O AVC representa a segunda causa principal de morte e incapacidade a nível mundial, estimando-se que todos os anos surjam 13 milhões de novos casos (Lindsay et al., 2019). Passados três meses desde o AVC, 83% dos sobreviventes apresentam défices em, pelo menos, um domínio cognitivo e 50% em múltiplos domínios cognitivos (≥3), mesmo após uma recuperação clínica dita bem-sucedida, i.e., sem prejuízo funcional clinicamente relevante à data de alta (Jokinen et al., 2015). Entre dois a três anos após o AVC, mais de metade dos sobreviventes continua a manifestar défices cognitivos, a reportar sintomatologia depressiva e a apresentar menores níveis de participação social (por ex., absentismo laboral, reduzida autonomia nas atividades de vida diária (AVDs)), o que afeta negativamente a sua qualidade de vida (Kapoor et al., 2017). Neste sentido, a intervenção cognitiva precoce nos défices cognitivos pós-AVC representa uma prioridade ao nível da investigação científica. Todavia, a reabilitação no pós-AVC continua a assumir, predominantemente, uma abordagem bottom-up, com foco na reabilitação motora e terapia da fala (Belda-Lois et al., 2011), verificando-se uma tendência para que a avaliação e intervenção dos défices cognitivos pós-AVC seja descurada. A reabilitação cognitiva (RC) consiste num conjunto de abordagens terapêuticas, de que é exemplo o treino cognitivo (TC), que têm reunido evidência a favor da sua eficácia na mitigação dos défices cognitivos pós-AVC (Cicerone et al., 2019). Nos últimos anos, a utilização das tecnologias de informação e comunicação (TIC) no domínio da RC tem crescido consideravelmente, consubstanciando-se no desenvolvimento de ferramentas de TC. As ferramentas de TC mediadas pelas TIC contemplam várias potencialidades, entre elas a otimização da personalização do processo reabilitativo ao perfil neuropsicológico e desempenho do utilizador; a possibilidade de monitorizar o desempenho mediante gráficos de evolução e de ajustar automaticamente a dificuldade; a integração de fatores de jogo promotores da motivação; e a inclusão de conteúdo de TC com maior validade ecológica (por ex., baseados em AVDs), tornando, assim, o TC mais significativo para o utilizador (Faria et al., 2016; Parsons, 2016). Com efeito, e quanto a esta última vantagem, o TC de orientação funcional poderá promover a generalização dos ganhos adquiridos em ambiente protegido para os contextos de vida reais (Faria et al., 2016), o que representa o principal objetivo de qualquer processo de RC. Investigação científica recente demonstra que a utilização de programas de TC mediados por TIC, e cujo motivo central são as AVDs (por ex., Reh@City, Bateria Sistémica de Lisboa, V-STORE), resulta em melhorias na cognição, no bem-estar e perceção do estado cognitivo (insight) de sobreviventes de AVC (Faria et al., 2020; Lo Priore et al., 2003; Oliveira et al., 2020). Ressalve-se que é necessário incrementar a evidência científica neste campo de investigação através, por exemplo, da operacionalização de estudos com amostras de maior dimensão e da integração de medidas funcionais nos protocolos de avaliação, por forma a aferir se os ganhos decorrentes das intervenções se traduzem numa maior funcionalidade dos pacientes (Cicerone et al., 2019).
É neste contexto que se insere o presente projeto de investigação multidisciplinar, que conta com uma equipa de engenheiros informáticos, designers e psicólogos, e que visa o desenvolvimento e validação clínica da plataforma NeuroAIreh@b - um sistema para TC à distância no pós-AVC apresentado em tablet. Até ao momento, encontra-se disponível uma versão protótipo da plataforma que contempla quatro aplicações digitais (Reh@Apps) que permitem integrar conteúdo de TC ecológico, i.e., baseado em AVDs (por ex., cozinhar, ir ao supermercado), e implementam fatores de jogo (por ex., sistemas de pontos, medalhas) (Paulino et al., 2022). Neste sentido, este estudo-piloto visa avaliar o impacto a curto prazo da primeira versão da plataforma NeuroAIreh@b em sobreviventes de AVC.
Método
Participantes
Recrutámos uma amostra de conveniência composta por dez sobreviventes de AVC na fase crónica (cinco do sexo feminino e cinco do sexo masculino) a frequentar o Serviço de Medicina Física e de Reabilitação do Hospital Dr. Nélio Mendonça, que foram encaminhados pelos fisiatras e neuropsicóloga do Serviço. Os participantes cumpriram os seguintes critérios de inclusão: a) ser capaz de ler e escrever; b) acuidade visual e auditiva mantidas ou compensadas; c) capacidades de linguagem (recetiva e expressiva) suficientemente mantidas; d) capacidade para manipular o tablet; e e) motivação para participar no estudo. A média de idades dos participantes é de 58,40 anos (DP=6,39) e o nível médio de escolaridade de 9,0 anos (DP=4,62). Quanto à situação profissional, seis participantes encontram-se de baixa médica, três estão reformados e um está a trabalhar. A maioria dos participantes teve um AVC isquémico (N=8) que afetou o hemisfério esquerdo (N=8), com um tempo médio decorrido desde o AVC de 18,30 meses (DP=17,64).
Instrumentos
O protocolo de recolha de dados integrou os seguintes instrumentos: a) questionário sociodemográfico e clínico; b) Montreal Cognitive Assessment (MoCA) (versão portuguesa: Freitas et al., 2011), como medida de cognição geral; c) Inventário de Depressão de Beck II (BDI-II) (versão portuguesa: Campos & Gonçalves, 2011), como medida do estado emocional (sintomatologia depressiva); d) Quality of Life After Brain Injury (QOLIBRI) (versão portuguesa: Guerreiro et al., 2012), como medida de qualidade de vida após a lesão cerebral; e e) Inventário de Avaliação Funcional de Adultos e Idosos (IAFAI) (Sousa et al., 2015), como medida de capacidade funcional.
Intervenção
A intervenção de TC consistiu na utilização de quatro Reh@Apps, que permitem o treino da atenção, memória, linguagem e funções executivas em dois contextos de vida diária - a cozinha e o supermercado -, nomeadamente: a Reh@Search (cancelamento), a Reh@Org (sequência de ações), a Reh@Pay (cálculo) e a Reh@Cat (categorização) (Paulino et al., 2022) (Figura 1). As aplicações foram executadas num tablet e iteradas sequencialmente por um período equivalente durante cada sessão de TC.
Procedimento
Este estudo-piloto decorreu entre novembro de 2021 e maio de 2022. A avaliação neuropsicológica (ANP) e a intervenção de TC foram levadas a cabo por uma psicóloga. Os participantes que cumpriram os critérios de inclusão foram informados dos objetivos e metodologia do estudo e assinaram um documento de consentimento informado, atestando o caráter voluntário da sua participação e confidencialidade dos dados recolhidos. Seguidamente, foram submetidos a uma avaliação com os instrumentos supramencionados. Após a avaliação pré-intervenção, realizaram oito sessões de TC individuais bissemanais com a plataforma NeuroAIreh@b através de um tablet, cada uma com a duração de 45 minutos. A psicóloga operacionalizou a dificuldade das tarefas de TC ao longo das várias sessões, mediante o ajustamento dos parâmetros individuais de cada tipo de tarefa. No fim do período de intervenção, procedeu-se à reavaliação dos participantes.
Análise estatística
A análise estatística foi realizada com recurso à versão 26 do SPSS. Avaliámos a normalidade da distribuição da amostra com o teste de Shapiro-Wilk. Como não confirmamos o pressuposto da normalidade da distribuição, recorremos a estatística não paramétrica. Assim, as medidas de tendência central e de dispersão das variáveis psicométricas, i.e., pontuações obtidas nos instrumentos de avaliação, nos momentos pré e pós-intervenção, foram representadas por medianas (Mdn) e intervalos interquartis (IIQ), respetivamente. As diferenças intra-grupo nos dois momentos avaliativos foram analisadas com o teste de Wilcoxon para amostras emparelhadas. O tamanho do efeito (r) foi calculado através da fórmula Z/√N, sendo utilizados os seguintes critérios para a sua interpretação: 0,2=pequeno, 0,5=médio e 0,8=grande. Considerámos a existência de diferenças estatisticamente significativas para um nível de significância de p≤ 0,05.
Resultados
O Quadro 1 ilustra os resultados obtidos para a nossa amostra clínica nos dois momentos de avaliação (pré e pós-intervenção).
Uma análise intra-grupal através do teste de Wilcoxon para amostras emparelhadas revela que os sobreviventes de AVC apresentam melhorias significativas no MoCA [Pré: Mdn=18, IIQ=7,4; Pós: Mdn=21,10, IIQ=4,5 (W (10)=41,00, Z=2,201, p=,028, r=,69)] e no IAFAI [Pré: Mdn=33,71, IIQ=26,08; Pós: Mdn=29,22, IIQ=31,89 (W (10)=1,0, Z=-2,197, p=,028, r=,69)], no momento pós-intervenção. Apesar da ausência de diferenças estatisticamente significativas nos resultados do BDI-II [Pré: Mdn=9,9, IIQ=15,75; Pós: Mdn=7, IIQ=8,25 (W (10)=11,50 Z=-1,637, p=,102, r=,52)] e do QOLIBRI [Pré: Mdn=119, IIQ=28,25; Pós: Mdn=125, IIQ=23,75(W (10)=36,00, Z=1,601, p=,109, r=,51)] no segundo momento, verifica-se uma diminuição de 2,9 pontos no BDI-II, bem como um aumento de 6 pontos no resultado total do QOLIBRI, ambos sugestivos de melhorias nos domínios avaliados por estes instrumentos.
Discussão
O presente estudo-piloto avaliou o impacto a curto prazo do TC com recurso à versão protótipo da plataforma NeuroAIreh@b nos indicadores de cognição geral, sintomatologia depressiva, qualidade de vida e de funcionalidade, em sobreviventes de AVC na fase crónica. Os resultados obtidos sugerem o impacto positivo da utilização da plataforma nos indicadores de cognição geral (MoCA) e capacidade funcional (IAFAI), mais concretamente no nível de incapacidade funcional global reportado pelos sobreviventes. Estudos realizados com ferramentas de TC mediadas pelas TIC têm conduzido a melhorias no domínio cognitivo (Faria et al., 2016, 2020; Lo Priore et al., 2003; Oliveira et al., 2020). No entanto, estes estudos nem sempre avaliam se existe ou não generalização dos ganhos cognitivos para os ambientes de vida real. No caso particular da presente investigação, parece existir uma generalização dos ganhos objetivados ao nível da cognição geral para as AVDs, o que representa o objetivo último da RC (Cicerone et al., 2019). Podemos especular que a incorporação de tarefas de TC com orientação funcional nesta plataforma poderá ter promovido a generalização aqui reportada. Estes resultados são promissores atendendo à curta duração da intervenção (um mês) e ao facto de ter sido utilizada uma versão protótipo da plataforma, que exigiu que a adaptação/operacionalização da dificuldade do TC fosse realizada manualmente, havendo, por isso, alguma margem para erro. Quanto à sintomatologia depressiva e à qualidade de vida, apesar de as diferenças entre os dois momentos não serem estatisticamente significativas, sublinhamos a diminuição da sintomatologia depressiva e a melhoria da qualidade de vida dos participantes após a intervenção, melhorias essas cujos tamanhos do efeito de ,52 e ,51, respetivamente, são considerados médios. É possível que os ganhos cognitivos e a sua aparente tradução funcional tenham contribuído para a melhoria destes indicadores. Naturalmente, importa ressalvar que os resultados obtidos deverão ser interpretados com cautela em face de três grandes limitações: a reduzida dimensão da amostra, o método de amostragem utilizado (amostra por conveniência) e a ausência de um grupo de controlo com as mesmas características sociodemográficas e clínicas da presente amostra. Em termos de perspetivas futuras, está em curso, no âmbito do projeto, o desenvolvimento de algoritmos de inteligência artificial através da criação de modelos construídos a partir dos dados do perfil neuropsicológico, do desempenho nas diferentes sessões de TC e das diferentes parametrizações que definem a dificuldade em cada iteração com cada uma das Reh@Apps. É expetável que estes algoritmos, não só possibilitem a automatização e otimização da personalização do TC às especificidades dos participantes, auxiliando, portanto, os neuropsicólogos na tomada de decisão clínica, como também viabilizem a dinamização de sessões de TC à distância, com a monitorização remota do neuropsicólogo. Posteriormente, validaremos esta ferramenta através de estudos de caso e de um estudo aleatório e controlado com uma amostra mais alargada, por forma a tornar esta ferramenta acessível aos sobreviventes de AVC da Região Autónoma da Madeira.
Agradecimentos
Gostaríamos de agradecer aos participantes e profissionais do Serviço de Medicina Física e de Reabilitação pelos seus contributos. Esta investigação é financiada pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT): bolsa de doutoramento (SFRH/145919/2019) atribuída a Joana Câmara, NOVA LINCS UIDB/04516/2020, projeto BRaNT PTDC/CCI-COM/31046/2017 e projeto INTERREG MACBIOIDI2 (MAC2/1.1b/352).
Contribuição dos autores
Joana Câmara: Concetualização, curadoria dos dados, análise formal, investigação, metodologia, redação do rascunho original, redação-revisão e edição;
Teresa Paulino: Software, redação do rascunho original, redação - revisão e edição;
Mónica Spínola: Redação - revisão e edição;
Diogo Branco: Software, redação-revisão e edição;
Mónica Cameirão: Concetualização, metodologia, redação-revisão e edição;
Ana Lúcia Faria: Concetualização, metodologia, supervisão, redação-revisão e edição;
Luís Ferreira: Software, redação-revisão e edição;
André Moreira: Redação-revisão e edição;
Manuela Vilar: Supervisão, redação-revisão e edição;
Ana Rita Silva: Redação-revisão e edição;
Mário Simões: Administração do projeto, supervisão, redação-revisão e edição;
Sergi Bermúdez i Badia: Concetualização, metodologia, administração do projeto, supervisão, redação-revisão e edição;
Eduardo Fermé: Concetualização, metodologia, administração do projeto, supervisão, redação-revisão e edição;