De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), “saúde” define-se como um estado de pleno bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de doença ou enfermidade ("Preamble to the Constitution of WHO as adopted by the International Health Conference, New York, 19 June - 22 July 1946; signed on 22 July 1946 by the representatives of 61 States (Official Records of WHO, no. 2, p. 100) and entered into force on 7 April 1948. The definition has not been amended since 1948."). A partir desta definição, torna-se fácil compreender o conceito de “determinantes sociais de saúde” que, também segundo a OMS, dizem respeito às circunstâncias nas quais os indivíduos nascem, crescem, vivem, trabalham e envelhecem (World Health Organization, 2008). Estes determinantes que, tal como o nome indica, afetam a saúde dos indivíduos, incluem a sua vizinhança e o ambiente envolvente, a cultura, o nível e a estabilidade sócio-económicos, a educação, a comunidade e o contexto social, o acesso a alimentação e o acesso aos cuidados de saúde, entre outros (Houlihan & Leffler, 2019; Spruce, 2019). No quadro 1 encontram-se elencados alguns exemplos de determinantes sociais de saúde.
Apesar de estes não serem conceitos novos, vários líderes do setor da saúde estão atualmente mais atentos a estas questões, atendendo à evidência crescente que tem surgido a correlacionar os determinantes sociais de saúde com as consequências para a saúde das populações (Gottlieb et al., 2018; Preda & Voigt, 2015; Spruce, 2019). Aliás, há autores que defendem que os fatores sociais são responsáveis por cerca de 70% dos outcomes de saúde (Jani & Gray, 2019). Assim, em vários países já foram desenvolvidas e estão a ser aplicadas ferramentas para identificar as necessidades sociais dos utentes, através da utilização de medidas validadas de rastreio de risco social e económico (Gottlieb et al., 2018).
Ainda que não existam dados robustos, estima-se que cerca de 20% dos utentes procurem o seu Médico de Família por questões primariamente do âmbito social e cuja intervenção mais apropriada não passa por uma atitude médica/farmacológica (Husk et al., 2019; Jani & Gray, 2019; Roland et al., 2020). A par dos fatores sócio-económicos, também as doenças crónicas, a síndrome de fragilidade, o envelhecimento da população e os consequentes problemas de saúde cada vez mais complexos, afetam negativamente as diversas esferas da vida que, por sua vez, condicionam um declínio da saúde e bem estar dos indivíduos (Drinkwater et al., 2019; Husk et al., 2019).
Urge, portanto, a necessidade de se adotar uma visão holística dos nossos utentes, de forma a irmos de encontro às suas reais necessidades (Spruce, 2019). É desta premissa que surge o conceito de Prescrição Social.
Com esta revisão pretende-se definir o conceito de “prescrição social”, bem como os seus potenciais benefícios e qual a sua evidência.
Métodos
Foi realizada uma pesquisa bibliográfica nas bases de dados PubMed e Cochrane Library com os termos social prescribing e primary care de artigos publicados até 31 de agosto de 2020. Foi efetuada uma pesquisa suplementar nas referências bibliográficas dos artigos seleccionados.
Procedeu-se, ainda, a uma pesquisa livre no motor de busca Google utilizando os termos supra-citados, para identificar literatura cinzenta relacionada com a prescrição social, tendo sido consultados web-sites de programas de prescrição social atualmente vigentes.
Foram ainda consultados documentos técnicos e recomendações/orientações das seguintes organizações: Organização Mundial de Saúde (OMS), Public Health England (PHE) e Administração Regional de Saúde Lisboa e Vale do Tejo, I.P (ARSLVT).
A pesquisa foi restrita a documentos escritos em Português, Inglês e Espanhol.
Resultados
O que é a Prescrição Social e a quem se destina
A Prescrição Social é descrita como uma forma de vincular os utentes dos Cuidados Primários de Saúde a fontes de apoio na comunidade para ajudar a melhorar a sua saúde e bem-estar (Bickerdike et al., 2017). No fundo, é um modelo que oferece aos Profissionais de Saúde a opção de referenciarem os utentes para serviços não clínicos, a par das abordagens médicas tradicionais (Bickerdike et al., 2017; Gottlieb et al., 2018). Ainda que não exista uma definição amplamente aceite, a maioria dos autores e a própria Social Prescribing Network definem prescrição social como um meio que ‘permite aos profissionais de saúde encaminharem os pacientes para um link-worker, de modo a co-projetarem uma prescrição social não clínica para melhorar a sua saúde e bem-estar’ ("University of Westminster. Report of the annual Social Prescribing Network conference. London: University of Westminster, 2016.,"). A hipótese que está subjacente a este conceito é a de que, na abordagem holística de um indivíduo, fornecer uma gama de atividades e intervenções sociais é tão importante como garantir resposta às questões biomédicas (Drinkwater et al., 2019; Kellezi et al., 2019). É, assim, através da prescrição social que se consegue fazer a ponte entre a prática clínica tradicional e os recursos e serviços de suporte do setor comunitário (Drinkwater et al., 2019; Pescheny et al., 2018).
Existem vários tipos de programas de prescrição social descritos até ao momento. Em alguns deles, existe a possibilidade de os indivíduos se auto-referenciarem (Woodall et al., 2018). No entando, o mais comum é que a referenciação seja efetuada por um profissional de saúde ou pelo assistente social, por exemplo, tal como se depreende pela definição de Prescrição Social da Social Prescribing Network, explicitada no parágrafo anterior. Portanto, e assumindo essa definição, o profissional de saúde que se depare com um paciente que poderá, potencialmente, beneficiar de um programa de Prescrição Social, deverá referenciá-lo (Kellezi et al., 2019). Uma vez referenciado, e segundo a maior parte dos programas descritos, o utente será avaliado por um link-worker, o qual tem a função de avaliar as necessidades sociais do indivíduo e apresentar-lhe as opções de serviços e grupos da comunidade que este pode integrar no âmbito da Prescrição Social (Bickerdike et al., 2017). Torna-se, por isso, fundamental, que este link-worker possua competências, por um lado, para avaliar o indivíduo como um todo de forma a perceber as suas necessidades e, por outro, que seja conhecedor da comunidade onde ele se insere (Woodall et al., 2018). Na Figura 1 está esquematizada a via de referenciação mais comumente descrita na literatura. No quadro 2 encontram-se elencados alguns exemplos de atividades incluídas em programas de Prescrição Social.
Os programas de Prescrição Social têm-se focado, essencialmente, em indivíduos idosos, pessoas com problemas de saúde mental e aqueles que vivem em situações social e economicamente precárias (Roland et al., 2020), bem como aqueles que têm doenças crónicas (Husk K, 2019).
Quais os Objetivos e Potenciais Benefícios da Prescrição Social
Atendendo ao seu conceito, a Prescrição Social é um modelo desenhado para abordar as necessidades sociais dos indivíduos e reduzir a utilização dos serviços de saúde primários, ao melhorar o seu bem-estar e ao fornecer-lhes ferramentas de auto-gestão de saúde (Kellezi et al., 2019). Dados de estudos recentes demonstram que alguns programas de Prescrição Social conduziram a melhorias da qualidade de vida, bem-estar geral e envolvimento comunitários dos participantes, bem como a uma redução de sentimentos de solidão, ansiedade, problemas emocionais e urtilização de cuidados de saúde (Bickerdike et al., 2017; Kellezi et al., 2019; Leavell et al., 2019). Alguns participantes dos programas descritos nestes estudos descreveram uma relação entre os sentimentos de conexão social e o seu sentido de confiança e de propósito de vida (Woodall et al., 2018). Referem mesmo que a oportunidade de participar em grupos da comunidade, facilitada pelo serviço de prescrição social, lhes permitiu a partilha de experiências o que, em última análise, os tornou capazes de ver as coisas de outra perspetiva e perceber que outros passavam pelas mesmas situações (Woodall et al., 2018).
Os objetivos dos programas de Prescrição Social podem ser, por isso, divididos em objetivos a nível individual e objetivos a nível do sistema, os quais, por sua vez, englobam uma série de objetivos mais específicos e concretos (Rempel et al., 2017). (Quadro 3)
Que Evidência existe até ao momento
Apesar do interesse nesta área estar em expansão e de alguns autores defenderem que a prescrição social é uma forma de atender às necessidades de saúde dos indivíduos e comunidades, bem como uma solução para a sobrecarga dos serviços de saúde, a verdade é que ainda não existe evidência franca da sua eficácia (Husk K, 2019; Woodall et al., 2018). Isto deve-se, em primeira instância, ao facto de ainda não existir uma base teórica bem estruturada que fundamente estas práticas de prescrição social, o que faz com que seja difícil identificar os “ingredientes-chave” da prescrição social e os processos específicos através dos quais estas iniciativas podem reduzir a solidão, melhorar a saúde e reduzir os encargos de saúde (Kellezi et al., 2019). Depois, o facto de os estudos terem amostras pequenas, um curto período de seguimento, a falta de grupo-controlo, a ausência de ferramentas de medida validadas e padronizadas e a perda de participantes durante o seguimentos, são também fatores que contribuem para as falhas metodológicas que não permitem tirar ilações generalizáveis a partir dos resultados dos mesmos (Bickerdike et al., 2017).
A falta de evidência robusta sobre a eficácia da prescrição social não significa, contudo, que esta seja totalmente ineficaz e inútil (Drinkwater et al., 2019). De facto, apesar das imperfeições metodológicas supra-citadas, grande parte das avaliações apresentaram conclusões positivas, a favor da prescrição social (Bickerdike et al., 2017). Dados de estudos qualitativos sugerem que os utentes estão satisfeitos com os esquemas de prescrição social, valorizando particularmente a relação de confiança e suporte que estabeleceram com o link-worker, o conhecimento deste acerca dos serviços disponíveis na comunidade e do tempo e espaço que lhes foram disponibilizados para abordar os seus problemas sociais (Faulkner, 2004; Moffatt, 2017; South, 2008; Wildman, 2019). Aliás, revisões sistemáticas recentes acerca de intervenções comunitárias não clínicas identificaram alguns benefícios para os utentes, nomeadamente no que concerne ao bem-estar mental, adoção de comportamentos saudáveis e redução de sentimentos de solidão (Bickerdike et al., 2017; Chatterjee, 2018; Drinkwater et al., 2019). Segundo alguns estudos, além dos efeitos positivos nos utentes, através da melhoria da qualidade de vida e bem-estar emocional, também se registaram melhorias no recurso aos cuidados de saúde primários e outros serviços de saúde, nomeadamente uma redução média de 28% (2-70%) na procura de cuidados primários e uma redução média de 24% (8-26,8%) na procura dos serviços de urgência (Jani & Gray, 2019). No entanto, também há relatos que dão conta de uma maior procura dos serviços de saúde, com um aumento médio de 5-15%, nomeadamente dos CSP, após a participação dos indivídos nos programas de prescrição social, sendo este achado atribuído ao facto de os utentes tomarem uma maior consciência do seu estado de saúde (Rempel et al., 2017; Woodall et al., 2018).
Discussão
Todos os médicos, ao longo da sua formação, aprendem acerca do modelo biopsicossocial e dos determinantes sociais de saúde. Não obstante, estes profissionais de saúde nem sempre recebem formação sobre a forma como devem gerir as situações em que os utentes se apresentam com problemas e preocupações não médicas, mas antes maioritariamente relacionadas com questões sociais. Nestes casos, em que os indivíduos procuram os cuidados de saúde por questões puramente sociais ou um misto de fatores médicos e sociais, pode ser útil uma abordagem alternativa, que passa pela referenciação destes a intervenções sociais existentes na sua comunidade. Assim, é neste ponto em que a Prescrição Social pode ser introduzida e alterar o paradigma atual. Além de ajudar os indivíduos a lidarem com certas questões de saúde, os programas de Prescrição Social têm um objetivo mais amplo, que envolve uma mudança cultural e de mentalidades, capacitando os indivíduos na gestão da sua saúde e doença.
Porém, os médicos muitas vezes desconhecem os recursos da comunidade ou não sabem como referenciar os utentes para os mesmos. Daí a importância da implementação de programas de Prescrição Social organizados.
Por outro lado, é necessário que a comunidade esteja dotada de recursos para dar resposta a estas questões, o que facilmente se compreende através do comentário de McNally a propósito desta questão: “Da mesma forma que a prescrição farmacológica de um médico só pode melhorar a saúde se o paciente tiver acesso a uma farmácia bem abastecida, também os esquemas de prescrição social dependem de uma comunidade bem abastecida.” (McNally, 2018).
Posto isto, a prescrição social tem potencial para melhorar os cuidados prestados aos utentes dos cuidados primários de saúde. No entanto, são necessários mais e melhores estudos na área para provar o seu verdadeiro valor, uma vez que os que foram realizados até ao momento apresentam algumas falhas metodológicas que não permitem provar a eficácia da Prescrição Social.