Os comportamentos autolesivos apresentam uma forte relação com o suicídio (Guerreiro, 2014; Guerreiro & Sampaio, 2013), constituindo-se como um grave problema de saúde pública. Os comportamentos autolesivos são comuns em estudantes do ensino superior, com taxas de prevalência estimadas entre 12% a 38% (Gratz, 2001; Kokaliari, 2005). O suicídio e os comportamentos autolesivos são fenómenos multifacetados e multideterminados pelo que a sua compreensão é complexa (Guerreiro, 2014). Para além disto, existem na literatura algumas divergências relativamente à definição de comportamentos autolesivos, especialmente no que se refere à sua intencionalidade (ou não) suicidária (Guerreiro & Sampaio, 2013). Deste modo, a literatura anglo-saxónica distingue dois grupos principais: os comportamentos autolesivos deliberados (“deliberate self-harm”) e os comportamentos autolesivos sem intenção suicida (“non suicidal self-injury”). Os comportamentos autolesivos deliberados englobam todos os métodos de autolesão (e.g., sobredosagens de fármacos, queimaduras ou cortes na superfície corporal). Esta definição evita a atribuição de intencionalidade (Skegg, 2005).
No Plano Nacional de Prevenção do Suicídio (Direção-Geral da Saúde [DGS], 2013), a noção de comportamentos autolesivos envolve atos autolesivos intencionais (e.g. cortes ou saltar de um local relativamente elevado; ingestão de fármacos em doses superiores às dosologias terapêuticas reconhecidas; ingestão de drogas ilícitas ou substâncias psicoativas com propósito explicitamente autoagressivo; ingestão de substâncias ou objetos não ingeríveis, como lixívia, detergente, lâminas ou pregos), mas sem intencionalidade suicida. Por outro lado, Por outro lado, a definição do estudo Child & Adolescent Self-harm in Europe (CASE; Madge et al., 2008) para comportamentos autolesivos, que será tida em conta na presente investigação, é: “comportamento com resultado não fatal, em que o indivíduo deliberadamente fez um dos seguintes: iniciou comportamento com intenção de causar lesões ao próprio (p. ex. cortar-se, saltar de alturas); ingeriu uma substância numa dose excessiva em relação à dose terapêutica reconhecida; ingeriu uma droga ilícita ou substância de recreio, num ato em que a pessoa vê como de autoagressão; ingeriu uma substância ou objeto não ingerível”. Esta definição considera que a intenção do comportamento é do indivíduo se magoar ou fazer lesões a si mesmo, pelo que pode incluir comportamentos autolesivos sem intenção suicida, mas também tentativas de suicídio (Guerreiro & Sampaio, 2013).
Trauma na infância e comportamentos autolesivos
O trauma na infância é considerado um grave problema de saúde pública (Dugal et al., 2016), com consequências severas aos níveis pessoal, social e económico (D’Andrea et al., 2012; Kaffman, 2009). O trauma interpessoal na infância consiste em qualquer ato de abuso - psicológico, físico e/ou sexual -, negligência ou testemunho de violência interparental, que resulte em danos reais e/ou potenciais à saúde, sobrevivência, desenvolvimento ou dignidade do indivíduo menor, no contexto de uma relação de responsabilidade, confiança ou poder (World Health Organization [WHO], 2017).
De um modo geral, os tipos de trauma na infância podem ser divididos em dois grandes grupos: atos de omissão e atos de comissão, que correspondem a atos de negligência e de abuso, respetivamente (Briere, 2002). Os atos de negligência referem-se à inaptidão ou recusa, por parte dos cuidadores, de adotar comportamentos imprescindíveis ao desenvolvimento da criança (i.e., responsividade e disponibilidade), levando a uma privação de cuidados, apoio e estimulação psicológica (Briere, 2002). Estes atos podem dividir-se em atos de negligência física e atos de negligência psicológica/emocional. Por outro lado, os atos de abuso são comportamentos deliberados, intencionais e excessivos direcionados à criança. Englobam palavras e/ou ações que causam dano, potencial dano ou ameaça de dano a uma criança. Porém, o dano causado a uma criança pode ou não ser a consequência pretendida, sendo que a intencionalidade apenas se aplica aos atos dos cuidadores e não às suas consequências (e.g., o cuidador ter intenção de bater na criança, enquanto forma de punição, mas não pretender causar uma concussão na mesma; Leeb et al., 2008).
O trauma na infância pode ter um impacto marcante no desenvolvimento da criança (Dugal et al., 2016). De entre o vasto conjunto de consequências do trauma na infância no funcionamento psicológico e interpessoal (Reyome, 2010; Schury & Kolassa, 2012) estão os pensamentos e comportamentos suicidários (Briere et al., 2016). Diversas evidências sugerem que a probabilidade de ter pensamentos e/ou comportamentos suicidários é de 2 a 5 vezes mais elevada em vítimas de trauma na infância, quando comparadas com indivíduos que não passaram por este tipo de experiências (e.g., Briere et al., 2015; Dube et al., 2001). É de notar que vários investigadores associam a ocorrência de comportamentos autolesivos, nomeadamente em adolescentes e em estudantes universitários, ao trauma na infância (e.g., Croyle, 2001; Glassman et al., 2007). Acresce que indivíduos com historial de separação e negligência e abuso sexual grave têm comportamentos autolesivos mais autodestrutivos (van der Kolk et al., 1991). Vários estudos retrospetivos apresentam evidências de que o abuso e/ou a negligência infantil estão associados a comportamentos autolesivos. Swannell et al. (2012), por exemplo, verificaram que quer o abuso físico e o abuso sexual, quer a negligência estavam associados a uma maior probabilidade da ocorrência de comportamentos autolesivos. Já Yates et al. (2008) estudaram a associação entre o trauma na infância e os comportamentos autolesivos, prospectivamente. Ao usarem os dados do Estudo Longitudinal de Risco e Adaptação de Minnesota (MLSRA; Sroufe et al., 2005), os autores demonstraram que experiências de abuso/negligência na infância estavam prospectivamente associadas a comportamentos autolesivos mais frequentes e severos até aos 26 anos. Porém, poucas investigações se têm focado no estudo dos mecanismos que podem ser responsáveis pela associação entre experiências traumáticas na infância e os comportamentos autolesivos (Martin et al., 2017).
Dor psicológica e trauma na infância
Existem vários modelos psicológicos do suicídio que consideram a interação entre variáveis de natureza psicológica para a compreensão e previsão dos comportamentos suicidários (Barzilay & Apter, 2014; O’Connor & Nock, 2014). Entre esses, inclui-se o Modelo da Dor Psicológica de Shneidman (1996) e, mais recentemente, o Modelo Tridimensional da Dor Psicológica (Li et al., 2014) A dor psicológica pode ser definida enquanto uma “experiência introspetiva de emoções negativas como pavor, desespero, medo, tristeza, vergonha, culpa, frustração, solidão e perda” (Shneidman, 1996), sendo que a evidência aponta para o seu papel central nos comportamentos suicidários (DeLisle & Holden, 2009; Holden et al., 2001; Reisch et al., 2010). Os indivíduos suicidas poderão considerar o suicídio como a única forma de evitar a dor psicológica (Li et al., 2014), sendo que mais importante do que experiência global de dor psicológica, poderá ser a tendência para o evitamento dessa (Campos et al., 2019a).
Li et al. (2014) propõem um Modelo Tridimensional da Dor Psicológica, considerando a dor psicológica como um construto multidimensional que compreende três componentes: cognitiva, afetiva e de evitamento. A dimensão cognitiva representa a dor proveniente de experiências traumáticas passadas (e.g. luto, fracasso/frustração ou exclusão social). A dimensão afetiva compreende os sentimentos subjetivos, associados à dor psicológica, percebidos pelo indivíduo como dolorosos. Por fim, o evitamento da dor representa a motivação ou tendência para considerar o suicídio enquanto único meio de aliviar a dor (Li et al., 2017). Esta última dimensão é considerada como o preditor mais forte da motivação e comportamentos suicidários (e.g., Campos et a., 2019b).
Dado que o Modelo Tridimensional da Dor Psicológica é uma proposta recente, a relação entre as três componentes da dor psicológica que propõe e o trauma na infância ainda não foi testada empiricamente. No entanto, é possível assumir uma associação entre estas variáveis, uma vez que o trauma na infância está associado a altos níveis de sofrimento físico e psicológico (Schilling et a., 2015; Teicher et al., 2003). Além disso, o abuso está também associado à intensidade e catastrofização da dor física (Sansone et al., 2013) o que, consequentemente, resulta num maior sofrimento psicológico (Turner et al., 2002). Ademais, o desenvolvimento de perturbações mentais surge como consequência do trauma na infância (Schilling et al., 2015), associando-se a níveis de distress, desesperança, culpa e angústia que são, por sua vez, componentes importantes da experiência de dor psicológica (Shneidman, 1993, 1996).
Dor psicológica e comportamentos autolesivos
Globalmente, a experiência de dor psicológica relaciona-se com a ocorrência de comportamentos autolesivos. Holden et al. (2020) verificaram numa amostra de conveniência de 207 residentes dos EUA, utilizando um procedimento de análise de regressão logística que, ao controlar o efeito do uso de substâncias e ter um diagnóstico psiquiátrico, a dor psicológica deu um contributo significativo na previsão de comportamentos autolesivos. A dor psicológica também se correlacionou com a frequência de comportamentos autolesivos, controlando o efeito das covariáveis significativas.
Por outro lado, Campos et al. (2019a) numa amostra comunitária portuguesa verificaram que era a tendência para evitar a dor psicológica que se relacionava com a motivação suicida e não a experiência global da dor. Os resultados deste mesmo estudo vão de encontro aos obtidos em amostras não ocidentais (Li et al., 2017; Xie et al., 2014). Xie et al. (2014) concluíram que a ideação suicida se relacionava com a tendência para evitar a dor psicológica e que esta seria um preditor dos comportamentos suicidários mais importante, mesmo na ausência de depressão. Por outro lado, numa amostra de pacientes com perturbação depressiva major, Li et al. (2014) demonstraram que níveis elevados de evitamento da dor, durante um episódio depressivo, seriam a variável preditora associada à motivação suicida. Assim, os autores concluíram que o evitamento da dor contribuiria para o desenvolvimento de comportamentos suicidários quando comparado com a depressão ou a dor psicológica, consideradas globalmente.
Assim, o estudo dos diversos tipos de comportamentos suicidários, nomeadamente dos comportamentos autolesivos, relacionando-os com as três dimensões da dor do modelo de Li et al. (2014), e não apenas com a experiência global de dor psicológica parece uma opção de investigação interessante. Que tenhamos conhecimento, no entanto, nenhum estudo testou especificamente a relação entre as três componentes da dor psicológica com os comportamentos autolesivos. De facto, a maioria dos indivíduos que se envolve em comportamentos autolesivos refere que o faz para evitar ou suprimir sentimentos negativos e/ou imagens e/ou memórias dolorosas (Gonçalves et al., 2012), o que sugere que o evitamento da dor psicológica pode estar relacionado com a ocorrência de comportamentos autolesivos. De acordo com Briere & Gil (1998), as razões mais mencionadas pelos indivíduos para a prática de comportamentos autolesivos são a distração relativamente a sentimentos dolorosos e a autopunição. Os comportamentos autolesivos podem constituir-se como um método para regular as emoções; os indivíduos referem por vezes que estes comportamentos permitem lidar com emoções negativas, nomeadamente quando o impacto do trauma e o sofrimento psicológico os sobrecarregam (Gonçalves et al., 2012). Além disso, evidências apontam para que este tipo de comportamentos possa estar associado a uma tentativa de diminuir a dor psicológica, através da provocação da dor física (Guerreiro & Sampaio, 2013).
A presente investigação tem como objetivo estudar a relação entre o trauma na infância e os comportamentos autolesivos, numa amostra não clínica de conveniência de jovens adultos universitários. Serão também testados os efeitos de mediação e de moderação nessa relação das três dimensões da dor psicológica (afetiva, cognitiva e de evitamento), segundo o modelo Tridimensional da Dor Psicológica (Li et al., 2014). Será controlado o efeito de variáveis sociodemográficas relevantes que apresentem uma relação significativa com os comportamentos autolesivos. De acordo com vários estudos, quer com amostras clínicas quer com amostras não clínicas (Kaess et al., 2013), o trauma na infância é apontado como um importante preditor dos comportamentos autolesivos (Horowitz & Stermac, 2018). Acresce que, a dor psicológica parece assumir igualmente um importante papel para a ocorrência de comportamentos autolesivos (Holden et al. 2020), mesmo quando controladas outras variáveis relevantes. Neste estudo será testado um modelo de mediação, mas também, um modelo de moderação como modelo alternativo. O modelo de mediação testará o efeito de mediação das três dimensões da dor psicológica - cognitiva, afetiva e de evitamento - na relação entre o trauma na infância e os comportamentos autolesivos. Espera-se que a dimensão de evitamento da dor psicológica possa mediar a relação entre trauma na infância e comportamentos autolesivos.
Método
Participantes
Foram contactados 339 jovens adultos, estudantes da Universidade de Évora. Dos 339 estudantes, quatro não aceitaram participar na investigação, um desistiu, cinco não se enquadravam na faixa etária pretendida (entre os 18 e os 28 anos), cinco protocolos foram considerados inválidos por apresentarem um número excessivo de itens omissos (mais de 10% dos itens num determinado questionário) e um deles por não responder à questão relativa aos comportamentos autolesivos. A amostra final ficou composta por 323 indivíduos, com idades compreendidas entre os 18 e os 28 anos (M = 19,41; DP = 1,71), sendo predominantemente feminina (n = 209; 64,7%), constituída por 94,7% de estudantes não trabalhadores e 80,8%. deslocados da sua residência oficial (ver o Quadro 1).
Instrumentos de Medida
Ficha de Dados Sociodemográficos e Clínicos. Composta por um conjunto de questões que visavam obter informação acerca de um conjunto de variáveis de caráter sociodemográfico, particularmente, o género, a idade, o ano do curso, o curso que frequenta, se é trabalhador-estudante e se teve de sair da sua residência oficial para frequentar a universidade. Para além disto, apresentava duas questões de natureza clínica, nomeadamente, questionava se o participante tinha uma doença crónica e se tinha alguma doença psiquiátrica diagnosticada.
Questionário de Trauma de Infância - Versão breve (CTQ-SF; Bernstein et al., 2003). É uma medida de autorrelato de 28 itens. Pretende avaliar a presença ou ausência de cinco tipos de trauma/abuso na infância - abuso físico (e.g., “Na minha família batiam-me tanto que tinha que ir ao hospital ou ao médico”; “Acredito que fui fisicamente maltratado”), abuso emocional (e.g., “Acredito que fui maltratado(a) emocionalmente”; “Achava que os meus pais preferiam que eu nunca tivesse nascido”), abuso sexual (e.g., “Tentaram tocar-me ou obrigaram-me a tocar em alguém sexualmente”; “Tentaram forçar-me a fazer ou a assistir a algo sexual”), negligência física (e.g., “Eu não tinha comida suficiente”; “Tinha que usar roupas sujas”) e negligência emocional (e.g., “Senti-me amado(a)”; “As pessoas da minha família cuidavam umas das outras”) - ocorridos até aos 15 anos de idade. Os itens são respondidos numa escala de Likert de 5 pontos, de 1 “Nunca” a 5 “Sempre”. O instrumento é composto por 5 subescalas, constituídas por 5 itens cada, referentes a cada um dos tipos de trauma. Existem 3 itens que avaliam o índice de negação, pelo que não cotam em nenhuma das referidas escalas. O CTQ-SF permite também calcular um índice geral de trauma na infância. Este foi o indicador de trauma na infância que foi utilizado no presente estudo. O resultado total da escala varia entre os 25 e os 125 pontos, sendo que valores mais elevados indicam uma maior e mais grave exposição a trauma na infância. A versão original do questionário (Bernstein et al., 2003) apresenta valores de alfa de Cronbach de 0,83 para a subescala de abuso físico, 0,87 para a de abuso emocional, 0,92 para a de abuso sexual, 0,61 para a de negligência física e 0,91 para a de negligência emocional, numa amostra comunitária representativa, possuindo boas qualidades psicométricas no que se refere à consistência interna. A versão portuguesa (Dias et al., 2013), utilizada neste estudo, apresenta um valor de alfa de Cronbach de 0,84 para a escala global. No presente estudo, o valor de alfa de Cronbach para a escala global foi de 0,78.
Escala Tridimensional de Dor Psicológica (TDPPS; Li et al., 2014). É uma medida de autorrelato constituída por 17 itens. Tem como finalidade avaliar a gravidade da dor psicológica em três dimensões - cognitiva (pain arousal) (8 itens; e.g., “Sempre que penso nas minhas graves imperfeições, sinto muita dor psicológica”), afetiva (painful feelings) (6 itens; e.g., “A minha dor é mais emocional do que física”) e evitamento (active pain avoidance) (3 itens; e.g., “Quase me matei para fazer a dor psicológica desaparecer”; Li et al., 2014). Os itens são respondidos numa escala de Likert de 5 pontos, de 1 “De forma alguma” a 5 “Extremamente bem” (Li et al., 2014), em que os resultados totais variam entre os 8 e 40 pontos na primeira subescala, os 6 e 30 pontos na segunda subescala e, os 3 e 15 pontos na terceira subescala. Para a versão original, os valores de alfa de Cronbach foram de 0,85 para a escala pain arousal, 0,86 para a escala painful feelings, e 0,77 para a escala de active pain avoidance, numa amostra de 1500 estudantes universitários (Li et al., 2017). A versão portuguesa (Campos et al., 2019c) apresenta boas propriedades psicométricas, com valores de alfa de Cronbach de 0,89, 0,92, e 0,84, respetivamente, para as subescalas referentes às dimensões cognitiva, afetiva e de evitamento, numa amostra de 331 estudantes do ensino superior. No presente estudo, obtiveram-se valores de alfa de Cronbach de 0,87 para a escala que avalia a dimensão cognitiva, .89 para a escala que avalia a dimensão afetiva e 0,78 para a escala de evitamento.
Comportamentos autolesivos
Os comportamentos autolesivos foram avaliados através do item: “Alguma vez, durante a sua vida, de forma deliberada (ou seja, de sua própria vontade), tomou uma dose excessiva de medicamentos (comprimidos ou outros), ou magoou-se de uma outra forma (como por exemplo, com cortes no seu corpo, queimando-se, ou intoxicando-te com drogas e/ou álcool), com a ideia de fazer mal a si próprio?”. As possíveis opções de resposta eram as seguintes: 0 = Não; 1 = Sim, por uma vez; 2 = Sim, mais do que uma vez. Caso o participante escolhesse a opção 1 ou 2, solicitava-se que respondesse às questões: “indique quando foi a última vez que ocorreu” e “descreva de que forma ocorreu da última vez”; caso o participante escolhesse a opção 2, teria também de responder à questão “indique quantas vezes ocorreu”. Este item está de acordo com a definição do estudo CASE para comportamentos autolesivos (e.g. Guerreiro, 2014; Madge et al., 2011).
Procedimentos
Inicialmente, foram contactados vários docentes a fim de disponibilizarem algum tempo das suas aulas para aplicação dos protocolos de investigação, em contexto de sala de aula. O único pré-requisito para participar no estudo era pertencer à faixa etária jovens adultos, ou seja, ter entre os 18 e os 28 anos, inclusive. No início de cada aplicação, cada um dos participantes assinou um termo de consentimento informado em duplicado (uma das cópias ficou para o participante), onde eram explicadas as condições de participação (i.e. voluntária e não remunerada), tal como a garantia do anonimato e confidencialidade das respostas. Posteriormente, os protocolos eram distribuídos, sendo compostos por uma ficha de dados sociodemográficos e clínicos e por um conjunto de questionários. O estudo enquadra-se num projeto de investigação que foi aprovado por uma Comissão de Ética da Universidade de Évora.
Análise de dados
Como análise preliminar foram calculadas as correlações entre as variáveis em estudo. Calcularam-se, também, as correlações entre as variáveis sociodemográficas e clínicas e os comportamentos autolesivos. Nas análises posteriores foi usado o método de bootstrapping (com 1.000 amostras para construir intervalos de confiança corrigidos a 95%) para corroborar a significância dos parâmetros estimados. Para testar se as diferentes dimensões da dor psicológica mediavam a relação entre a variável trauma na infância - variável exógena - e os comportamentos autolesivos - variável endógena - testou-se um modelo de path analysis, com recurso à Modelação de Equações Estruturais e ao software AMOS-21. Nesta análise foram introduzidas como covariáveis, as variáveis sociodemográficas e clínicas que apresentassem uma correlação significativa com os comportamentos autolesivos.
De modo a avaliar a existência de um efeito de mediação foi testado, inicialmente, um modelo sem variáveis mediadoras, colocando-se o trauma na infância e as covariáveis como variáveis exógenas e os comportamentos autolesivos como variável endógena/dependente. Posteriormente, testou-se um modelo de mediação em que se introduziram as dimensões cognitiva, afetiva e de evitamento da dor como variáveis mediadoras. Foi ainda testado um modelo alternativo de moderação das facetas da dor psicológica na relação entre trauma na infância e os comportamentos autolesivos, com recurso a uma análise de regressão múltipla hierárquica e ao software SPSS, versão 24. No primeiro passo do modelo foram introduzidas eventuais covariáveis e a variável trauma na infância. No segundo passo foram introduzidas as variáveis cognitiva, afetiva e de evitamento da dor e no terceiro passo foram introduzidos os termos de interação.
Resultados
A presença de comportamentos autolesivos foi relatada por 58 indivíduos (18,0%), sendo que 33 (10,2%) indicaram múltiplas ocorrências de comportamentos autolesivos (pontuação 2 na questão colocada). Destes 33 indivíduos, 12 (36,4%) relataram mais do que 10 ocorrências de comportamentos autolesivos. Quando analisadas as respostas, relativamente ao tipo de método utilizado, as drogas, medicação ou álcool (n = 11; 19,0%) e os cortes, arranhões ou queimaduras (n = 28; 48,3%) foram as formas mais comuns. Dos 58 indivíduos, 19 (32,8%) não relataram nenhum método específico ou utilizaram outro método e 4 (6,9%) relataram múltiplas formas de comportamentos autolesivos.
As correlações entre as variáveis em estudo encontram-se no Quadro 2. Verificou-se que todas as correlações são significativas para um nível de significância de p < 0,01. Verificou-se que apenas as variáveis sexo (r (321) = 0,15, p < 0,01), com as mulheres a obterem resultados mais elevados, diagnóstico de perturbação psiquiátrica (r (321) = 0,40, p < 0,01) e doença crónica (r (321) = 0,13, p < 0,05) se correlacionam significativamente com os comportamentos autolesivos, pelo que foram introduzidas como covariáveis nas análises subsequentes.
Testou-se, em primeiro lugar, um modelo direto sem as variáveis mediadoras. Verificou-se que o trauma na infância apresenta um efeito direto significativo na variável comportamentos autolesivos (ꞵ = 0,329, SE = 0,061, p < 0,001 IC 95% [0,215, 0,453]).
No modelo de mediação (ver Figura 1), verificou-se que o efeito direto da variável trauma na infância na variável comportamentos autolesivos se mantém significativo (ꞵ = 0,193, SE = 0,079, p < 0,01 IC 95% [0,038, 0,305]), embora de magnitude mais reduzida, mas verificou-se igualmente um efeito indireto do trauma na infância nos comportamentos autolesivos (ꞵ = 0,136, SE = 0,043, p < 0,005 IC 95% [0,065, 0,232]). Verificou-se ainda um efeito direto significativo da variável trauma na variável evitamento da dor (ꞵ = 0,370, SE = 0,068, p < 0,005 IC 95% [0,226, 0,495]), bem como o da variável evitamento da dor na variável comportamentos autolesivos (ꞵ = 0,313, SE = 0,084, p < 0,005 IC 95% [0,161, 0,487]). Estes resultados em conjunto indicam um efeito de mediação parcial do evitamento da dor na relação entre trauma na infância e comportamentos autolesivos.
Não se verificou qualquer efeito de moderação de nenhuma das facetas da dor psicológica na relação entre trauma e comportamentos autolesivos.
Discussão
O presente estudo teve como objetivo estudar o efeito do trauma na infância nos comportamentos autolesivos em jovens adultos, bem como os efeitos de mediação e de moderação de diferentes facetas da dor psicológica na relação entre trauma na infância e os comportamentos autolesivos. Verificou-se que o trauma na infância apresentou uma relação significativa com os comportamentos autolesivos e que o evitamento da dor psicológica mediou parcialmente esta relação.
O trauma na infância tem sido associado a um risco elevado de comportamentos suicidários, em particular, os comportamentos autolesivos (e.g. Gratz et al., 2002). Porém, as evidências para essa relação são ainda escassas. De facto, enquanto alguns estudos apresentam uma associação significativa (Lang & Sharma-Patel, 2011), outros não encontram uma relação entre estas variáveis (Klonsky & Moyer, 2008). Efetivamente, os comportamentos autolesivos são considerados como um mecanismo não adaptativo para lidar com sentimentos que surgem na sequência do trauma na infância (e.g. Smith et al., 2014).
Os resultados sugerem ainda que as mulheres e os indivíduos que tenham diagnóstico de perturbação psiquiátrica e/ou doença crónica apresentam uma maior tendência para comportamentos autolesivos. Estes resultados corroboram resultados de estudos prévios que indicam que a probabilidade de comportamentos autolesivos é significativamente maior no sexo feminino (Bresin & Schoenleber, 2015; Guerreiro & Sampaio, 2013; Guerreiro, 2014; Hawton et al., 2012; Madge et al., 2008; Reis et al., 2012). É também conhecido que existe uma associação forte entre a presença de comportamentos autolesivos e a presença de psicopatologia geral (e.g. Guerreiro & Sampaio, 2013; Guerreiro, 2014; Hawton et al., 2012; Madge et al., 2011). Para além disso, indivíduos com doença crónica, apresentam mais risco de comportamentos autolesivos, quando comparados com pacientes não expostos compatíveis (McHugh, 2020).
De acordo com os resultados, a dimensão de evitamento da dor psicológica não potencia o efeito do trauma, no entanto, explica parcialmente a razão pela qual o trauma pode conduzir à ocorrência de comportamentos autolesivos. De acordo com um estudo realizado em Portugal (Gonçalves et al., 2012), a maioria dos jovens com comportamentos autolesivos apresentava como motivo o evitamento ou supressão de sentimentos negativos ou de memórias dolorosas, ou seja, pode dizer-se, genericamente, o alívio da dor psicológica. Ao deparar-se com acontecimentos de vida intensos, vivenciados como negativos, que perturbem o equilíbrio mental, o indivíduo pode recorrer a estratégias, ainda que desadaptativas, que o auxiliem a lidar com tais situações. Assim, os comportamentos autolesivos podem surgir enquanto tentativa de conter e tranquilizar as emoções negativas sentidas, representando um mecanismo de coping desadaptativo para lidar com a falência de outros recursos (Sun, 2011).
O presente estudo apresenta algumas limitações. A primeira foi a utilização exclusiva de medidas de autorrelato. Estas podem ser sujeitas a diversas formas de enviesamento (Dowling et al., 2016). Particularmente, por ter sido avaliada uma temática ainda estigmatizada socialmente (i.e., a suicidalidade), os participantes podem ter-se sentido constrangidos a responder com total sinceridade. Ainda que a resposta aos instrumentos de medida tenha sido anónima e confidencial, os participantes podem ter-se sentido inibidos devido a questões de ordem moral e/ou religiosa, que vão contra a aceitação dos comportamentos suicidários (Rasic et al., 2009). Futuramente, seria importante utilizar outro tipo de metodologias, como a entrevista. Outra limitação a considerar prende-se com a dimensão da amostra que, embora aceitável, pode não ser representativa. Para além disso, a amostra utilizada neste estudo constitui-se como uma amostra de baixo risco (i.e., de natureza não clínica) pelo que em estudos futuros, o estudo poderá ser replicado com amostras clínicas, no sentido de poder generalizar os resultados agora obtidos. Para além disso, a metodologia utilizada, de tipo transversal, pode levar a uma sobrestimação das relações entre as variáveis estudadas, pelo que, em estudos futuros, poderá ser utilizada uma metodologia de tipo longitudinal. Em estudos futuros, seria pertinente estudar cada tipo de abuso e/ou negligência individualmente, de modo a obter dados mais concretos acerca da relação entre diferentes tipos de trauma na infância e comportamentos autolesivos.
Os resultados obtidos sugerem que o evitamento da dor psicológica medeia a relação entre trauma na infância e comportamentos autolesivos, embora o efeito mediador tenha sido apenas parcial. De facto, o evitamento ou supressão de sentimentos negativos ou de memórias dolorosas (i.e., experiências traumáticas precoces) (Gonçalves et al., 2012), ou seja, o alívio da dor psicológica tem sido considerado como um fator explicativo dos comportamentos autolesivos. No entanto, o efeito de mediação, apenas parcial, sugere que outros mecanismos podem estar envolvidos e explicarem a relação entre trauma na infância e comportamentos autolesivos e, simultaneamente que essa relação é muito forte. Dado que os comportamentos autolesivos se constituem como um importante fator de risco para o suicídio efetivo, o qual é uma das principais causas de morte em jovens adultos, torna-se fundamental a investigação a fim de compreender e prevenir a ocorrência de comportamentos suicidários. A finalidade poderá passar por obter uma perspetiva global, ainda que focada na compreensão do indivíduo (Scoliers et al., 2009), que juntamente com o estudo de variáveis de ordem mais contextual e cultural, possa conduzir a bons resultados no que respeita à avaliação e monitorização dos comportamentos autolesivos enquanto expressão do espectro dos comportamentos suicidários.
Contribução dos autores
Catarina Arvanas: Concetualização, Curadoria dos dados, Análise formal, Redação do rascunho original, Redação
Rui Campos: Concetualização, Análise formal, Aquisição de financiamento, Metodologia, Redação
Ana Vasques: Concetualização, Curadoria dos dados
Alexandra Pereira: Concetualização, Curadoria dos dados