Os migrantes constituem uma população muito heterogénea, com diferentes fatores de proteção e níveis de risco relacionados ao processo migratório, como é o caso das condições de habitabilidade e alojamento, alimentação e nutrição, questões linguísticas ou de comunicação e determinantes culturais (Oliveira, 2020; Oliveira & Gomes, 2019).
A migração causa grandes mudanças a nível cultural, físico, social e psicológico nas pessoas, podendo existir uma grande distância entre estes e os elementos de referência do seu país de origem, como a família e amigos, verificando-se um confronto com um novo contexto social (Aksel et al., 2007; Suárez-Orozco & Onaga, 2010). Um ajuste positivo a uma nova cultura e comunidade tende a apresentar resultados benéficos para o indivíduo, nomeadamente na área da saúde, no sucesso académico e expectativas de futuro (Fang et al., 2014; Guedes et al., 2021). Contudo existem igualmente situações em que o ajuste se processa de forma negativa, designadamente no acesso e nas condições de trabalho, aceitando trabalhos mais precários, arriscados e mal remunerados (Oliveira, 2020).
Estudos relatam que existem algumas reservas por parte das populações locais, sobre os migrantes e refugiados, manifestando algum receio em os receber. No entanto existe quem tenha curiosidade e considere um desafio conhecer pessoas de outras culturas e que promova o multiculturalismo e a igualdade de oportunidades (Guedes et al., 2019; Oliveira, 2020). Em alguns casos, estas reservas podem atuar como um veículo para a promoção de conflitos e segregação social (Dandy & Pe-Pua, 2010; Guedes et al., 2019). São os jovens mais novos, com mais instrução académica e que conhecem jovens de outras culturas, que apresentam uma atitude mais favorável em relação à igualdade de direitos e oportunidades das pessoas estrangeiras nos países de acolhimento (Guedes et al., 2019).
O bem-estar e a qualidade de vida resultam da combinação de vários fatores, objetivos e subjetivos, e varia de indivíduo para indivíduo, apontando a literatura que são os indivíduos do sexo masculino que apresentam níveis mais elevados de qualidade de vida, quando comparados com o feminino (Gaspar, 2015; González-Carrasco et al., 2017).
A pandemia declarada no mês de março de 2020 pela Organização Mundial de Saúde, e as medidas implementadas para reduzir a propagação do vírus SARS-CoV-2, responsável, até ao momento, por mais de 1 milhão de casos positivos e mais de 17 mil mortes em Portugal (Direção Geral da Saúde [DSG], 2021), teve forte impacto na saúde física e mental da população, assim como na sua subsistência (Wang et al., 2021). Muitas vezes em situação anterior de vulnerabilidade nos países de acolhimento, os migrantes viram as suas dificuldades acentuadas durante o período pandémico (Fasani & Mazza, 2020), não só pela inibição ou diminuição de trabalho, como pelas suas implicações na família e segurança alimentar (Ullah et al., 2021).
Importa referir que nesta fase de pandemia o Governo da República Portuguesa implementou medidas de saúde excecionais para migrantes e refugiadas em Portugal, determinando que todos os migrantes e refugiados, independentemente do seu estatuto ou situação documental de permanência no país, têm direito ao acesso do Sistema Nacional de Saúde (DGS, 2020).
Um estudo da OECD (2020), aponta que os migrantes são duas vezes mais vulneráveis à infeção pelo vírus SARS-CoV-2, quando comparados com a população geral, associada às suas condições de vida e trabalho; falta de consideração pela sua cultura e língua no acesso aos serviços e direitos; fraca inclusão nas comunidades; e também pela xenofobia de que muitas vezes são alvo (Liem et al., 2020).
Hayward et al. (2021) realizaram uma revisão sistemática de literatura sobre os fatores de risco para o COVID-19 em populações migrantes e verificaram que os migrantes são uma população de risco para a infeção pelo vírus SARS-CoV-2, com taxas de mortalidade mais elevadas do que a população geral. Os principais fatores de vulnerabilidade associados ao risco de infeção identificados pelos autores foram: a sua deficitária situação social e de saúde, as barreiras existentes no acesso aos serviços de saúde dos países de acolhimento, a dificuldade de comunicação, que por vezes dificulta que as mensagens preventivas cheguem à população migrante (poucos países de acolhimento têm mensagens direcionadas à população migrante). Estes fatores tornam a população migrante mais vulnerável à infeção pelo vírus SARS-CoV-2, a outras doenças e influenciam negativamente o seu bem-estar.
Ullah et al. (2021), consideram que as populações migrantes foram apanhadas entre a crise de saúde e a crise alimentar, entre a incerteza de ter emprego e o desejo de regressar a casa, entre ficar em segurança e a urgência de sair para sobreviver. Os migrantes que geralmente vivem em residências sobrelotadas, correm riscos acrescidos de infeção pelo vírus SARS-CoV-2, e outras doenças, devido às poucas condições de habitação (geralmente sobrelotação), saneamento inadequado, nutrição deficiente e acesso limitado aos serviços de saúde. Os autores consideram que é urgente a alteração das políticas de migração, de forma a proteger e garantir os direitos humanos da população migrante.
Desta forma, o presente estudo pretende analisar a qualidade de vida, os desafios, as ameaças e a saúde dos migrantes e refugiados residentes em Portugal durante a pandemia da COVID-19 em 2020/2021, pretendendo identificar quem está em maior risco e as razões para tal.
Método
Este estudo é baseado no ApartTogether, um inquérito realizado durante a pandemia da COVID-19, desenvolvido pela Organização Mundial de Saúde (World Health Organization [WHO], 2020).
Os dados recolhidos têm como objetivo entender qual o impacto da pandemia da COVID-19 e quais as medidas tomadas para evitá-la nos migrantes e refugiados em toda a Europa.
Em Portugal, o estudo ApartTogether foi aprovado pela Ordem dos Psicólogos Portugueses (OPP). As respostas ao questionário foram obtidas online e de forma voluntária, tendo sido obtido o consentimento informado de todos os participantes, sendo respeitados todos os direitos de anonimato e confidencialidade dos dados. Mais detalhes sobre os procedimentos de recolha de dados do estudo Apartoghether em podem ser encontrados em www.aparttogetherstudy.org/.
Participantes
Foram incluídos com respostas completas 330 indivíduos, dos quais 62% (n=183) são do género feminino, com idades compreendidas entre os 16 e os 73 anos, com uma idade média de 35,25 anos (DP=11,21). As restantes características demográficas dos participantes estão presentes no quadro 1.
Medidas e variáveis
Tendo em consideração o objetivo deste estudo, foram consideradas as variáveis presentes no quadro 1.
Análise de dados
A análise dos dados foi realizada com recurso ao software Statistical Package for the Social Sciences (SPSS), versão 25. A caracterização sociodemográfica, condição de saúde relacionada com COVID-19 e qualidade de vida dos participantes foi realizada através da estatística descritiva (média, desvio padrão, percentagem e frequências). O teste t de Student para amostras independentes, foi utilizado para analisar a relação entre qualidade de vida e variáveis sociodemográficas (idade), bem como variáveis relacionadas com COVID-19, nomeadamente as escalas: 1) prevenção de transmissão COVID-19; 2) impacto das medidas face à COVID-19 nos indivíduos; 3) sensação de isolamento social; 4) preocupação com relação à crise causada pelo coronavírus; 5) informação e prevenção sobre COVID-19; 6) incerteza/ansiedade/receio; 7) coping; 8) bem-estar social e união (geral e, melhor e pior antes da COVID-19); 9) estigma social e discriminação (geral e, melhor e pior antes da COVID-19) e 19) sintomas físicos e psicológicos (geral e, melhor e pior antes da COVID-19).
O Teste Qui-Quadrado foi utilizado para analisar a relação entre qualidade de vida e variáveis sociodemográficas (sexo, escolaridade, situação profissionais, tempo de residência em Portugal, e tipo de residência) e, variáveis de saúde relacionadas com COVID-19 (se teve/tem sintomas relacionados com COVID-19, se fez teste para a COVID-19 e deu positivo, se alguém perto testou/está positivo à COVID-19 e, se, no caso de apresentar sintomas de COVID-19, se contactaria um profissional de saúde). Para determinar significância estatística foi determinado um nível de p<0,05.
Resultados
O quadro 2 apresenta a caracterização dos participantes. Os participantes têm uma idade média de 32,25±11,21 anos, tendo o mais novo 16 anos e o mais velho 73 anos e, relativamente ao sexo, 62% são mulheres. Relativamente ao nível escolaridade, 65,6% (n=145) frequentou o ensino superior e tem o grau académico de licenciatura. Durante a primeira vaga de COVID-19 em Portugal, 31,4% (n=69) mantinha-se a trabalhar como era habitual antes da pandemia. 46,2% (n=120) reside em Portugal entre 1-10 anos, dos quais 42,2% (n=98) já tem nacionalidade portuguesa e 38,8% (n=90) ainda tem documentos temporários, residindo a maioria numa casa/apartamento (94,5%, n=225).
Relativamente à COVID-19, 7% (n=15) testou positivo à COVID-19 e 16,1% (n=34) referiu que alguém perto de si já testou ou está positivo para COVID-19, sendo que a maioria (94,1%, n=190) refere que se apresentar sintomas irá contatar um profissional de saúde.
O quadro 3 apresenta os resultados relativos à qualidade de vida e COVID-19. No que refere à qualidade de vida, os participantes apresentam uma qualidade de vida média de 5,92±2,31, sendo que 54,3% (n=82) apresenta uma qualidade de vida acima da média.
A análise bivariada relativa à qualidade de vida e variáveis sociodemográficas encontra-se apresentada no quadro 4.
O quadro 5 apresenta os resultados relativos à análise bivariada da qualidade de vida e COVID-19. Para os estrangeiros a viver em Portugal durante a primeira vaga da pandemia COVID-19, ter uma qualidade de vida acima da média está estatisticamente relacionado com maior adesão a medidas de prevenção de transmissão de COVID-19, procurar menos informação e prevenção sobre COVID-19 em várias fontes, encontra-se pior relativamente ao período antes da COVID-19 no que concerne ao bem-estar social e união, sofrer menos estigma social e discriminação (geral), e sofrer mais estigma social e discriminação comparativamente ao período antes da COVID-19, apresentar menos sintomas físicos e psicológicos (geral), e apresentar mais sintomas físicos e psicológicos comparativamente ao período antes da COVID-19, bem como, apresentar mais estratégias de coping.
Discussão
A preocupação com os migrantes e/ou refugiados tem vindo a ser debatida por toda a comunidade internacional, manifestando o seu impacto e influência nos fatores relacionados com a diversidade (Guedes et al., 2019; Smith & Daynes, 2016). Algumas das dificuldades apresentadas e que afetam diretamente o bem-estar dos migrantes e refugiados estão relacionadas com a integração e construção de processos identitários, níveis de satisfação com a vida e de discriminação (Kouider et al., 2013; Perreira & Ornelas, 2011).
Nota: DP, desvio padrão; M, média; QV, qualidade de vida; 1Teste T para amostras independentes; 2 Qui quadrado
Os migrantes enfrentam algumas limitações e constrangimentos relacionados com as diferenças culturais, aliadas com as carências alimentares, de alojamento e trabalho, a adoção de padrões culturais locais dos países de acolhimento, assim como da consequente discriminação local, que se acentuou com a crise pandémica da COVID-19 (Fasani & Mazza, 2020; Guedes et al., 2019; Matos & Equipa Aventura Social, 2018). A COVID-19 trouxe um aumento da retórica racista para com algumas populações, que a utilização de expressões como “vírus chinês”, “variante indiana” ou “variante nepalesa” impactaram negativamente essas comunidades (Ferrari et al., 2020).
Os participantes que referem que a discriminação e estigma social piorou desde a pandemia, também referem um aumento dos sintomas físicos e psicológicos, com impacto na saúde mental e no bem-estar, o que vai ao encontro da literatura, onde a discriminação é referida como um dos principais fatores associados ao sofrimento psicólogo, principalmente em situações de crise, como num contexto de pandemia (Dubey et al., 2020; Fasani & Mazza, 2020; Schmitt et al., 2014).
Os participantes que relatam uma qualidade de vida maior são também os que relatam níveis mais altos de preocupação e adesão às medidas de prevenção de transmissão de COVID-19, e também referem conseguir garantir as condições básicas, como casa e trabalho, embora só menos de metade tenha conseguido manter o seu trabalho habitual antes da pandemia e refiram estar pior posicionados relativamente ao bem-estar social e união, diretamente relacionados com o distanciamento físico e social imposto pela pandemia, com impacto direto nas atividade diárias e experiências de stress, assim como nos níveis de saúde mental e bem estar das pessoas (Ponnamperuma & Nicolson, 2018; Ullah et al., 2021).
De acordo com estudos anteriores, já era evidente que a população migrante e refugiada vivia em situações comparativamente mais precárias, com dificuldade em adquirir documentos e com níveis de qualidade de vida mais baixos (Oliveira, 2020; Oliveira & Gomes 2019; Rousseau & Frounfelker, 2018). Muitos foram apanhados entre a atual crise de saúde pública e a privação material e social que já enfrentavam antes da pandemia, o que os tornou mais suscetíveis de enfrentarem problemas de saúde física e mental (Matos, 2021; Spiritus-Beerden et al., 2021; Ullah et al., 2021).
Os resultados revelam ainda a importância de intervenções universais que promovam a integração da população migrante e refugiada em Portugal, providenciando apoio habitacional e social, assim como no âmbito da saúde (física e psicológica) e promover o desenvolvimento de competências pessoais e socioemocionais com o objetivo de aumentar o bem-estar e a coesão socias, sobre a pressão da pandemia de COVID-19 (Guedes et al., 2019; Matos & Equipa Aventura Social, 2018; WHO, 2020).
Nesta ótica existem vários projetos de intervenção comunitária, como é o caso da Aventura Social Intercultural ou o Projeto DiverCidade que necessitam de um maior apoio das entidades públicas para que continuem a desenvolver o seu trabalho nos seus territórios, permitindo identificar e encaminhar a população para as respostas já existentes, mas desenvolvendo novas respostas para as necessidades ainda sem resposta. São projetos com estas características que permitem partilhar as experiências e diversidades culturais, promovendo a visibilidade das comunidades migrantes e a coesão socio-territorial (Matos & Equipa Aventura Social, 2018; Ramos et al., 2018; Sousa et al., 2021).
Este estudo pretende sensibilizar os decisores políticos para a importância das intervenções psicossociais com esta população, dada a sua vulnerabilidade que a coloca em maior risco.