As doações de órgãos no Brasil, até o período de 1997, aconteciam de forma presumida, devidamente regulamentada e com base na Lei nº 9434/97 (ou Lei dos Transplantes de Órgãos), regulamentada pelo Decreto n° 2.268/97. Com a elaboração da lei 10.211/2001, a doação de órgãos humanos no Brasil, passa ser consentida pela família, ou responsável legal do falecido (Cruz, 2019; Santos et al., 2014). A doação de órgãos pode ser entendida como um ato altruístico. Um comportamento pró-social, como apontado nos estudos de Batson et al. (2003) e Gouveia et al. (2010). Na perspectiva da doação de órgãos, a família em dor, enlutada pela perda de seu ente querido, pode se posicionar em se solidarizar com alguém, anonimamente, doar os órgãos de seu ente em morte encefálica (Silva, 2016). As divergências de opiniões frente a tomada de decisão para doação de órgãos entre os membros familiares podem envolver religião, desconfiança frente ao diagnóstico de morte encefálica e o medo de mutilação de corpo (de Brito & Prieto, 2012).
Para Silva (2016), a doação de órgãos é um processo unidirecional. Isso significa que o destinatário não oferece nada em troca pelo benefício obtido. A decisão de doar órgãos prioriza o outro frente à dor ou incertezas do momento vivido. É uma escolha feita quase sempre com pouco tempo para o amadurecimento da ideia e que envolve decisões que podem ser complexas para a família (nos casos post mortem). Na maior parte das vezes, o momento da entrevista familiar é a única oportunidade de obter informações e esclarecer possíveis dúvidas sobre os procedimentos (Cinque & Bianchi, 2010a).
A relevância frente ao tema, “atitudes frente à doação de órgãos”, deu origem à Organs Donation Attitudes Escale (ODAS) (Parizi & Katiz, 1986) com itens relacionados à Convicção e Moral Humana”; medo da “Mutilação do Corpo” e o “Medo da Negligência Médica”. A ODAS teve a sua validade de constructo adaptada em países como a China (Boey, 2002); Inglaterra (Cantwell & Clifford, 2002; Kent & Owens, 1995), na Turquia nos estudos de Yazici Sayin (2016); na Austrália por Moloney (2019), à título de estimular a doação de órgãos. No Brasil, o mesmo instrumento foi adaptado por Silva Junior (2020) buscando confirmar a correlação das atitudes mediante à intenção da doação de órgãos.
Os resultados de Silva Junior (2020), apresentam semelhança de resultados nos estudos de Pompeu et al. (2014). Segundo Silva Junior, os motivos de recusa na doação de órgãos, está na vontade da família de manter o corpo íntegro, a falta de confiança no processo de doação e a falta de sensibilidade por parte dos profissionais de saúde. A atitude empática deve estar contemplada no atendimento à família enlutada, e ocorre quando a ação solidária ganha maior relevância na balança de motivos do que dos temores envolvidos no transplante (Oliveira & Nihei, 2018).
No que se refere à atitude, Allport (1935), pioneiro na temática, discorre sobre o termo como um tipo de diligência em relação à compreensão para certa execução, uma espécie de prontidão mental que pode influenciar na dinâmica do indivíduo para tomada de decisão frente às situações da vida de forma favorável ou desfavorável. Rodrigues et al. (2015) declaram que as atitudes se compõem de afetividades, sentimentos, pró ou contra um objeto social definido, tendo como consequência uma ação coerente com as cognições e afetos relativos ao objeto. Tais componentes podem incitar o comportamento do indivíduo e se baseiam em normas subjetivas. Portanto, pode-se entender a intenção para doação de órgãos influenciada por um conjunto de significados ou representações, atitudes, tendo como consequência o comportamento (ação), fatores orientadores para determinado comportamento (Rezende et al., 2020). De acordo com os estudos sobre as atitudes, cada pessoa tem seu pensamento, ou seja, tem um modelo teórico acerca das experiências desenvolvidas ao longo da vida. Neste sentido, Rodrigues et al. (2015) complementam que, para a psicologia, a formação das atitudes expressa valores que se estruturam em um sistema de compatibilidade ou de oposição.
Considerando que cada país tenha a sua própria legislação frente ao processo de doação de órgãos e, que no Brasil a doação de órgãos é consentida através da lei 10.211/2001, este estudo busca responder a seguinte pergunta problema: quais as possíveis atitudes encontradas, em estudos brasileiros, no período de 2001 a 2019, frente à doação de órgãos.
Método
A busca de publicações científicas foi realizada nas bases de dados indexadas MEDLINE, LILACS e CINAHL. A pesquisa foi operacionalizada em maio de 2020 em conformidade com as recomendações das Diretrizes Metodológicas do Ministério da Saúde (MS, 2012) para a elaboração de revisões sistemáticas.
Pela amplitude do idioma inglês e, por ser este, considerado a língua franca científica, os pesquisadores optaram pelo uso dos descritores neste idioma, sendo adicionado os operadores booleanos: Tissue AND Organ Procurement; Tissue Donors; Attitude to Death; Attitude; Ethics; Emotions; Communication Barriers; Knowledge; Parental Consent; Presumed Consent; Brain Death AND Brazil. Todos avaliados no sistema dos Descritores em Ciências da Saúde (DeCS) e no Medical Subject Headings (MeSH).
Foram considerados os seguintes critérios de inclusão: estudos que identifiquem as atitudes frente ao processo de doação de órgãos humanos; amostragem brasileira; estudos empíricos publicados entre 2001 e 2019, todos em periódicos científicos revisados por pares; não foram estabelecidas restrições quanto ao tipo de delineamento da pesquisa, amostragem e idioma de publicação. E os critérios de exclusão: publicação com indisponibilidade de texto completo; teses, dissertações ou monografias; revisões sistemáticas, integrativas, narrativas ou bibliométricas da literatura.
Após a etapa de triagem dos artigos selecionados nas bases de dados indexadas, realizou-se a leitura dos textos na íntegra. Foram considerados 50 estudos elegíveis para a composição da presente revisão sistemática. Foi utilizado a diretriz de redação PRISMA (Moher et al., 2009) para o desenvolvimento desse estudo sistemático. A Figura 1 refere-se ao fluxograma PRISMA com as etapas do processo de seleção dos artigos elegíveis.
Em relação aos estudos selecionados, a Quadro 1 apresenta a relação dos 50 estudos brasileiros que preenchem os critérios para a presente pesquisa.
Resultados
Os estudos de 2007, 2012, 2015 e 2016 são focados na investigação das atitudes frente à doação de órgãos (Figura 2). Em relação à distribuição por estado, destaca-se a região sudeste (SP, RJ e MG) e o estado do RS (Figura 3).
Os principais achados dos estudos, em relação aos tipos de atitudes frente à doação de órgãos, foram agrupados, (Figura 4), envolvendo 50 artigos listados nas tabelas 2,3,4 e 5.
Categoria 1 - O que é e como é vista a doação de órgãos?
Os artigos incluídos nesta categoria abordam o significado da doação de órgãos por parte dos familiares e a percepção de profissionais de saúde (Quadro 2).
Limitações: (1) da Silva et al., (2018), de Almeida et al., (2003), Galvão et al., (2007), Monteiro et al., (2011), Moraes et al., (2015) apresentaram coletas de dados sujeitas à subjetividade por parte dos entrevistados; (2) de Almeida et al., (2003), de Moraes et al., (2006), Neto et al., (2012), Santos et al. (2016), Teixeira et al., (2012) sem equivalência na seleção da amostragem, podendo desfavorecer os resultados dos grupos avaliados e/ou dos dados sociodemográficos (e.g., gênero, idade, estado civil, entre outros).
Categoria 2 - Dificuldades encontradas na doação de órgãos
Nesta categoria, as dificuldades enfrentadas para aceitação da morte de um parente são a falta de capacitação e o despreparo dos profissionais de saúde para lidar com o possível doador (Quadro 3).
Limitações: Fonseca e Tavares (2015), Fonseca et al. (2016), Quintana e Arpini (2009), Rodrigues e Sato (2002) apresentaram coletas de dados sujeitas à subjetividade por parte dos entrevistados, o que pode gerar um viés de informação.
Categoria 3 - Visões sociológicas sobre a doação de órgãos
Nesta categoria, cinco estudos discutem e apontam valores morais como empatia, solidariedade, altruísmo e compaixão associados ao processo de doação de órgãos (Quadro 4).
Quanto às limitações, os estudos de Fonseca e Carvalho (2005), Silva et al. (2016) e Silva et al. (2019) apresentaram coletas de dados sujeitas à subjetividade por parte dos entrevistados. O estudo de Souza et al. (2019) não apresentou equivalência na seleção da amostragem, o que desfavorece a análise dos resultados na perspectiva dos grupos avaliados e/ou dos dados sociodemográficos.
Categoria 4 - A Doação de Órgãos na Perspectiva dos Familiares
No caso de doador de órgãos intervivos, o potencial doador tende a ser bastante influenciado pelos membros da família a qual pertence. Nesta categoria, os doze (12) estudos buscam entender como os membros da família, do potencial doador, compreendem o processo de decisão de doar, ou não, órgãos (Quadro 5).
Quanto às limitações, Bousso (2008), Fernandes et al., (2015), Lira et al. (2012), Sadala (2001), Santos e Massarollo (2005) apresentaram coletas de dados sujeitas à subjetividade por parte dos entrevistados. A maioria dos estudos apresentou reduzido tamanho amostral.
Discussão
Mesmo com avanços inovadores e tecnológicos importantes para o contexto da doação de órgãos na sociedade, ainda parecem complexas as subjetivas e intersubjetivas ideias frente às famílias com relação às atitudes de doação de órgãos para transplantes (Bedenko et al., 2016; Bispo et al., 2016; Campos et al., 2011; de Jesus et al., 2016; Freire et al., 2015; Gomes et al., 2010; Monteiro et al., 2011; Moraes, et al., 2015; Neto et al., 2012).
A entrevista familiar é apontada como a etapa mais importante na efetivação da doação, no contexto hospitalar, por ser em um prazo tão curto (Moraes & Massarollo, 2009). São muitas as variáveis que envolvem o processo de abordagem e anuência frente à doação. Estas variáveis envolvem desde a habilidade de comunicação, a existência de ambiente adequado para a realização da referida abordagem, o esclarecimento de diagnóstico de morte encefálica, e, principalmente, a sensibilidade por parte dos profissionais de saúde frente às famílias para que aconteça um desfecho positivo na doação (Rossato et al., 2017). Junta-se, também, a estes fatores, a dificuldade na aceitação da morte de um parente (Quintana & Arpini, 2009). A entrevista familiar para doação de órgãos deve ser realizada por um profissional qualificado e competente para tal. Isso se deve em parte às complexidades subjetivas e culturais que envolvem o processo decisório (Roza, 2005). O conhecimento esclarecido por parte dos profissionais de saúde envolvidos nos processos de doação e captação de órgãos, em tempo hábil efetivo e de maneira positiva, pode resultar em uma doação sem resíduos desconfortáveis de comunicação, pelo domínio do conceito de morte encefálica e pelo acolhimento familiar (Santos & Massarollo, 2011). A qualidade do suporte emocional oferecido aos familiares pela equipe de saúde, e o repasse de informações essenciais ao processo decisório podem facilitar o enfrentamento da morte e aumentar a possibilidade de aceite para a doação de órgãos (Amazonas et al., 2021).
Alguns estudos alertam para o desconhecimento da população acerca do processo de doação e transplante de órgãos, especificamente, por parte de potenciais doadores, de profissionais e de estudantes da área de saúde (Santos & Massarollo, 2011). Os pesquisadores sugerem o desenvolvimento de medidas educativas coletivas que visem à desmistificação de preconceitos em relação à doação de órgãos. Um ponto prioritário é incentivar a doação, preferencialmente, em vida, a fim de evitar desconforto aos familiares em relação à decisão sobre a doação de órgãos, pós-morte (Furtado et al., 2021).
Por fim, deve-se investir a qualificação de profissionais de saúde, especificamente, para atuação no processo de captação e transplante de órgãos. Neste contexto, diferentes tipos de propagandas (governamentais, sociais e educativas) podem atuar como recurso para a formação da opinião pública - visando trazer transparência e robustez ao processo de doação de órgãos.
Os estudos reforçam que a disponibilidade, receptividade e capacidade comunicativa dos profissionais de saúde influenciam em relação ao processo decisório da doação de órgãos, seja para a autorização ou negação (Souza et al., 2019). A linguagem acompanhada de atitude empática e sensibilidade para com a dor da família, por parte dos profissionais de saúde, é um momento decisivo e ao mesmo tempo desconhecido para os enfermeiros, médicos, psicólogos e familiares (Santos & Massarollo, 2011; Pessoa et al., 2013; Cajado & Franco, 2016). A atitude profissional, o conhecimento técnico por parte dos enfermeiros, médicos, assistentes sociais e psicólogos, contribuem para se conseguir uma doação efetiva (Fonseca et al., 2016). A pré-disposição empática como atributo diferencial no acolhimento por parte dos profissionais de saúde frente às famílias, bem como a compreensão desenvolvida, a seu tempo, para a aceitação da morte, são importantes na decisão para a doação de órgãos (Moraes et al., 2015). Por fim, a ausência de empatia e o mínimo de compaixão nesse processo pode ser decisivo em positivar, ou negativar, a doação por parte das famílias (Monteiro et al., 2010).
A doação de órgãos é consolidada em razão de atitudes solidárias, incondicionalidade, atitudes de desprendimento e, até mesmo, de renúncia - uma verdadeira virtude social por parte de quem doa, frente à dura realidade da morte encefálica (Roza et al., 2009). O universo das diretrizes envolvendo a ética e moral, no processo de doação de órgãos para transplantes, aponta o enfermeiro e os médicos como os mediadores principais para atuarem com as famílias enlutadas, por serem estes, coadjuvantes no trato do paciente no leito, agora falecido (Santos et al., 2014).
O que se pode concluir, é que o processo de doação e de transplante de órgãos apontam complexidades e fragilidades, obstáculos socioeconômicos e aspectos morais/éticos, além de profundas repercussões socioemocionais em relação aos protagonistas envolvidos nesse processo (familiares do doador, equipe médica e receptor). Atitudes altruísticas e empáticas, bem como a solidariedade, a compaixão, a religião e a qualificação/humanização dos profissionais de saúde que intermedeiam a captação e o transplante de órgãos em si, podem trazer maior confiança acerca das atitudes na doação.
Embora cada família apresente aspectos heterogêneos e particularidades em se tratando das crenças, valores, frente ao binômio vida/morte, nessa revisão, foi possível observar uma tendência de atitude solidária, ou até mesmo altruística, apesar das muitas dúvidas ainda existentes.
Quanto ao papel do Psicólogo, este profissional tem sua mediação secundária ou restrita para o processo de finalização para a doação de órgãos, sendo solicitado, apenas, em possíveis situações de conflito ou descontrole emocional entre as partes envolvidas. É plausível pensar que esse profissional pode ter, portanto, um papel de gerenciador e de mediador de conflitos, trazendo melhor embasamento ao processo.
Por fim, esse estudo não contemplou dissertações, teses, monografias nem documentos governamentais. Assim, recomenda-se que estudos futuros ampliem o escopo de busca, incluindo outros tipos de pesquisas ou documentos relativos à temática.
Registo Prospero: CRD42021225805