A terapia cognitivo-comportamental (TCC) emergiu na prática clínica na segunda metade do século XX, como alternativa à psicoterapia psicodinâmica, dominante na altura. Apresentava como benefícios, em comparação, uma maior aplicabilidade, difusão e capacidade de medição de resultados, sendo que nas décadas que se seguiram tornou-se numa das psicoterapias mais utilizadas e apoiadas pelas recomendações internacionais de tratamento, muitas vezes como intervenção de primeira linha (Barlow et al., 2016). No seguimento deste sucesso, no início do século XXI, acumulavam-se já uma miríade de protocolos manualizados específicos para cada perturbação, a maioria destes validados cientificamente (Gros et al., 2016). Estes protocolos baseiam-se na assumpção que diferentes patologias têm diferentes modelos cognitivo-comportamentais etiológicos e que, assim, necessitam de intervenções específicas (Mansell et al., 2009). Patologias como a perturbação de pânico (PP), perturbação de ansiedade social (PAS), perturbação depressiva major (PDM) ou perturbação obsessivo-compulsiva (POC), apresentam actualmente vários protocolos de TCC baseados na evidência, para o clínico escolher de acordo com a sua formação (Gros et al., 2016).
É indubitável o benefício que estes protocolos trouxeram à prática clínica (Schaeuffele et al., 2021). Apesar disto, várias limitações têm sido descritas ao longo dos últimos anos. Em primeiro lugar, o elevado número de protocolos que os técnicos devem aprender, envolvendo um elevado esforço temporal e financeiro (Barlow et al., 2016). Esta dificuldade no acesso e consequentemente na disseminação destas intervenções, tem sido sublinhada por várias organizações, nomeadamente o National Institute of Mental Health e o Department of Veteran Affairs (Gros et al., 2016). Noutro aspecto, estes protocolos incluem, na sua maioria, elementos semelhantes, baseados nos mesmos princípios teóricos e aplicáveis praticamente de forma idêntica (Harvey et al., 2004). Por último, destaca-se a dificuldade em acomodar a estrutura dos protocolos à presença de comorbilidades, algo que afecta cerca de 40% dos doentes (Schaeuffele et al., 2021).
Nas últimas décadas, e no seguimento da elevada comorbilidade diagnóstica atrás referida, tem sido encontrada evidência que sugere uma base neurobiológica comum para várias perturbações mentais (Caspi et al., 2014). Nesse sentido, têm sido desenvolvidos sistemas classificativos alternativos como o Research Domain Criteria ou o Hierarchical Taxonomy of Psychopathology, que procuram afastar-se dos diagnósticos categoriais e aproximar-se de uma visão dimensional das patologias (Schaeuffele et al., 2021). De forma equivalente, na TCC tem sido proposta a existência de mecanismos cognitivo-comportamentais etiológicos e de manutenção semelhantes para diversas perturbações mentais, complementares a eventuais mecanismos específicos (Barlow et al., 2016).
A partir desse movimento teórico, nos últimos anos tem sido proposta a TCC transdiagnóstica como forma de endereçar as limitações da TCC convencional e actuar perante os mecanismos partilhados por diversas patologias (Fusar-Poli et al., 2019). Nesta revisão procura-se abordar o surgimento deste conceito, a sua base conceptual, efectividade e reflectir sobre a sua aplicabilidade na prática clínica.
Método
Foi efectuada uma revisão bibliográfica não-sistemática de artigos científicos publicados desde janeiro de 2000 até julho de 2021, através da base de dados Pubmed/Medline, usando as seguintes palavras-chave: transdiagnostic; cognitive-behavioral therapy; treatment outcome. Os artigos foram escolhidos de acordo com a sua relevância para o objecto de estudo. Foram, de igual modo, procuradas referências bibliográficas adicionais que surgissem citadas nos artigos ou trabalhos obtidos.
Resultados
Emergência do Conceito de Terapia Cognitivo-Comportamental Transdiagnóstica
O prefixo “trans” tem origem no latim e pode significar “através” ou “para além de” (Fusar-Poli et al., 2019). Cedo no desenvolvimento da TCC, foram destacados princípios que poderiam ser aplicados a várias condições, nomeadamente o condicionamento clássico ou operante, bem como o seu tratamento através de exposição (Mansell et al., 2009). Eram também sublinhados mecanismos como as distorções cognitivas (p.e. generalização, personalização ou catastrofização) que estavam presentes em diferentes patologias, mas com diferentes apresentações (Harvey et al., 2004). No entanto, a TCC evoluiu no sentido de desenvolver intervenções específicas para cada perturbação, alicerçadas na definição de diferentes processos patológicos entre si. Contudo, foi a partir da década de 90 que começaram a ser publicados trabalhos que questionaram esta visão e sugeriram a existência de elementos cognitivo-comportamentais partilhados por várias patologias, como é exemplo a atenção auto-focada, no estudo seminal publicado por Ingram em 1990 (Mansell et al., 2009).
Este movimento acontecia ao mesmo tempo em que se começava a questionar a visão dominante da classificação de perturbações mentais. De facto, a ideia de que a nosologia psiquiátrica actual, baseada na classificação da Organização Mundial de Saúde (International Classification of Disorders) e da Associação Americana de Psiquiatria (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders), é insuficiente na sua utilidade clínica e investigacional tem sido apoiada por um número crescente de autores (Dalgleish et al., 2020). Estes manuais, apesar do reconhecido benefício ao longo das últimas décadas na organização da investigação e intervenção clínica, têm sido criticados por serem uma “prisão epistémica” (Hyman, 2010, p.157). No seu lugar e à luz do conhecimento científico actual, tem sido apoiada uma abordagem transdiagnóstica, que procura atravessar os limites entre os diagnósticos, alterando a taxonomia dominante e reconceptualizando os processos que conduzem a uma perturbação mental, originando igualmente novas formas de pensar o tratamento destas patologias (Dalgleish et al., 2020).
O modelo transdiagnóstico em psiquiatria influenciou o surgimento de intervenções transdiagnósticas, apesar de na sua maioria se manterem independentes do mesmo (Dalgleish et al., 2020). A ideia estruturada de uma TCC transdiagnóstica apareceu inicialmente associada ao tratamento de perturbações do comportamento alimentar (PCA), no início do século XXI (Fairburn et al., 2003). Esta abordagem baseia-se na premissa de que os mesmos princípios terapêuticos podem ser aplicados a várias perturbações mentais, sem necessidade de ajustar os protocolos de tratamento a cada uma delas (Norton & Roberge, 2017).
Actualmente, o desenvolvimento de TCC transdiagnósticas é alicerçado nos seguintes pontos:
heterogeneidade clínica e elevada percentagem de comorbilidades - tendo em conta estes elementos, os quadros clínicos que se apresentam para tratamento são mais frequentemente complexos do que simples. A existência de comorbilidades implica a necessidade de discriminar qual a ordem de tratamento das patologias, a necessidade de combinar elementos de diferentes técnicas e de tomar decisões que acabam por não estar validadas cientificamente. Neste aspecto, um modelo transdiagnóstico tem uma clara vantagem no tratamento de comorbilidades, de uma forma estruturada e baseada na evidência. Alguns autores têm destacado que este modelo é especialmente promissor para os cuidados de saúde primários, onde o diagnóstico diferencial é muitas vezes incerto e onde a comorbilidade é a norma. De forma equivalente, diagnósticos que incluem a caracterização “sem outra especificação” não possuem tratamentos psicológicos validados e correspondem habitualmente a patologias heterogéneas, podendo melhor ser endereçadas com este modelo (Norton & Roberge, 2017).
reduzida efectividade dos tratamentos actuais - existe a necessidade de aumentar a taxa de resposta aos tratamentos psicológicos existentes, os quais apenas conseguem atingir uma resposta clínica em 40-70% dos pacientes, dependendo do diagnóstico. A evidência actual indica que a existência de comorbilidades agrava o prognóstico (Dalgleish et al., 2020).
disseminação e acessibilidade da TCC - a complexificação crescente do diagnóstico das perturbações mentais, levou ao desenvolvimento e aperfeiçoamento de vários manuais de TCC específicos para cada patologia, enfatizando as características clínicas que poderão diferenciar as diferentes condições. Isto leva a que os técnicos tomem contacto com múltiplos protocolos de tratamento baseados na evidência, alguns dos quais devem dominar. Isto requer um elevado compromisso financeiro e temporal dos profissionais, de forma a completar o treino e a supervisão necessários para que posteriormente possam aplicar os protocolos com competência e fiabilidade. Isto origina, frequentemente, dificuldades na existência de técnicos capazes de aplicar os protocolos de tratamento, limitando o número de pacientes que têm contacto com estes. Autores que apoiam o modelo transdiagnóstico defendem que, focando o treino em apenas um protocolo aplicável a várias patologias, isto irá aumentar o número de profissionais capazes de aplicar tratamentos baseados na evidência a vários diagnósticos, mitigando as dificuldades na acessibilidade ao tratamento para um número elevado de pacientes (Gros et al., 2016).
existência de processos transdiagnósticos comuns - a investigação em torno da TCC transdiagnóstica tem-se apoiado na ideia de que existem modalidades de tratamento semelhantes entre os vários protocolos de TCC desenvolvidos específicos por patologia, apesar de existirem princípios distintos entre estas duas abordagens, como se pretende explicar no quadro 1. No modelo transdiagnóstico da TCC, existe, habitualmente, a incorporação de técnicas de reestruturação cognitiva e exposição, em diferentes perturbações afectivas e de ansiedade, elementos frequentemente presentes na TCC convencional. Isto prende-se, geralmente, com a conceptualização de que estas patologias partilham os mesmos processos cognitivos (p.e. crenças exageradas relacionadas com a ameaça do estímulo desencadeante) e processos comportamentais, como a resposta condicionada de medo após a apresentação do estímulo desencadeante de medo e o reforço operante dos mecanismos de coping que diminuem este medo (Harvey et al., 2004; Norton & Roberge, 2017). Este tema será aprofundado na próxima secção.
Apesar de elencadas várias semelhanças, os autores que advogam o modelo transdiagnóstico reconhecem que existem características que podem fazer diferenciar um ou outro diagnóstico (p.e. complicações, subtipos ou determinadas comorbilidades), mas que existe uma maior utilidade clínica em colocar o foco nos factores comuns (Norton & Paulus, 2017).
Processos Transdiagnósticos
Ao longo das últimas décadas tem existido um interesse crescente na área da TCC em identificar processos comuns entre as várias patologias (Mansell et al., 2009). Como referido previamente, em 1990, Ingram descreve a atenção auto-focada como um conceito patológico presente em várias perturbações, variando apenas o conteúdo a que se refere essa atenção e consequentes pensamentos (Ingram, 1990). Desta forma, acabou por propor um modelo que diferenciava entre características psicopatológicas centrais partilhadas entre patologias, e outras características específicas que se referiam ao conteúdo dos esquemas e que permitiam distinguir as patologias entre si. Esta definição acaba por se alinhar com o conceito actual de processo transdiagnóstico (Mansell et al., 2009).
Na sua revisão inicial, Harvey e colaboradores identificaram vários processos transdiagnósticos em TCC, que se encontram descritos no quadro 2. Desde então, outros processos têm sido descritos (p.e. perfeccionismo ou intolerância à incerteza), divergindo na sua abrangência (Harvey et al., 2004).
No quadro 3, estão elencados alguns dos processos transdiagnóstico mais consensuais e os protocolos de TCC desenvolvidos especificamente para o seu tratamento, alguns englobando terapias descritas na actualidade como TCC de terceira geração.
Procura-se agora descrever os processos transdiagnósticos mais investigados na literatura:
a) Cognitivos
Atenção selectiva - refere-se à priorização de determinados estímulos no ambiente interno ou externo para posterior processamento. O viés atencional manifesta-se quando existe uma tendência contínua para prestar particular atenção a um determinado estímulo, estando habitualmente relacionado com as preocupações da pessoa. Alterações na atenção selectiva externa são encontradas frequentemente em perturbações de ansiedade, PCA e perturbações psicóticas. Em relação à atenção selectiva interna ou atenção auto-focada, torna-se mais difícil de avaliar, uma vez que se refere ao foco em estados físicos, sentimentos, pensamentos, memória ou emoções. Alterações na atenção selectiva interna acontecem na depressão, perturbações de ansiedade, POC e dor crónica. O evitamento atencional, isto é, a tendência sistemática para evitar contactar com determinados estímulos, pode ser vista como outra forma de atenção selectiva, sendo a evidência consistente com um processo transdiagnóstico, sobretudo nas perturbações de ansiedade, afectivas e psicóticas. Apesar da extensa investigação que sugere a presença de alterações na atenção selectiva em vários diagnósticos, permanece a dúvida sobre o seu papel causal ou de manutenção dos quadros clínicos (Mansell et al., 2008).
Memórias recorrentes intrusivas - tratam-se de memórias que habitualmente se referem a experiências com elevada carga emocional e que ocorrem na forma de imagens vívidas, provocando intenso sofrimento. Estas foram descritas na perturbação de stress pós-traumático (PSPT), perturbação dismórfica corporal, PDM, perturbações psicóticas e perturbação afectiva bipolar (Hackmann & Holmes, 2004).
Supressão de pensamento - refere-se ao processo cognitivo de bloquear pensamentos perturbadores. Encontra-se presente na PDM, PSPT, PAG, POC e fobias específicas (Purdon, 1999). Habitualmente, apresenta-se em conjunto com outras estratégias de evitamento (Mansell et al., 2009).
Pensamento negativo recorrente - trata-se do processo de repetidamente e de forma perseverante ruminar sobre temáticas negativas, como na ruminação depressiva ou preocupação ansiosa. Encontra-se elevado em várias patologias, nomeadamente PAS, PAG, PDM, PTSD, perturbação de sono e esquizofrenia. No caso da PDM e PAG, existe evidência de que a ruminação prediz tanto os sintomas depressivos, como ansiosos no futuro, sugerindo uma relação causal (Ehring & Watkins, 2008).
Regulação emocional maladaptativa - refere-se a estratégias de regulação emocional que estão na origem de sintomas ou de outros resultados negativos. Encontra-se presente em PCA, perturbações de ansiedade, depressivas, e perturbação do uso de substâncias (PUS) (Aldao et al., 2016).
Neuroticismo - refere-se ao traço de experienciar afectos negativos, incluindo ansiedade, depressão, raiva, auto-consciência, irritabilidade e instabilidade emocional. Tratam-se, habitualmente, de indivíduos que respondem mal ao stress no ambiente que os rodeia, interpretando situações mínimas como ameaçadoras ou de elevado sofrimento. Está presente nas perturbações depressivas, de ansiedade e PUS (Barlow et al., 2013).
b) Comportamentais - a literatura existente sobre modelos comportamentais apoia, geralmente, um modelo transdiagnóstico de aquisição, manutenção e generalização do medo, com respostas de evitamento. Globalmente, os manuais de terapia comportamental destacam a associação entre o estímulo e o resultado aversivo, com pouco ênfase na natureza do estímulo em si. Apesar de por vezes se destacar que um indivíduo poderá estar mais preparado para aprender certas associações do que outras, a evidência sugere, pelo contrário, que existe um processo comum de aprendizagem do medo a diversos estímulos, independente destes. Contudo, mesmo os autores que apoiam o modelo transdiagnóstico destacam que podem existir diferenças entre determinadas patologias ou subtipos destas. Ainda assim, a investigação tende a apontar para um processo comportamental comum (Norton & Paulus, 2017).
Apesar da identificação destes processos transdiagnósticos, Morris e Mansell sugeriram que pode ser a aplicação rígida e inflexível dos processos, em vez dos processos em si, que associa estes mecanismos à psicopatologia (Morris & Mansell, 2018).
Noutro aspecto, torna-se importante reflectir sobre a razão de quadros clínicos que aparentemente têm uma base comum, terem uma apresentação tão díspar. Klinger foi o primeiro autor a apontar a importância das preocupações actuais do indivíduo na expressão sintomática do processo transdiagnóstico. Este conceito acaba por englobar também a personalidade, a cultura e a história de vida do indivíduo (Klinger, 2016). Em segundo lugar, as patologias poderão variar nos processos transdiagnósticos que utilizam e na sua quantidade, alterando também aí a expressão fenotípica (p.e. um indivíduo cujo processo principal é o pensamento negativo recorrente pode ter mais facilmente critérios para uma PAG) (Harvey et al., 2004). Em último lugar, alguns autores levantaram a hipótese de haver processos distintos específicos para determinadas apresentações fenotípicas, apesar de existir pouca evidência que a apoie (Mansell et al., 2009).
Protocolos de Tratamento Baseados em TCC Transdiagnóstica
Ao longo da história das psicoterapias, têm existido correntes teóricas que têm colocado menos ênfase no diagnóstico do indivíduo e mais em características do próprio, como no caso da terapia psicodinâmica, os conflitos e mecanismos de defesa. Pode-se afirmar que esta é já uma abordagem intrinsecamente transdiagnóstica em relação à psicopatologia. Outro exemplo é a terapia sistémica, que não baseia os seus tratamentos em diagnósticos formais, mas sim na dinâmica familiar que contribui para o desenvolvimento ou manutenção dos sintomas (Schaeuffele et al., 2021).
Na área da TCC, com a expansão nas últimas décadas de protocolos de tratamento específicos por doença, tem-se vindo ao mesmo tempo a observar o desenvolvimento das TCC de terceira geração (p.e. terapia de aceitação e compromisso ou terapia metacognitiva) (Schaeuffele et al., 2021). Estas acabam por poder ter uma aplicação transdiagnóstica, com pequenas variações consoante o diagnóstico. Contudo, foi apenas recentemente que foram desenvolvidas TCC transdiagnósticas, ou seja, com uma perspectiva conceptual e de aplicabilidade puramente transdiagnóstica (Gros et al., 2016).
A abordagem transdiagnóstica divide-se em intervenções unificadas (“igual para todos”) e em intervenções modulares (adaptáveis ao indivíduo) (Norton & Roberge, 2017). No caso da primeira, o facto de se poder aplicar universalmente uma intervenção, sem qualquer adaptação, tem a vantagem de facilitar o treino, a aplicação clínica e a disseminação, apesar de ser menos flexível na adaptação a características individuais dos pacientes, o que pode diminuir também a sua satisfação (Norton & Paulus, 2017). No caso da última, a adaptação pode significar a escolha de sequências individuais ou módulos de acordo com os sintomas presentes, seja por adição ao programa de tratamento ou por combinação de programas, aumentando potencialmente a resposta (Norton & Paulus, 2017). Tanto no caso de intervenções unificadas como de modulares, a diferença existe na abrangência da vertente transdiagnóstica. Isto é, existem intervenções que são aplicáveis dentro de um grupo diagnóstico (p.e. PCA ou perturbações de ansiedade) e outras que não têm qualquer limite na sua aplicação (p.e. protocolo unificado, desenvolvido por Barlow e colaboradores) (Schaeuffele et al., 2021).
Em seguida procura-se exemplificar os programas de tratamento de TCC transdiagnóstica mais validados e difundidos:
1 - Intervenções Unificadas
Protocolo unificado de tratamento para perturbações emocionais - trata-se de um dos programas mais difundidos e estudados. Baseia-se no processo basilar transdiagnóstico de aumento no afecto negativo ou pensamento negativo recorrente e evitamento dos mesmos. Em termos terapêuticos, incorpora três princípios: aumento da percepção consciente das emoções, aumento da flexibilidade cognitiva e redução do evitamento emocional. Divide-se em 8 módulos que podem ser aplicados de forma flexível. Os módulos primários incluem conhecimento emocional, flexibilidade avaliativa, prevenção de evitamento e exposição, podendo ser aumentados com módulos que enfatizam a motivação, compreensão das emoções, tolerância de emoções físicas e prevenção de recaída (Barlow et al., 2011). Uma meta-análises recente de 2019 encontrou resultados estatisticamente significativos na redução de sintomas de ansiedade e depressão (Schaeuffele et al., 2021).
TCC transdiagnóstica para perturbações do comportamento alimentar - uma das intervenções pioneiras desenvolvida por Fairburn e colaboradores, que no início do século XXI advogou por uma base comum entre estas patologias, alicerçada em quatro mecanismos: perfeccionismo, baixa auto-estima, intolerância afectiva e dificuldades interpessoais. Ao longo dos anos, esta intervenção tem sido comparada com TCC convencional, com resultados semelhantes. Contudo, os doentes com défices nos quatro mecanismos propostos, parecem beneficiar mais da intervenção transdiagnóstica, o que muitas vezes se relaciona com quadros mais graves (Fairburn et al., 2003).
Protocolo de tratamento de grupo para ansiedade - é uma intervenção de grupo desenvolvida por Norton e colaboradores, consistindo em 12 sessões focadas em componentes clássicas de TCC como psicoeducação, reestruturação cognitiva, exposição e prevenção de recaídas. Numa segunda parte da intervenção, é trabalhada, por técnicas cognitivas, a percepção de descontrolo, imprevisibilidade e ameaça, que são características partilhadas por várias perturbações de ansiedade. Estudos aleatorizados e controlados com tratamentos de grupo específicos por diagnóstico revelaram não-inferioridade (Norton & Roberge, 2017).
2 - Intervenções Modulares
Modular Approach to Therapy for Children (MATCH) - trata-se de um dos primeiros protocolos de tratamento modulares, desenvolvido para crianças e adolescentes, com uma variedade de aplicações, nomeadamente, perturbações de ansiedade, depressão e desmandos de conduta. A intervenção tem um total de 33 módulos para selecção e utiliza um algoritmo orientador para a escolha dos módulos, apesar de poder ser aplicável de forma flexível se houver uma fraca resposta. Existem dois estudos aleatorizados e controlados que compararam o MATCH ao tratamento padrão, sendo o MATCH superior em termos de resultados clínicos e com menor número de sessões (Chorpita et al., 2017; Norton & Paulus, 2017).
Common-Elements Treatment Approach (CETA) - é uma intervenção individualizável para sintomas depressivos, de ansiedade, PSPT e PUS, inicialmente desenvolvida para países em vias de desenvolvimento. Contém nove módulos, desde reestruturação cognitiva até resolução de problemas. A selecção dos módulos é realizada a partir de um questionário de auto-preenchimento de vários sintomas, em combinação com a entrevista clínica. Estes módulos poderão depois ser alterados ao longo da terapia, de acordo com o progresso clínico. Existem dois estudos aleatorizados e controlados que evidenciaram razoável efectividade nas patologias previamente descritas. Destaca-se aqui a possibilidade de treinar indivíduos leigos para a aplicação deste protocolo, sob a supervisão de técnicos (Schaeuffele et al., 2021).
Estes protocolos de tratamento têm elementos comuns com a TCC convencional e entre si. Em primeiro lugar, a psicoeducação, referindo-se ao fornecimento factual de informação referente à natureza e às causas das patologias, assim como à explicação das componentes da intervenção. Outro componente comum é a reestruturação cognitiva que se refere a várias técnicas que procuram auxiliar os pacientes a identificar vieses ou percepções imprecisas de medo ou de estímulos provocadores de ansiedade. Envolve a identificação de crenças distorcidas como catastrofização ou sobre-estimação de probabilidades e a geração de cenários menos ansiogénicos. Por último, a terapia de exposição é igualmente um dos elementos mais comuns, envolvendo o confronto gradual com o estímulo provocador de medo, habitualmente de forma gradativa da menor para a maior capacidade de provocar ansiedade. A prevenção de resposta é também uma característica importante desta técnica, com a voluntária supressão de comportamentos de segurança, permitindo a reavaliação cognitiva da ameaça durante a exposição. Na TCC convencional, a terapia de exposição depende do estímulo específico a tratar (p.e. sensações corporais na perturbação de pânico ou estímulos externos nas fobias específicas), contudo, na TCC transdiagnóstica, a ênfase não é em protocolos específicos para cada uma destas patologias, mas sim na identificação e exposição gradual ao estímulo provocador de ansiedade, de uma forma flexível (Norton & Roberge, 2017).
Em termos de evidência a curto prazo, existem múltiplos estudos que foram alvo de revisões sistemáticas e meta-análises que confirmaram a TCC transdiagnóstica como uma técnica efectiva no tratamento de perturbações de ansiedade e depressivas, havendo igualmente uma significativa melhoria na qualidade de vida. Existem poucos trabalhos que comparam TCC transdiagnóstica com TCC convencional (Newby et al., 2015). Uma meta-análise mais recente, também em relação às perturbações de ansiedade, encontrou uma redução sintomática maior com TCC transdiagnóstica em relação a TCC específica por diagnóstico, sendo esta estatisticamente significativa (Pearl & Norton, 2017). Em termos de resultados a longo prazo, existem apenas 2 estudos de seguimento. São, em ambos os casos, ensaios abertos, com um reduzido número de participantes. A 6, 12 e 24 meses não se observaram diferenças significativas nos resultados clínicos obtidos, em comparação com o pós-tratamento imediato (Norton & Roberge, 2017).
Em relação ao efeito nas comorbilidades, vários estudos têm procurado confirmar a premissa que a TCC transdiagnóstica é também efectiva nos diagnósticos comórbidos não-primários. Norton e colaboradores realizaram três ensaios com TCC transdiagnóstica e reportaram taxas de remissão de 67% em participantes com múltiplos diagnósticos, comparando estes dados com sete ensaios de TCC convencional, onde uma população semelhante atingiu apenas remissão em 41% dos casos (Norton et al., 2013). Noutro estudo, Talkovsky e colaboradores reportaram taxas de remissão pós-tratamento com TCC transdiagnóstica de 71,4% para indivíduos com comorbilidade diagnóstica de perturbações depressivas, contudo trata-se de um estudo não controlado (Talkovsky et al., 2017). Em suma, estas intervenções parecem ter um benefício adicional na presença de comorbilidades, contudo os estudos são ainda escassos e com limitações metodológicas. No sentido contrário, seria expectável que perdessem alguma efectividade em relação aos diagnósticos primários, sobretudo quando comparadas com protocolos de tratamento específicos por patologia, tendo em conta a sua aplicabilidade alargada e pouco individualizada. No entanto, não estão disponíveis estudos que permitam retirar esta assumpção, parecendo na maioria dos casos haver, pelo menos, uma equivalência de resultados (Norton & Paulus, 2017).
Limitações
Atualmente, não parece existir ainda uma organização teórica compreensiva no que se refere à relação e hierarquia dos processos transdiagnósticos. A investigação destes encontra-se no presente a ser impulsionada pelos sistemas classificativos alternativos e é expectável que novos desenvolvimentos existam no futuro. Isto será importante na avaliação dos pacientes e na delineação da terapia a realizar (Schaeuffele et al., 2021).
Como referido anteriormente, existe uma perda da individualização das intervenções, especialmente com os protocolos unificados, o que pode originar uma perda da satisfação e consequentemente não adesão ao tratamento. Neste aspecto, as intervenções modulares vêm oferecer um claro benefício, baseando-se na combinação individual de sintomas e permitindo também maior flexibilidade. Contudo, a maioria das intervenções modulares é ainda pouco clara na forma de selecção dos módulos a aplicar, habitualmente apoiando-se nos diagnósticos dos doentes, o que acaba por ser uma abordagem demasiado simplista, tendo em conta a elevada comorbilidade e heterogeneidade fenotípica. Neste aspecto, torna-se importante evoluir no sentido de os módulos corresponderem a determinados processos transdiagnósticos.
Em termos de resultados clínicos, parece haver uma não-inferioridade da TCC transdiagnóstica em relação à TCC convencional. Contudo, não é ainda claro pela evidência existente que ofereça um claro benefício no tratamento de pacientes com comorbilidades, em comparação com outras intervenções (Norton & Paulus, 2017).
Outra limitação refere-se à própria organização dos serviços, alguns com unidades específicas para determinados diagnósticos (p.e. perturbações afectivas ou PCA), podendo encontrar barreiras à utilização de intervenções transdiagnósticas em locais tão especializados (Mansell et al., 2009).
Discussão
O facto de haver pequenas diferenças em termos de efectividade entre a TCC transdiagnóstica e convencional, ilustra a necessidade de que a avaliação destas intervenções seja mais compreensiva do que apenas em relação à sua efectividade. A TCC transdiagnóstica oferece vantagens em termos do tempo e custos no seu treino, bem como facilidade na sua disseminação e implementação. Isto poderá significar que em termos organizativos, será mais fácil de implementar um pequeno conjunto de intervenções de TCC transdiagnóstica do que um número muito maior de intervenções específicas por diagnóstico, com claros ganhos na custo-efectividade.
Nos últimos anos, a TCC transdiagnóstica tem evoluído no sentido de se tornar mais modular, ou seja, individualizável, procurando aumentar a sua efectividade e adesão ao tratamento. Mesmo intervenções como o protocolo unificado de Barlow, descrito anteriormente, têm evoluído no sentido de ser aplicadas modularmente. A incorporação da tecnologia nas intervenções, seja através da sua aplicação através da internet, seja através de automação para obter a resposta ao tratamento dos pacientes em tempo real, está a tornar-se progressivamente mais importante na TCC transdiagnóstica e na prática clínica em geral.
Contudo, existem ainda limitações na sua utilização. A investigação na área é ainda limitada a estudos com amostras reduzidas, existem definições heterogéneas do que significa uma intervenção transdiagnóstica e os grupos de controlo são igualmente heterogéneos. Ainda assim, estas intervenções têm gerado um interesse progressivamente maior na comunidade científica, procurando adquirir o seu espaço na prática clínica e ser uma resposta viável aos desafios do presente.