Não obstante o reconhecimento científico da homo/bissexualidade como variantes normais da sexualidade e o crescente movimento de despatologização das identidades transgénero, as pessoas Lésbicas, Gays, Bissexuais, Trans, e outras de minorias sexuais e de género (LGBT+) continuam a ser expostas a estigma e preconceito social, nomeadamente nos serviços de saúde mental. Poucos estudos têm sido feitos sobre a experiência de psicoterapia de pessoas LGBT+, especialmente em Portugal. Contudo, sabe-se que técnicos de saúde mental e psicoterapeutas continuam a realizar práticas que visam a mudança da orientação sexual homo/bissexual ou identidades e expressões de género trans e não binárias para a Heterossexualidade Cisgénero (HC). Este configura-se como o primeiro estudo realizado em Portugal que visou examinar as experiências de psicoterapia, exposição a práticas de conversão, e saúde mental em pessoas LGBT+ e pessoas HC.
Estigma sexual, stress minoritário e saúde mental em pessoas LGBT+
O estigma sexual consiste no conhecimento socialmente partilhado que a homossexualidade é inferior à heterossexualidade e cria um ambiente social hostil às minorias sexuais e de género que pode levar ao desenvolvimento de problemas de saúde física e mental (Herek, 2009). Vários estudos constataram que as minorias sexuais e de género revelam disparidades em vários indicadores de saúde física e mental quando comparadas com pessoas heterossexuais e cisgénero, que são consequentes a fatores de stress específicos a minorias sexuais e de género, como o estigma sexual (Meyer, 2013).
O Modelo de Stress Minoritário (MSM; Meyer, 2013), resulta do conhecimento empírico acumulado sobre as raízes destas disparidades e descreve as trajetórias entre a experiência de estigma, rejeição, e assédio, que constituem fatores de stress, e o bem-estar emocional, psicológico e social das pessoas LGTBT+. O modelo distingue fatores de stress proximais como as expectativas e experiências de rejeição (por exemplo por parte de familiares), a não revelação da orientação sexual ou identidade de género, ou mesmo a internalização do estigma social, de fatores de stress distais como a discriminação ou assédio, ou o heterossexismo institucional. Estas experiências constituem fontes de stress crónicos podem levar a um decréscimo da autoestima, bem-estar psicológico, saúde mental, e/ou à adoção de estratégias de coping desajustadas como o consumo de substâncias ou comportamento autolesivos (Dyar et al., 2020; Eldahan et al., 2016; Flentje et al., 2020; Frost et al., 2015; Mereish et al., 2019; Mereish & Poteat, 2015; Testa et al., 2017 Wilson et al., 2016).
Experiências de psicoterapia de pessoas LGBT+ e atitudes de psicoterapeutas
Tendo em conta a experiência de stress minoritário e os seus efeitos na saúde mental, não é surpreendente que as pessoas LGBT+ tendam mais a procurar serviços de saúde mental do que as pessoas HC (Cochran et al., 2003; Quiñones et al., 2015). No entanto, a pouca literatura existente sobre a experiência de pessoas LGBT+ em psicoterapia reporta a perspetiva do psicoterapeuta e não do cliente (Quiñones et al., 2015). Para pessoas LGBT+ em psicoterapia, uma abordagem “aberta” ou mesmo afirmativa da sua orientação sexual ou identidade de género foi considerada importante, mesmo não estando relacionada com a questão que motiva a procura de psicoterapia; Mais, os psicoterapeutas deverão ter o conhecimento necessário sobre os desafios específicos das pessoas LGBT+, nomeadamente, o stress minoritário, por forma a ajudá-las a processar as experiências de discriminação (Brown et al., 2020; Mair, 2003; Quiñones et al., 2015), bem como as ferramentas práticas necessárias para o desenvolvimento de competências afirmativas (Pereira et al., 2019). Pelo contrário, quando o psicoterapeuta revela incompreensão ou desconhecimento sobre as necessidades específicas das pessoas LGBT+, poderá ser um agente de revitimização, reforçando sentimentos de estigma internalizada e comprometendo a qualidade e a eficácia da psicoterapia (Quiñones et al., 2015; Shelton & Delgado-Romero, 2011).
Práticas de conversão
As práticas de conversão ou reconversão, também conhecidas por esforços de mudança da orientação sexual ou identidade de género, baseiam-se no pressuposto que a orientação sexual ou identidade de género LGBT+ é uma perturbação, e consistem na tentativa de conversão de pessoas LGBT+ em pessoas heterossexuais cisgénero. Apesar de atualmente estas práticas fazerem uso de técnicas de talk therapy, ainda são comuns os relatos de pessoas sujeitas a tratamentos de aversão como eletrochoques, medicação indutora de vómito, ou hipnose (Mallory et al., 2019). Dados de um estudo nacional representativo dos Estados Unidos envolvendo 1518 participantes LGB reportou que 7% experienciaram prática de conversão (Blosnich et al., 2020), e estes revelaram duas vezes mais ideação suicida e um aumento de 75% da probabilidade de tentarem o suicídio quando comparados com aqueles que não foram expostos a estas práticas, evidência também encontrada em adolescentes e jovens LGBT+ com idades entre os 13 e os 24 anos (Green et al., 2020), e em pessoas trans cuja exposição a práticas de conversão na infância aumentou exponencialmente a probabilidade de tentarem suicídio (Turban et al., 2019). Um outro estudo realizado na Colômbia com 4160 participantes LGBT+ revelou uma percentagem ainda maior de pessoas expostas a práticas de conversão (22%), associadas a um incremento de 69% de ideação suicida e de 76% de tentativas de suicídio (del Río-González et al., 2021). Resultados semelhantes foram reportados num estudo Canadiano com 8388 participantes LGBT+, no qual foi encontrada uma associação significativa entre experiência de prática de conversão e um aumento de ideação suicida, tentativa de suicídio, solidão, e (ab)uso de drogas (Salway et al., 2020).
Esta evidência surge em confronto com as posições oficias de diversos organismos científicos e profissionais, como é o caso da Associação Americana de Psicologia, Sociedade Australiana de Psicologia, Sociedade Britânica de Psicologia, ou mesmo da Ordem dos Psicólogos Portugueses. O Parecer OPP - Terapias de Conversão assinala não só a ineficácia destas práticas, como também o facto de comportarem “riscos e prejuízos para a saúde psicológica”, considerando que estas violam os princípios éticas e deontológicos da prática psicológica (OPP, 2021, p. 4). Parecer semelhante já tinha sido publicado pelo Colégio de Especialidade de Psiquiatria da Ordem dos Médicos, em que afirmam igualmente não existirem tratamentos cientificamente válidos para orientações sexuais ou identidades de género que não são perturbações ou doenças (Ordem dos Médicos, 2009).
O presente estudo
Em Portugal a investigação científica e psicológica sobre o bem-estar, saúde e saúde mental das pessoas LGBT+ tem tido um aumento assinalável desde o início de 2000. Em 2004 foi publicado uma das primeiras coleções de estudos multidisciplinares dedicados à população LGBT+, no qual se constatava a quase inexistência de investigação em Portugal (Cascais, 2004). Desde então, tem crescido o interesse em diferentes temáticas relacionadas com a orientação sexual e a identidade de género. Contudo, no que diz respeito à experiência de pessoas LGBT+ com profissionais de saúde e saúde mental, quase nenhuma investigação científica foi produzida. Sem prejuízo de outras produções académicas, duas importantes exceções a esta lacuna são consideradas: (1) uma tese de doutoramento sobre os discursos de psicoterapeutas e clientes sobre a homossexualidade (Moita, 2001); e (2) uma tese de doutoramento sobre os discursos sobre a transsexualidade e a (des)patologização da mesma (Pinto, 2014). No primeiro estudo foi reportada a prevalência de um discurso dominante sobre a homossexualidade enquanto sexualidade deficitária, conduzindo, em alguns casos, a uma intervenção clínica focada na (homo)sexualidade enquanto responsável pelo sofrimento dos clientes (Moita, 2001). No segundo estudo, os discursos de pessoas trans evidenciaram uma dificuldade gerada pela necessidade de um diagnóstico de perturbação mental (disforia de género) necessário para a o processo de afirmação da identidade de género, sujeitando as pessoas trans a um “policiamento de género”, com frequência patologizante, por parte dos profissionais de saúde (Pinto, 2014).
Por outro lado, diversos estudos Portugueses têm evidenciado que as pessoas LGBT+, quando comparadas com pessoas HC, revelam piores indicadores de saúde física e mental, nomeadamente, maior risco de infeção pelo VIH/SIDA e outras infeções sexualmente transmissíveis, depressão e ansiedade, distress emocional, ideação e tentativa de suicídio, entre outros (e.g., Freitas et al., 2016; Gomes et al., 2020; Nodin et al., 2015; Pereira & Costa, 2016; Pereira & Rodrigues, 2015; Ribeiro-Gonçalves et al., 2019). Estess estudos têm consistentemente reportado que os piores indicares são consequentes ao stress minoritário (estigma, rejeição, discriminação ou assédio) que, por sua vez, leva a comportamentos autolesivos ou a problemas de internalização. De ressaltar ainda que resultados semelhantes têm sido encontrados em diferentes identidades LGBT+ e em diferentes gerações (Freitas et al., 2016; Pereira et al., 2019; Ribeiro-Gonçalves et al., 2021; Pinto & Moleiro, 2012).
Assim, os objetivos deste estudo foram: (1) Avaliar os níveis de saúde mental comparativamente em pessoas LGBT+ e pessoas HC, e (2) Examinar as experiências de psicoterapia de pessoas LGBT+, nomeadamente exposição a práticas de conversão, e a associação destas experiências aos níveis de saúde mental.
Método
Desenho do estudo
O presente estudo integra-se num projeto de investigação alargado intitulado “Saúde Mental, Experiências de Terapia e Aspirações de Vida”, cujo objetivo é avaliar o impacto da experiência de terapia e/ou psicoterapia na saúde mental, bem-estar, e aspirações de vida de pessoas Heterossexuais Cisgénero (HC) e pessoas Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgénero, e outras minorias sexuais e de género (LGBT+). Este estudo com corte transversal foi conduzido através de um survey online com uma amostragem não probabilística por conveniência, intencional, e propagação geométrica. Neste estudo apresentam-se os resultados preliminares do projeto de investigação cujos dados foram recolhidos entre Março e Junho de 2021.
Participantes
Para este estudo foi recrutada uma amostra de 322 participantes: 207 (64%) participantes HC e 115 (36%) participantes LGBT+. No que diz respeito ao sexo dos participantes, 72 (22%) identificaram o sexo masculino e 250 (78%) o sexo feminino; quanto à identidade de género, 74 (23%) autoidentificaram-se como homens cisgénero, 227 (71%) como mulheres cisgénero, 7 (2%) como pessoas não-binárias, 3 (1%) como queer, e os restantes com outras identidades de género (e.g., pessoa trans). A idade dos participantes variou entre 18 e 67 anos, com uma média de 35 e desvio-padrão de 12; 73 (23%) participantes reportaram ter o 12º ano de ensino ou menos e os restantes a frequência ou conclusão do ensino superior; 14 (4%) descreveu a sua localização como rural, 57 (18%) como suburbana/semiurbana, e 250 (78%) como urbana.
Para possibilitar a posterior comparação entre pessoas HC e LGBT+, os dois grupos foram comparados no que diz respeito às suas principais características sociodemográficas. O grupo de pessoas LGBT+ revelou uma média de idades significativamente mais baixa (M = 31) do que o grupos de pessoas HC (M =38), F(1,316) = 29,370, p < 0,001. No que diz respeito à localização e habilitações literárias, não foram encontradas proporções significativamente diferentes entre os grupos através do Teste Exato de Fisher (p = 0,366 e p = 0,080, respetivamente). A maioria dos participantes indicou já ter terminado o processo psicoterapêutico (57%) e os restantes indicaram estar ainda em processo psicoterapêutico (43%); não foram encontradas diferentes proporções na fase de psicoterapia entre pessoas HC e LGBT+ (p = 0,639). Perto de metade dos participantes (47%) indicou estar ou ter estado até um ano em processo psicoterapêutico, 21% entre um e dois anos, 14% entre dois e quatro anos, e 19% quatro ou mais anos. A comparação de proporções sobre o tempo de processo psicoterapêutico nos dois grupos não revelou diferenças significativas (p = 0,770).
Instrumentos
O survey online foi composto por um questionário sociodemográfico, medidas psicológicas estandardizadas e questões de resposta aberta e fechada desenhadas para este estudo. O questionário sociodemográfico foi composto por questões sobre idade, habilitações académicas, localização, sexo atribuído à nascença, identidade de género e orientação sexual. A idade foi medida através de uma questão aberta e medida numa escala de razão; As habilitações literárias foram medidas através de resposta fechada com duas possibilidades de resposta (até 12º ano de ensino = 0; frequência de ensino superior = 1); Localização foi medida através de resposta fechada com três opções de resposta (urbana = 1; suburbana/semiurbana = 2; rural = 3); Sexo atribuído à nascença foi medido através de resposta fechada com três opções de resposta (masculino = 0; feminino = 1; intersexo/outro = 2); Identidade de género e orientação sexual foram medidas através de resposta aberta e posteriormente codificadas.
Foram também desenvolvidas para este estudo uma série de questões com o intuito de avaliar a experiência de psicoterapia e relação com o psicoterapeuta. Foi perguntado aos participantes se estavam em processo psicoterapêutico ou se já tinham terminado o mesmo, com apenas duas hipóteses de resposta. Foi perguntado aos participantes se foram expostos a prática de conversão com hipótese de resposta no formato “sim/não”. Antes da questão foi apresentada a seguinte definição: “A prática de reparação é composta por uma série de práticas que têm como objetivo alterar a orientação sexual, a identidade de género e/ou a expressão de género de um indivíduo, nomeadamente reduzir ou mesmo parar a atração em relação a pessoas do mesmo sexo. Esta pode ser praticada por técnicos de saúde mental ou mesmo por líderes espirituais ou religiosos”. Para avaliar a eficácia percebida da psicoterapia foram construídos quatro itens com base na revisão da literatura (e.g., “Quão útil/eficaz foi para si o processo terapêutico?”), medidos numa escala de tipo Likert de 5 pontos (de 1 - Minimamente útil/eficaz a 5 - muito útil/eficaz). Foi calculado o score global e obtido o índice de fiabilidade interna de α = 0,70. Para avaliar a atitude do psicoterapeuta foram construídos nove itens com base na revisão da literatura (e.g., “Senti-me compreendido pelo/a meu/minha terapeuta”, e “Senti-me julgado pelo/a meu/minha terapeuta”), medidos numa escala de tipo Likert de 5 pontos (de 1 - Discordo totalmente a 5 - Concordo totalmente). Foram calculados dois scores globais e obtidos os seguintes índices de fiabilidade interna: (1) Aceitação percebida por parte do psicoterapeuta (5 itens, α = 0,83) e (2) Perceção de preconceito por parte do psicoterapeuta (4 itens, α = 0,79). Finalmente, foram construídos 12 itens para avaliar as atitudes do psicoterapeuta em relação a pessoas LGBT+ com base na revisão da literatura (e.g., “O/A meu/minha terapeuta considerava o meu estilo de vida imoral”), medidos numa escala de tipo Likert de 5 pontos (de 1 - Discordo totalmente a 5 - Concordo totalmente). Foi calculado o score global e obtido o índice de fiabilidade interna de α = 0,97.
Foi também aplicada a versão Portuguesa do Clinical Outcome Routine Evaluation - Outcome Measure (CORE-OM; Sales et al., 2012; Mellor-Clark et al., 1999; Evans et al., 2002). O CORE-OM faz parte do sistema CORE que tem como objetivo a avaliação da eficácia de intervenções psicológicas, podendo ser utilizado em diferentes momentos com intuito de avaliação do cliente antes, durante, e/ou depois da intervenção. A versão -OM destina-se a clientes, sendo uma medida de autorrelato composta por 34 itens divididos em quatro dimensões: Bem-estar subjetivo (4 itens; e.g. “Tenho sentido vontade de chorar), Queixas e sintomas (12 itens; e.g., “Tenho-me sentido tenso/a, ansioso/a ou nervoso”; inclui sintomas de ansiedade, depressão, físicos, e trauma), funcionamento social e pessoal (12 itens; e.g., “Tenho-me sentido terrivelmente sozinho/a e isolado/a; inclui relações próximas e relações sociais), e Comportamentos de risco (6 itens; e.g., “Fiz planos para acabar com a minha vida”; inclui comportamentos auto e heterolesivos). Os itens são medidos numa escala de tipo Likert de 5 pontos (de 1 = Nunca a 5 = Sempre ou quase sempre), e os itens positivos (e.g., “Tenho-me sentido bem comigo próprio/a”) são recodificados para que a pontuação final reflita níveis mais elevados de sofrimento psicológico. Através da média dos itens pode obter-se um score global - Sofrimento Global - e quatro dimensões. Foram calculados os scores globais e por dimensões para a amostra deste estudo, e obtidos os seguintes índices de fiabilidade interna: Sofrimento global (α = 0,95), Bem-estar (α = 0,82), Queixas/Sintomas (α = 0,92), Funcionamento geral (α = 0,86), e Risco (α = 0,79).
Procedimentos
Numa primeira fase, os participantes foram recrutados através de redes sociais e das redes de contato da equipa de investigação. Foi criada uma página no Facebook e um flyer para facilitar a divulgação do estudo e incluído um link para o survey online alojado na plataforma Qualtrics. Numa segunda fase foram contatadas diversas associações e coletivos LGBT+ e solicitada a divulgação do estudo através dos utentes, redes de contatos, e redes sociais das mesmas. Os potenciais participantes foram encaminhados para o survey e foi apresentada a carta de consentimento informado na primeira página do mesmo. A carta de consentimento informado explicava em detalhe os objetivos do estudo, âmbito do estudo, e a equipa de investigação. Foi também incluída informação detalhada sobre os procedimentos éticos, nomeadamente, garantia de anonimato da participação sem recolha de qualquer dado identificativo, garantia de confidencialidade através da partilha exclusiva dos dados entre membros da equipa de investigação, e garantia de participação voluntária através da possibilidade de desistência em qualquer momento e não obrigatoriedade de preenchimento de qualquer questão. Foi solicitado aos participantes o seu consentimento antes de prosseguirem para o preenchimento dos questionários. O projeto de investigação foi aprovado pela Comissão de Ética do ISPA antes do início do período de recolha de dados (Referência I/050/03/2021). Foram seguidos todos os procedimentos estabelecidos pela Declaração de Helsínquia.
Resultados
Saúde mental em pessoas HC e LGBT+
Para comparar os scores obtidos no CORE-OM quanto à saúde mental entre pessoas HC e LGBT+, foram conduzidas ANCOVAs controlando o efeito da idade. Após controlado o efeito da variável idade, foram detetadas diferenças significativas entre os dois grupos no Sofrimento global e nas dimensões Bem-estar, Funcionamento geral, e Risco. Não foram detetadas diferenças significativas apenas na dimensão Queixas/Sintomas (Quadro 1). Assim, as pessoas LGBT+ revelaram piores indicadores de sofrimento global, de bem-estar, de funcionamento geral, e de risco do que as pessoas HC.
Avaliação das experiências de psicoterapia de pessoas LGBT+
Uma percentagem reduzida de participantes LGBT+ (2,5%; n = 8) reportaram ter tido uma experiência de prática de conversão. Considerando as dimensões reduzidas dos grupos de pessoas LGBT+ que tiveram diferentes tipos de experiências psicoterapêuticas, o que impossibilita a comparação entre grupos, apresentam-se apenas os scores médios obtidos para o Sofrimento global e restantes dimensões no Quadro 2. No que diz respeito às pessoas LGBT+ que tiveram uma experiência de prática de conversão, os seus scores médios foram todos mais elevados do que os de pessoas LGBT+ que não foram submetidas a estas práticas. De ressaltar que as pessoas LGBT+ que foram sujeitas a práticas de conversão reportaram quase três vezes mais Risco (que inclui tentativas de suicídio e comportamentos autolesivos) do que as pessoas que não tiveram esta experiência. No que diz respeito aos oito participantes que reportaram terem sido expostos a prática de conversão, apenas um está ainda em processo psicoterapêutico.
Face à inexistência de cut-off scores no CORE-OM para a população Portuguesa, faz-se referência aos scores reportados em estudos clínicos Britânicos (Connel et al., 2007; Evans et al., 2002). O score médio no Sofrimento global deve ser multiplicado por dez, estipulando-se o intervalo para cut-off entre pessoas com e sem sintomatologia clinicamente significativa entre 7,3 e 12,9. Assim, o score obtido pelas pessoas LGBT+ com experiência de prática de conversão é de 18,9, claramente acima do limite máximo do intervalo, enquanto para as pessoas que não foram expostas a esta prática o score é de 13,2, que se encontra ligeiramente acima do limite máximo.
Preditores da saúde mental em pessoas LGBT+
Para avaliar as variáveis associadas à experiência de psicoterapia que expliquem a variância dos scores obtidos no CORE-OM por pessoas LGBT+ foi conduzida uma análise de regressão linear múltipla hierárquica. O score de Sofrimento global foi introduzido como variável dependente, foi introduzida a variável Experiência de prática de conversão no primeiro bloco, e as seguintes variáveis foram introduzidas no segundo bloco: (1) Fase do processo psicoterapêutico (em processo = 0; processo terminado = 1); (2) Eficácia percebida da psicoterapia; (3) Aceitação percebida por parte do psicoterapeuta; (4) Perceção de preconceito por parte do psicoterapeuta; e (5) Atitudes do psicoterapeuta.
O modelo de regressão linear múltipla constituído por seis variáveis associadas às experiências de psicoterapia explicou cerca de 15% dos níveis de Sofrimento global das pessoas LGBT+ que participaram neste estudo; o primeiro bloco explicou cerca de 3% (R 2 adj = 0,028) da variância, F(1,114) = 4,337, p = 0,040, e o segundo bloco cerca de 12% (R 2 adj = 0,121) da variância, F(1,114) = 3,617, p = 0,003. Conforme descrito no Quadro 3, a experiência de prática de conversão foi um preditor significativo no primeiro bloco, enquanto no segundo bloco o preditor significativo foi a fase do processo psicoterapêutico e marginalmente significativo a avaliação do psicoterapeuta. Assim, as pessoas LGBT+ que tenham experienciado uma prática de conversão, que ainda estão em processo psicoterapêutico e que avaliam menos positivamente o seu psicoterapeuta reportam piores indicadores de Sofrimento global.
Discussão
Os objetivos deste estudo foram avaliar os níveis de saúde mental de pessoas LGBT+ e de pessoas HC, e explorar as experiências de psicoterapia de pessoas LGBT+ e o impacto destas experiências na sua saúde mental. Conforme esperado, os resultados evidenciaram piores indicadores de saúde mental em pessoas LGBT+ do que em pessoas HC. Para além disso, uma relevante percentagem dos níveis de saúde mental foi explicada pelo tipo de experiências de psicoterapia de pessoas LGBT+, nomeadamente, a exposição a práticas de conversão e a aceitação percebida do psicoterapeuta.
Estes resultados estão em linha com investigações internacionais que têm evidenciado que os níveis de saúde mental das pessoas LGBT+ são mais baixos do que em pessoas HC, devido às experiências de rejeição, assédio e discriminação, que constituem fatores de stress exclusivos de pessoas LGBT+, crónicos, e baseados no preconceito sexual e de género (Meyer, 2003). Apesar de no presente estudo não terem sido avaliadas as experiências de stress minoritário, estudos portugueses têm confirmado a aplicabilidade e validade do Modelo de Stress Minoritário à população LGBT+ em Portugal (e.g., Gomes et al., 2020; Ribeiro-Gonçalves et al., 2019). Assim, foi identificado que as pessoas LGBT+, quando comparadas com pessoas HC, revelaram piores níveis de sofrimento global, bem-estar, funcionamento geral e risco. Estes resultados sugerem que o preconceito sexual e de género tem impactos negativos em diversas esferas da vida de pessoas LGBT+, nomeadamente, no bem-estar emocional, isolamento ou falta de suporte social, ou ideação e tentativa de suicídio. De ressaltar que as pessoas LGBT+ que participaram neste estudo revelaram quase duas vezes mais comportamento de risco contra o/a próprio/a do que as pessoas heterossexuais, o que está também em linha com investigação internacional (Plöderl et al., 2013; Raifman et al., 2020)
Estas disparidades nos níveis de saúde mental foram parcialmente explicadas pelas experiências de psicoterapia de pessoas LGBT+. Os resultados evidenciaram que a exposição a práticas de conversão, a fase do processo psicoterapêutico e a aceitação do psicoterapeuta explicaram uma percentagem significativa dos níveis de sofrimento psicológico e emocional de pessoas LGBT+. Por um lado, é expectável que as pessoas que estejam ainda em processo psicoterapêutico revelem níveis de saúde mental inferiores àquelas que já tenham terminado o processo, assumindo que o processo psicoterapêutico seja eficaz na redução dos sintomas e na melhoria do bem-estar geral. Por outro lado, a eficácia percebida da psicoterapia, os níveis de preconceito do psicoterapeuta, e as atitudes do psicoterapeuta em relação a pessoas LGBT+ não foram significativamente explicativas dos níveis de saúde mental. Face à escassez de estudos nesta área, torna-se complexa a explicação deste resultado. Contudo, proponho que uma possível explicação se alicerce numa experiência de psicoterapia sentida globalmente como positiva por parte das pessoas LGBT+, mas em que as competências multiculturais e específicas do psicoterapeuta no que diz respeito às pessoas LGBT+ possa estar em falta. Desta forma, a relação estabelecida cliente-psicoterapeuta poderá ser positiva, mas as questões de stress minoritário e seus efeitos possam não ser devidamente explorados e resolvidos por falta de conhecimento ou experiência do psicoterapeuta. Estudos Portugueses (e.g., Moleiro & Pinto, 2009) já tinham reportado as experiências de discriminação de pessoas LGBT+ por psicoterapeutas, apesar de terem a expectativa que os psicoterapeutas tivessem conhecimento e formação necessários a resolver os efeitos negativos do estigma social e discriminação. Estudos futuros poderão corroborar ou infirmar esta hipótese explicativa.
Finalmente, foi encontrada uma prevalência de perto de 3% de pessoas LGBT+ que foram expostas a práticas de conversão. Estudos internacionais recentes têm reportado estimativas de 7% a 22% de pessoas LGBT+ sujeitas a estas práticas (Blosnich et al., 2020; del Río-González et al., 2019), sendo que a dimensão deste intervalo é explicada por dois fatores: (1) a pessoa que conduz os esforços de mudança da orientação sexual ou identidade de género; e (2) a definição de “práticas de conversão” ou de “esforços de mudança” proposta por diferentes investigadores. No que diz respeito ao primeiro fator, alguma da investigação conduzida nesta área tem-se focado nas experiências de prática de conversão e não em experiência de psicoterapia, o que conduz a que muitas das pessoas LGBT+ tenham sido expostas a práticas de conversão não por profissionais de saúde ou psicoterapeutas, mas por líderes religiosos ou outras figuras de autoridade (Mallory et al., 2019). No presente estudo, defini a experiência como processo psicoterapêutico, efetivamente reduzindo o âmbito destas experiências ao contexto clínico. No que concerne ao segundo fator, alguns investigadores têm utilizado definições operacionais de “esforços de mudança” mais amplas e que contemplam experiências subjetivas de preconceito implícito por parte de psicoterapeutas, mas que não configuram prática de conversão explícita. No presente estudo, utilizei uma definição restrita destas práticas. Pode-se assim concluir que tendo em conta o âmbito restrito do contexto de psicoterapia e de práticas de conversão utilizado neste estudo, seria expectável que a prevalência deste tipo de experiências fosse mais reduzida quando comparado com outros estudos. Contudo, acredito que o número de pessoas LGBT+ expostas a práticas de conversão em Portugal tenha sido, ainda assim, subestimado. Por um lado, a dimensão da amostra deste estudo preliminar é relativamente pequena, o que sugere que uma amostra de maior dimensão possa capturar uma maior diversidade de experiências e, consequentemente, uma maior prevalência deste tipo de experiências. Por outro lado, o processo de amostragem utilizado foi não probabilístico, o que poderá ter enviesado a amostra no sentido da participação de pessoas que possam ter tido experiências de psicoterapia mais positivas, enquanto que as pessoas LGBT+ que foram sujeitas a praticas de conversão se sintam mais estigmatizadas e menos disponíveis para refletir e partilhar a sua experiência.
Limitações do estudo
O presente estudo teve algumas limitações que importa reconhecer. Uma primeira limitação diz respeito ao facto de este estudo apresentar dados preliminares de um projeto de investigação mais alargado, e por isso com uma amostra relativamente pequena. Mais, os procedimentos amostrais não probabilísticos e através de survey online podem ter tido impacto nos resultados, uma vez este tipo de desenhos de investigação conduz com frequência a amostras de pessoas com mais formação académica, maior literacia tecnológica e mais jovens, o que poderá não capturar a diversidade de experiências da população em estudo e sobrestimar a prevalência de experiências de psicoterapia mais positivas. Reconheço também limitações em alguns dos instrumentos, nomeadamente, o conjunto de questões desenvolvidas para este estudo ainda sem validação psicométrica. Contudo, a variável central do estudo foi avaliada através de um dos instrumentos mais utilizados internacionalmente para aferir a saúde psicológica (CORE-OM), e devidamente validado para a população portuguesa. Uma última limitação diz respeito ao facto de a dimensão da amostra não ter permitido testar relações mais complexas entre variáveis, como por exemplo o efeito do tempo de psicoterapia ou da fase do processo psicoterapêutico.
Implicações para a prática e políticas de saúde
Com base nos resultados deste primeiro estudo realizado em Portugal sobre as experiências de psicoterapia de pessoas HC e LGBT+, destaco algumas implicações importantes. Em primeiro lugar, confirmou-se que as práticas de conversão, ou mesmo qualquer esforço de mudança da orientação sexual ou de identidade e expressão de género, é prejudicial à saúde mental das pessoas LGBT+, e responsável por três vezes mais probabilidade de suicidalidade do que em pessoas que não tiveram este tipo de experiência durante o seu processo psicoterapêutico. Os participantes que foram expostos a estas práticas apresentaram níveis de sofrimento global clinicamente significativos, o que sublinha a gravidade dos riscos para a sua saúde psicológica. É, por isso, imperativo que os profissionais de saúde mental abandonem este tipo de práticas que não têm qualquer fundamentação científica. Mais, de acordo com a Ordem dos Psicólogos Portugueses, “a OPP condena qualquer tipo de práticas de discriminação, estigma, preconceito ou violência com base na orientação sexual ou identidade de género (…) [e] apoia políticas públicas e legislação que previna e combata a discriminação de pessoas LGBTI+” (OPP, 2021, p. 6), sugerindo-se assim que políticas públicas que impeçam este tipo de práticas devem ser encetadas. Com efeito, em diversos países foi já proposta ou aprovada legislação que proíbe e/ou criminaliza estas práticas como é o caso de vários estados, regiões ou províncias norte-americanos, Canadianas e Espanholas, e no Brasil, Equador e Malta. De acordo com a ILGA World, outras iniciativas estão também em curso em diversos países nomeadamente dos continentes Americano e Europeu (ILGA World, 2020).
Uma outra implicação importante diz respeito à formação de profissionais de saúde mental que deve ser promovida não só pelas associações profissionais como também pelas escolas que formam estes profissionais, nomeadamente, psicólogos e psiquiatras. A falta de formação específica em competências multiculturais, onde se inclui formação sobre a orientação sexual e identidade de género, é significativa em Portugal e observável na quase inexistência destas temáticas nos currículos académicos tradicionais das escolas de psicologia e de medicina. É fundamental que os profissionais de saúde mental tenham formação específica e adequada sobre temáticas LGBT+, assim como atitudes positivas e afirmativas quanto à diversidade sexual e de género por forma a desenvolverem uma prática adequada às necessidades das pessoas que a eles recorrem (Israel et al., 2008).
Agradecimentos
O autor agradece em primeiro lugar a todos/as/xs os/as/xs participantes neste estudo. Um agradecimento às associações, coletivos, e redes LGBT+ e de direitos humanos pelo apoio na divulgação do estudo. Finalmente, um agradecimento a Mariana Charneca e Catarina Santos pela contribuição no desenho de investigação do projeto e pela recolha de dados.