies (COREQ) checklist”.

Realizou-se um estudo qualitativo de abordagem fenomenológica, utilizando o modelo de análise proposto por Loureiro (2002) e as estratégias de adequação e rigor para este tipo de estudos (Loureiro, 2006). Este estudo foi aprovado pela Comissão de Ética da Escola Superior de Enfermagem de Coimbra (#666/04-2020), tendo-se seguido todos os pressupostos inerentes a este tipo de investigação.

Definiram-se como critérios de inclusão dos participantes: enfermeiros, médicos ou assistentes operacionais da instituição, que tivessem: a) testado COVID-19+; ou b) trabalhado num serviço dedicado ao atendimento a doentes COVID-19+; ou c) tido exposição direta e de risco a doentes COVID-19+. Selecionaram-se estas profissões por serem as mais representativas a nível hospitalar e por terem mais contactos de risco. Para identificação de voluntários para o estudo foram enviadas mensagens de correio eletrónico para os enfermeiros gestores e para os diretores de serviço. Uma investigadora (AM) contactou telefonicamente todos os interessados, confirmou a sua elegibilidade, realizou o consentimento informado (enviado por mensagem de correio eletrónico), recolheu os dados profissionais (serviço de origem, se mobilizado ou não, experiência profissional) e agendou a entrevista.

Três investigadores realizaram as entrevistas, um enfermeiro (RF) e duas psicólogas clínicas (SM, MVM) da instituição, com larga experiência em realização de entrevistas. Estes treinaram e uniformizaram os procedimentos de entrevista. O guião foi elaborado para o efeito e pré-validado com a equipa de investigadores (Quadro 1).

Quadro 1 Guião de entrevista 

Entrevistadores e entrevistados não se conheciam previamente. As entrevistas realizaram-se entre 18/05/2020 e 10/07/2020 via WhatsApp®, gravando apenas o áudio. No final da entrevista confirmou-se com o/a entrevistado/a se havia algum conteúdo que preferisse ocultar, o que aconteceu em duas situações. A duração das entrevistas variou entre os 20’ e os 90’, com uma média de 32’. As transcrições foram realizadas por nove colaboradores de investigação, após treino, assinatura de um acordo de confidencialidade, e sem terem acesso aos dados identificativos dos participantes (editados pelo investigador principal, RF). Os ficheiros de som foram protegidos com password e serão destruídos após a aceitação desta publicação. Ao fim de cada semana de entrevistas os entrevistadores reuniram para listar e debater os principais temas discutidos e aferir a saturação dos dados de acordo com a tipologia profissional dos participantes.

A codificação das entrevistas foi facilitada pela utilização do software ATLAS.ti (v.8) e realizada por três investigadores (RF, AM, AMM), de forma indutiva, isto é, sem temas definidos a priori, seguindo as etapas descritas por Loureiro (2002). No final, realizaram-se duas reuniões com todos os investigadores para debater o índice temático. Os participantes foram convidados a assistir e a validar a análise efetuada em dois momentos de apresentação pública preliminar.

Resultados

Participaram no estudo 23 profissionais de saúde (15 enfermeiros, 4 médicos e 4 assistentes operacionais) de um hospital universitário, maioritariamente do sexo feminino (n=15), com idades entre os 27 e os 53 anos. Destes, 10 testaram positivo para SARS-CoV-2 e 13 trabalharam em serviços COVID-19.

Os resultados (ou achados) dividem-se em três temas centrais: 1. Pessoa, 2. Hospital e 3. Sociedade. Incluídos nestes temas, de forma interligada, identificaram-se cinco subtemas: i. “Eu” (Pessoa/Profissional), ii. “Eu e os Outros” (Doentes/Familiares), iii. “Eu e os Outros como Eu” (Equipa), iv. “Eu e Os meus” (Família), e v. “A Liderança/Gestão”. Na Figura 1 apresenta-se a representação esquemática do fenómeno, que inclui, para além dos temas e dos subtemas, os principais significados desvelados. No esquema sublinha-se a interdependência entre o “Eu Corpo”, “Eu Sujeito” e “Eu em relação”, nos contextos próprios, num fluxo centrífugo, em que a Pessoa é central no fenómeno que vive.

Figura 1 Representação esquemática do fenómeno “Vivências dos profissionais de saúde durante a primeira vaga da Pandemia COVID-19” 

De seguida apresentamos os temas, os respetivos significados e uma seleção das unidades naturais de significado (UNS) mais representativas. Nos Quadros 2 a 4 apresentamos as UNS complementares para cada significado (com um código único para mais fácil referenciação à tabela, por ex: [C1]”) referentes a cada tema.

“PESSOA” “tenho algum receio do que possa cá ter ficado”(E16)

As vivências pessoais destes participantes (“Eu” - Pessoa/Profissional) foram de ordem diversa: física, emocional, relacional, profissional e, inclusivamente, espiritual (Tabela 2). Sobressaíram, nomeadamente, as “Alterações Emocionais” decorrentes de viver um acontecimento desconhecido e incontrolável, que provocou um estado de ansiedade constante, mesmo de pânico, em alguns casos, pelo sentimento de inevitabilidade do contágio com uma doença nova e potencialmente mortal[C1]: “Claro que há aqui um fator do desconhecido (...) tivemos auxiliares a chorar o dia inteiro” (E1). Muitos profissionais tiveram de ser medicados para sintomatologia ansiosa ou depressiva, o que foi mais evidente nos que estiveram em isolamento em suas casas [C2]: “Depois chegava à noite e sonhava com aquilo, inclusivamente cheguei ao ponto de ter de tomar medicação e ainda não estávamos na fase pandémica cá em Portugal.” (E15). As referências a mudanças de comportamento foram também várias. Por um lado, maior agressividade e impaciência, por outro, mais tolerância e perceção de crescimento pessoal [C3].

A notícia do resultado positivo foi avassaladora para alguns PS, sendo que alguns sentiram necessidade de telefonar e pedir desculpa às pessoas com que contactaram, pelo risco de as terem contagiado, além do medo do que pudessem vir a sofrer em consequência da doença, com sintomas debilitantes [C4]: “A preocupação foi contactar a minha família (pausa). Desculpa lá” (E12).

Para lidar com estas dificuldades, os participantes usaram diferentes formas de “Adaptação” (mecanismos de coping). Em alguns casos evitando abordar o problema, noutros enfrentando-o e ventilando emocionalmente os receios e expectativas, noutros ainda, comparando com as dificuldades vividas por gerações anteriores, por ex. a Guerra Portuguesa do Ultramar, ou relativizando face às suas experiências, pessoais (ex. cancro) ou de cuidar do “Outro” [C5].

“Eu e os Outros como Eu” representa a vivência com a equipa (multidisciplinar), num ambiente de maior “Valorização” da mesma, que se constituiu como grande motivação para enfrentar o desafio nunca antes visto ou mesmo imaginado [C6]: “estavam completamente desmoralizados [colegas], tinham tido muitos doentes na sala COVID, havia doentes que tinham morrido (...) e havia um certo desespero de não conseguir dar resposta.” (E1)

Este espírito de irmandade, fortalecido também pela Pandemia, é bem expresso no seguinte excerto: “é um exemplo de união, de espírito de entrega, de espírito de sacrifício (...), uma pessoa põe-se mais depressa em risco do que deixas [o risco] para um amigo teu (...) se for preciso a segunda vez [segunda onda], estou lá, sem problema absolutamente nenhum, eu e os meus colegas, com a equipa que tenho não tenho medo nenhum.” (E3)

O isolamento, por COVID-19, foi sentido como uma falha individual para com a equipa [C7]: “quando estava em casa … senti que estava a falhar-lhes porque somos uma equipa e senti que lhes fiquei em divida” (E16) “não sei se será exatamente culpa [o que sinto].” (E24)

Eu e Os Outros” (doentes e familiares) representa a essência da profissão, constituindo-se a força motriz do cuidar, que se matiza de dificuldades nunca experimentadas, sobretudo ao nível da quebra (quase) irreparável de uma conexão ao ver afetada gravemente a comunicação. Os PS sentiram com especial pesar o facto de não conseguirem contornar a impossibilidade de familiares e doentes se despedirem de alguma forma aquando do internamento, naquele que seria para muitos a última oportunidade de se verem [C8]: “Entraram a andar e não vão voltar a ver a família, vão morrer e nem a família se pode despedir como deve ser” (E7). O jugo da morte estava presente em todo o lado no hospital.

Quadro 2 Categorização do tema “Pessoa” 

O cuidar foi profundamente afetado por barreiras diversas, nomeadamente de Comunicação, e isso foi outro fator promotor de sofrimento nos PS [C9].

“A Máscara” [C10], um objeto já parte do nosso quotidiano, e “O Equipamento” de proteção individual [C11], foram protagonistas de dualidades que muito afetaram as vivências do cuidar. Se por um lado eram muito desejados, por outro causavam enorme dor, desconforto, sobrecarga física e psicológica, e ainda dificuldades na comunicação e relação de ajuda com os utentes e extrema dificuldade na realização de procedimentos técnicos.

Todas estas dificuldades tiveram, em certa medida, uma compensação, nomeadamente o receber reforços positivos, de utentes e familiares, pela “Valorização” do cuidado prestado [C12].

Neste contexto de adversidade evidenciou-se, indelevelmente, um enorme sentido de “Ética Profissional”, que se sobrepôs aos incontroláveis pensamentos de defesa do Ser [C13]: “acho que passou pela cabeça de quase todos nós a vontade de ‘a gente mete um atestado e resolvemos isso’”(E4) [mas] “isto era um desígnio (...) foi a profissão que escolhemos”(E3).

“HOSPITAL” “(...) foi tudo mudado, de dia para dia, a gente chegava lá e era uma mudança diferente” (E13)

O segundo tema central foca-se no domínio do Hospital (Quadro 3), que como não poderia deixar de ser, influenciou bastante as vivências dos profissionais.

Os “Recursos Humanos”, inicialmente adequados com reforço dos contextos COVID, foram-se tornando escassos, tendo sido necessário reorganizar a estratégia de cooperação no trabalho[C14]: “só com uma interação entre a equipa de enfermagem, nós médicos, e auxiliares, é que se conseguiu que de alguma forma potenciar melhor os recursos de forma a chegar para todo o lado e promover a segurança” (E23).

Face à necessidade de mobilização intempestiva de muitos recursos, existiram referências às dificuldades de integração e estabilização, além do contacto, informando da mobilização, não ter sido atempado, fruto da urgência na tomada de decisão[C15]: “o profissional recebe por SMS ou por e-mail na véspera a comunicação de que no dia a seguir vai-se apresentar no serviço x ou y, portanto as pessoas são meros números (...).” (E17)

A importância da experiência prévia em doenças infeciosas e com práticas avançadas de enfermagem também foram significativamente mencionadas, salientando-se a importância de uma combinação de competências, que permitiu estabilidade e complementaridade, contribuindo para sentimento de valorização e pertença [C16].

Inicialmente, a (in)disponibilidade dos “Recursos Materiais” foi a preocupação mais premente, com a necessidade de racionalização, mas que depois foi resolvida [C17].

Outro tipo de recursos salientados foram os “Recursos de Conhecimento”, por exemplo, o apoio do grupo especializado na prevenção da infeção [C18], ou os “Serviços de Suporte”, nomeadamente o apoio dos enfermeiros especialistas em saúde mental [C19].

Alguns profissionais em isolamento temeram pela sua situação financeira, dado que muitos não receberam salário referente ao período em que estiveram isolados em casa, por falta de definição e articulação dos processos, com o vencimento a ser pago aos profissionais em Contrato Individual de Trabalho (CIT) pela segurança social e a consequente demora [C20]:“Aquele colega veio publicar para as redes sociais que recebeu sessenta e sete euros, (..) a minha folha de vencimento de maio foi zero” (E10);

Mas, de forma inequívoca, a grande fonte de insatisfação e revolta foi sentida relativamente ao processo de testagem dos profissionais e comunicação dos resultados, gerido pelo serviço de saúde ocupacional, considerado desajustado, demorado e, despersonalizado, apesar de se compreender que o acréscimo de trabalho foi avassalador [C21]: “ninguém nos deu resposta a nada, (...) a saúde ocupacional não dava informações nenhumas. (E10)

Quadro 3 Categorização do tema “Hospital” 

No plano organizacional, a “Liderança” e a valorização do envolvimento dos colaboradores teve um impacto altamente significativo, sentido de formas antagónicas. Por um lado, os profissionais sentiram proximidade e confiança, sobretudo da gestão intermédia [C22]: “E correu tudo muito bem [sem infeções dos profissionais e bons outcomes dos doentes], porque tivemos muita influência na decisão das coisas (...) foi importante ter a noção que [as chefias] estavam a atender a quem ia trabalhar propriamente no terreno” (E1).

Por outro lado, muitos profissionais sentiram “Desamparo”, após terem ficado infetados e isolados durante semanas, sem apoio “oficial”. Alguns enfermeiros juntaram-se e apelaram à Enfermeira Diretora para tentar mudar a situação [C23]: “Eu só te sei dizer é que nós só nos temos uns aos outros, agora com os superiores, não sei se podemos contar muito, com quem nos dirige.” (E3) “Isso modificou um bocado por causa da enfermeira diretora, antes era quase como se fossemos desprezados.”(E16).

“SOCIEDADE” “parece que a gente já nem sabe andar na rua” (E19)

Fora do hospital, além da sociedade em geral encontra-se a família e os contactos de proximidade que são estruturantes para a forma com os PS viveram o fenómeno: “Eu e os Meus” (Quadro 4).

Quadro 4 Categorização do tema “Sociedade” 

A desesperança e medo [C24] dos PS advinha não tanto do medo pela própria saúde, mas muito mais do impacto que a doença poderia ter nestes “Outros”, indissociáveis do “Eu”. A separação [C25] dos filhos foi uma das vivências mais significativas, “forçada” pelo afastamento “voluntário” protetor ou isolamento por positividade. Estes períodos foram dos mais inquietantes em todo o processo, dado que mesmo perto da família se sentiam tão afastados, carentes de afetos e sujeitos a inúmeras tensões conjugais, apesar de todos os esforços para minimizar este afastamento físico e emocional, que se desejava sem impacto futuro[C26]:“[estava isolado no meu quarto] as minhas filhas tentavam-me abraçar e eu virava a cara ao lado”(E15) “a mais nova tem 3 anos, andava à solta pela casa, coitada, é uma criança que está “ao Deus-dará” (...) conversávamos assim à distância, se não, elas [filhas pequenas] até se esqueciam que tinham pai, e fazíamos brincadeiras, para manter minimamente aquela coerência familiar”(E16)

Foi realçado o impacto que os “Mass media” tiveram no ambiente de medo e pânico [C27]:“todos os dias, na televisão estava a mostrar Itália, e Espanha e isso também foi muito determinante no comportamento das pessoas.”(E1)

As vivências em sociedade ocorreram sob o signo da pressão, quer a sentida intrinsecamente, quer a explícita, sentindo-se a dificuldade em retornar à vida em sociedade após tanto tempo de isolamento, por ter testado positivo, ou viveu-se mesmo o “Estigma” ante as abordagens dos vizinhos [C28]:“Eu vivo numa aldeia, as pessoas... toda a gente soube que eu era positiva (...) as pessoas olhavam para mim como se eu tivesse (...) eu sentia esse estigma(...)(E15)

Discussão

Com este estudo procurou-se compreender as vivências dos enfermeiros, médicos e assistentes operacionais que cuidaram de utentes COVID-19 ou que foram eles próprios infetados com o vírus, identificando-as e descrevendo-as.

Os seus relatos, pela riqueza dos detalhes evidenciam os seus sentimentos, como medos e angústia e, relacionados com estes, os das pessoas que lhes são próximas, principalmente a família, de quem a maior parte se afastou, mas também dos colegas de equipa, que funcionaram, em alguns momentos, quase como uma segunda família, e ainda, das pessoas mais vulneráveis neste processo de cuidar: os utentes e seus familiares.

Os achados permitem identificar estratégias de ajuste/mecanismos de coping às diversas adversidades, em constante mutação, mais ou menos facilitadas pela organização e pela liderança. A comunicação foi um aspeto muito valorizado em todos os âmbitos, seja na relação com o utente e sua família, seja com a equipa, ou com a família, nomeadamente em tempos de isolamento forçado ou afastamento “voluntário”. Mas um dos aspetos em destaque emerge pela negativa, e relaciona-se em alguns momentos com a deficiente comunicação e apoio institucional, sentidos relativamente à realização da testagem, comunicação dos resultados e perceção de apoio. Tratam-se claramente de aspetos contextuais/organizacionais.

Os significados incluídos no nosso tema central “Eu e Os Outros” (doentes e familiares), do domínio Pessoa, encontram paralelo em temas centrais de outros estudos, nomeadamente o “sentido de dever” e os “desafios de cuidar” em serviços COVID (Liu et al., 2020), ou o tema “forças que me fazem continuar”(Lee & Lee, 2020). De facto, no nosso estudo, a força motriz do cuidar veio, precisamente, dos outros (que foram, igualmente, elementos de valorização dos cuidados prestados), ainda que com dificuldades nunca vivenciadas e com diversas barreiras presentes.

No tema “Eu” (Pessoa/Profissional), identificámos diferentes formas de adaptação (de coping) perante todo o contexto adverso, fontes centrais de resiliência, assim como, independentemente do impacto ao nível comportamental, situações de maior tolerância e até de crescimento pessoal. Estes achados têm equivalência com os temas de outros estudos, nomeadamente a “resiliência” (Liu et al., 2020), os “estilos de auto-coping”(Jia et al., 2020; Sun et al., 2020), e “crescimento sob pressão” (Sun et al., 2020), “dando um novo passo no próprio crescimento”(Lee & Lee, 2020).

Tal como o nosso estudo, outros identificaram como tema central as emoções negativas (Sun et al., 2020) ou a condição mental e condição emocional (Karimi et al., 2020). De enfatizar a sobreposição de temáticas com os nossos achados, como a turbulência no contexto de cuidar, dada a falta de apoio e equipamento (Karimi et al., 2020) ou o “lutar na linha da frente”(Lee & Lee, 2020).

Em termos de modelos teóricos, este fenómeno, tal como vivido, parece enquadrar-se na sua interpretação, com os temas do modelo ecológico social (Golden & Earp, 2012) e os seus níveis intrapessoal, interpessoal, institucional, comunitário e de política. De igual forma os achados podem compreender-se, também com recurso ao referencial do modelo de processo de resiliência familiar de Walsh (2003), pois parece facilitar o enquadramento dos significados desvelados, nomeadamente processos relacionados com: i) o sistema de crenças partilhadas (que incluem 1. Criar um significado da adversidade, 2. Ter perspetiva positiva, 3.Transcendência e espiritualidade), ii) os processos organizacionais (4. Flexibilidade, 5. Conexão, 6. Mobilização de recursos sociais e económicos), iii) os processos de comunicação e de resolução de problemas (7. Clareza e 8. Abertura para a partilha emocional, colaboração na resolução de problemas).

Os modelos relacionados com o sentido da vida em que ancóra a fenomenologia (enquanto filosofia), sobretudo no modo como o sofrimento, a adversidade e o medo envolvidos nos permitem compreender, a partir do processo interpretativo dos achados, que os profissionais de saúde, “gente de carne e osso”, na expressão de Unamuno (2002), estão para lá do processo que envolve os aspetos contextuais/ambientais e organizacionais.

A saliência progressiva da pandemia, o “chegar aqui” é geradora de medo e angústia pelo desconhecido, cujos mass media ampliam de modo quase trágico. Este quotidiano é todo ele questionado, no sentido de permitir o processo de cuidar de si e dos outros. Emerge destes achados uma visão dos profissionais de saúde como homens e mulheres individuais e concretos, na sua singularidade e autonomia. Aqueles a quem a pandemia também faz tomar consciência das suas fragilidades e dos seus medos no momento em que cuidam de outros "como eles".

Este entendimento permite analisar os profissionais de saúde como gente que se projeta a partir do imediato, do vivido, da experiência pessoal. Aí é que fazem sentido e aparecem os fenómenos negativos, a finitude, a angústia, o fracasso. A realidade pessoal de cada um destes profissionais, destas pessoas, é uma realidade radical de alguém a quem a pandemia vem provocar o medo da "aniquilação" e a ideia perseverante da "transformação". Dos achados parece que o dia-a-dia assume uma tripla forma: por um lado, um medo irremediável do que "está aí" - a pandemia, e da necessidade de viver com ela no quotidiano (uma atitude como que de "neutralidade"); uma certa resignação de quem faz dos dias, dias; e, por outro lado, um certo desespero inconformado, fazendo do dia-a-dia uma luta em prol de si e dos outros.

A pandemia leva a questionar também a existência, o que são as novas condições “normais” da existência na perspetiva dos profissionais, questionando-se acerca da finalidade de quem são (“heróis/combatentes na linha da frente”) e o que fazem (“salvam vidas”), a incerteza de não saber o que virá do futuro (“nada será como antes”), o medo da solidão, do “não comunicar”, de estar só quando rodeado de pessoas num hospital.

Como principal limitação deste estudo, identificamos o facto de ser realizado num só hospital, e, portanto, não generalizável a outros contextos, ou ainda o facto de ter decorrido um período relativamente longo entre a recolha de dados e esta publicação - num tempo de ciência ainda mais rápida. Como pontos fortes, salientamos a amostra de número considerável, diversa em termos de tipologia profissional e de contextos de trabalho, com recolha e análise de dados quase coincidente que permitiu aferir da saturação, ou a triangulação de investigadores de diferentes áreas e validação dos achados com os participantes.

Concluindo, os profissionais de saúde entrevistados mostraram-se muito resilientes, apesar de todas as adversidades. Valorizaram mais o aspeto emocional e psicológico da experiência, do que o sofrimento físico. Esta experiência marcou-lhes as vidas, não apenas na esfera profissional e do cuidar, mas sobretudo na valorização da vida e da família. O verdadeiro impacto na sua própria saúde, física e mental, em especial naqueles que foram infetados, está ainda por determinar. A ética profissional foi um valor superior. O futuro é visto com otimismo, porque se confia nos colegas de equipa, mas denota-se alguma amargura com alguns aspetos particulares da instituição.

Agradecimentos

Agradecemos a todos os participantes deste estudo, bem como aos que se voluntariaram mesmo não tendo participado. Nunca é demais reconhecer a intervenção de todos neste momento difícil para toda a comunidade, em especial, para a comunidade da saúde.

Agradecemos também muito especialmente às colaboradoras (Ma Inês Miguéns; Raquel Ferreira; Beatriz Rolo; Inês Pereira; Diana Miranda; Tânia Rodrigues) pela sua prestimosa colaboração na transcrição das entrevistas, que ajudou a acelerar o processo de análise muito significativamente.

Agradecemos ainda à senhora enfermeira Telma Vidinha, pela revisão ao documento e sugestões realizadas.

Referências

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Recebido: 23 de Julho de 2021; Aceito: 10 de Outubro de 2021

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