O suicídio é um problema da saúde pública que acarreta graves consequências para famílias e comunidades impactadas por essa experiência que desafia os limites da condição humana (Alves et al., 2022). Anualmente, ocorrem mais de 700 mil suicídios ao redor do mundo (World Health Organization, 2021). Por se tratar de um fenômeno multifatorial e multideterminado, o atendimento às pessoas que vivenciam essa situação deve ser multiprofissional e interdisciplinar, abarcando os variados níveis de cuidado (Ferracioli et al., 2021). Na produção desse cuidado geralmente estão envolvidos psiquiatras, psicólogos, psicanalistas, terapeutas e assistentes sociais, além de profissionais da saúde em geral, como da enfermagem e medicina (Ferracioli et al., 2019).
O contato recorrente com pacientes que apresentam comportamento suicida frequentemente elicia sentimentos extremos nos profissionais de saúde, que tendem a ser invisibilizados (Santeiro et al., 2020; Slaven & Kisely, 2002). O objetivo desta investigação foi sintetizar e reinterpretar achados de estudos qualitativos primários sobre a experiência de profissionais de saúde mental na assistência a pessoas com comportamento suicida.
Método
Foi realizada uma revisão da literatura de linha temporal aberta, utilizando a estratégia estruturada de busca SPIDER (Sample, Phenomenon of Interest, Design, Evaluation, Research type) e o protocolo PRISMA (Preferred Reporting Items for Systematic Reviews and Meta-Analyses) para recuperação das evidências nas bases de dados PubMed/Medline, Web of Science, SCOPUS, PsycINFO, CINAHL e LILACS.
Os descritores e keywords Mental Health Services, Suicide, Interview as Topic, Expert Testimony e Qualitative foram adaptados, de acordo com as especificidades de cada banco de dados [Descritores em Ciências da Saúde (DeCS), APA Thesaurus, CINAHL Subject Headings, Medical Subject Headings (MeSH) e respectivos entry terms], e agrupados e combinados utilizando-se os operadores boolenos AND / OR.
A partir da questão norteadora “Quais são as evidências qualitativas sobre a experiência emocional de profissionais de saúde mental na assistência a pessoas com comportamento suicida?”, dois pesquisadores com expertise em revisões triaram os artigos e avaliaram, de forma independente, a qualidade metodológica dos estudos, extraíram os dados e elaboraram a síntese temática (Thomas & Harden, 2008).
Resultados
Caracterização dos estudos e da população incluída
Os 21 artigos incluídos nesta revisão (Aherne et al., 2018; Ferreira et al., 2019; Gilje et al., 2005; Goldstone & Bantjes, 2019; Hagen et al., 2017; Høifødt et al., 2007; Hultsjö et al., 2019; Jansson & Graneheim, 2018; Malgarezi et al., 2019; Morrissey & Higgins, 2019, 2021; Podlogar et al., 2020; Rytterström et al., 2020; Sanders et al., 2005; Sun et al., 2019; Ting et al., 2006; Tzeng et al., 2010; Unzueta Callirgos, 2018; Vandewalle et al., 2020; Vedana et al., 2017; Zana & Kovács, 2013) foram publicados entre 2005 e 2021 e derivam de estudos conduzidos em 10 países diferentes: Bélgica (N=1), Brasil (N=4), Irlanda (N=3), Noruega (N=3), Peru (N=1), Eslovênia (N=1), África do Sul (N=1), Suécia (N=3), Taiwan (N=2), Estados Unidos (N=2).
A fundamentação teórico-metodológica dos estudos foi variada: fenomenologia (N=6), método fenomenográfico (N=1), construcionismo social (N=1), interacionismo simbólico (N=1) e etnografia (N=1); 11 estudos declararam, genericamente, que utilizaram a abordagem qualitativa e explicitaram apenas o método ou técnica utilizada para análise dos dados, sendo predominante a Teoria Fundamentada nos Dados (N=7).
Os dados dos estudos foram coletados por meio de entrevistas individuais (N=12), grupo focal (N=1), questionário autoaplicável (N=1), combinação de entrevistas e notas de campo (N=4), combinação de entrevista individual, grupo e ficha de dados (N=1) e combinação de entrevista individual e questionário sociodemográfico (N=2).
A amostra dos 21 estudos abrangeu 435 participantes. Os profissionais eram de distintas áreas de conhecimento e especialidades: enfermagem (N=10), psicologia (N=5), serviço social (N=2), medicina geral (N=1); em alguns estudos a amostra foi composta por profissionais diversos da área da saúde e psiquiatras (N=3). Os contextos de trabalho englobaram psiquiatria e saúde mental em hospitais gerais e psiquiátricos, clínicas ambulatoriais e de internação (N=8), estratégia de saúde da família (N=1), serviço de intervenção em suicídio (N=1), serviço de emergência (N=1), psicologia clínica (N=1), psiquiatria clínica (N=1), serviços comunitários (N=1) e estudo realizado em mais de um destes contextos (N=2), além de investigações que não especificaram o contexto ou apenas informaram tratar-se de setor público e/ou privado (N=5). Em relação ao tempo na prática, foram incluídos desde estudantes de graduação em seu primeiro contato com o trabalho em saúde mental, até profissionais de saúde com 35 anos de experiência.
Síntese dos achados
Os resultados foram organizados em três temas descritivos (1) Impacto emocional do contato com experiências perturbadoras na prática profissional; (2) O outro lado da moeda: o encontro com experiências favoráveis; (3) Implicações emocionais do trabalho para a vida pessoal e profissional. Com base nesses temas centrais, foi elaborado o tema analítico: Entre o doce e o amargo: transformações pessoais e profissionais vivenciadas no cuidado de pessoas com comportamento suicida.
Em conformidade com os achados evidenciados, este tema analítico demonstra que o profissional de saúde mental que trabalha com pessoas que manifestam ideação suicida, fazem tentativas e/ou consumam o autoextermínio, experienciam sentimentos diversos, que englobam tanto vivências penosas (“amargas”) quanto satisfatórias (“doces”). Este tema analítico revela que esse misto de sentimentos desencadeia repercussões emocionais que afetam o equilíbrio psicológico dos profissionais. A exposição recorrente a situações relacionadas ao comportamento suicida de pacientes gera consequências e transformações significativas tanto no âmbito da atuação profissional como na vida pessoal do profissional de saúde.
Tema descritivo 1 - Impacto emocional do contato com experiências perturbadoras na prática profissional
Os resultados evidenciaram que o trabalho com pacientes que apresentam comportamento suicida é emocionalmente impactante e intenso, com elevado potencial de eliciar reações negativas. O profissional fica exposto a vivências e sentimentos disruptivos em sua prática. Em quase todos os estudos os profissionais referiram que se sentem confusos, desorganizados, entorpecidos ou inábeis, sendo muito comum que eles também se percebam como limitados, impotentes, frustrados, indefesos e desesperançosos ao se depararem com um paciente que manifesta desejo de se suicidar. Muitas vezes isso se deve ao fato de se sentirem despreparados e de contarem com treinamento insuficiente.
Foram relatados também sentimentos de raiva, irritação e traição. Nesse sentido, identificou-se a ocorrência de atitudes condenatórias e discriminatórias em relação aos pacientes por parte de alguns profissionais. Destacam-se, ademais, vivências de medo e apreensão de que o paciente leve a cabo seus intentos, provocando inúmeras preocupações, inclusive quanto à imagem social dos profissionais, que temem ser desmoralizados em sua credibilidade.
Ansiedade, desconforto e angústia foram sentimentos recorrentes, o que leva os profissionais a considerarem seu trabalho com a demanda de comportamento suicida difícil, desafiador e complexo, além de exaustivo e desvitalizante. Os sentimentos relatados pelos profissionais após o suicídio de algum de seus pacientes abarcam primordialmente a presença de auto-culpabilização. Profissionais também descrevem que se sentem deprimidos, tristes, chateados e em processo de luto. Alguns profissionais também referiram vivências traumáticas e de choque, surpresa, intrusão, exposição, solidão e isolamento, além de se sentirem frequentemente desapontados com o próprio desempenho. Reações de negação, descrença e vergonha também foram explicitadas. Alguns relataram experienciar vazio emocional.
Tema descritivo 2 - O outro lado da moeda: o encontro com experiências favoráveis
Apesar do inegável sofrimento psíquico subjacente às experiências perturbadoras relatadas no tema anterior, esta revisão também encontrou experiências favoráveis de profissionais de saúde mental no trabalho com pacientes que manifestam comportamento suicida. É claro que tais experiências não ocorrem isoladamente e de forma exclusiva, estando sempre permeadas em alguma medida pelo sofrimento. Também são descritas com menor frequência. Dentre os sentimentos agradáveis experienciados e que são referidos na maior parte dos estudos incluídos na revisão destacam-se: empatia, compaixão, respeito, altruísmo e paciência.
Há também relatos de alívio quando o suicídio de algum paciente se consuma, o que parece estar ligado a dois motivos centrais: a cessação do sofrimento crônico e persistente dessas pessoas e o encerramento de uma demanda penosa com a qual o profissional se percebia exaurido por ter que lidar. Há profissionais que afirmam sentirem-se gratos por poderem aprender com os pacientes e, assim, enriquecer suas experiências profissionais.
Além disso, muitos profissionais referiram que se sentem capazes e confiantes, além de esperançosos e aliviados ao perceberem que suas intervenções resultam em efeitos positivos na prevenção do suicídio, à medida que seus pacientes melhoram.
Tema descritivo 3 - Implicações emocionais do trabalho para a vida pessoal e profissional
Os estudos evidenciaram que a intensidade das emoções anteriormente descritas faz com que o profissional de saúde mental não saia ileso da experiência de trabalhar na atenção a pessoas que manifestam comportamento suicida, o que gera implicações tanto no âmbito profissional quanto na vida pessoal. Não por acaso, um dos aspetos mais relatados nos estudos incluídos nesta revisão é a necessidade que os profissionais sentem de estabelecer limites em seu trabalho, especialmente nas interfaces entre a atuação profissional e sua existência enquanto indivíduos, buscando demarcar com mais clareza o tipo de relação que devem estabelecer com tais pacientes.
A responsabilidade por tomar decisões corretas no manejo de pacientes com risco de suicídio emerge nos estudos como uma implicação profissional relevante, que por sua vez coloca em movimento outros elementos que impactam a atuação profissional, como os comportamentos evitativos em relação a atender tais demandas. Alguns profissionais se sentem tão impactados a ponto de trocarem de contexto de trabalho e realizarem mudanças concretas em suas vidas pessoais.
Um dos elementos mais insistentemente referidos pelos profissionais como fundamentais para a intervenção no contexto do risco de suicídio é o autocuidado, evidenciando a necessidade de cuidarem de sua própria saúde psíquica submetendo-se à psicoterapia pessoal e supervisão regular com outros profissionais de saúde mental. Esses cuidados básicos asseguram espaços de escuta e reflexão sobre os próprios sentimentos, contribuindo para melhor gestão das emoções despertadas pelo trabalho, de modo a reduzir a vulnerabilidade pessoal.
Discussão
Concluiu-se que os profissionais experimentam sentimentos ambivalentes durante o trabalho com a população vulnerável ao risco suicida, os quais repercutem e geram transformações significativas nas esferas da vida pessoal e laboral. Os resultados contribuem para a capacitação multiprofissional, de modo a se incluir o cuidado emocional aos profissionais que trabalham com pessoas que apresentam ideação e tentativas de suicídio, além de programas de posvenção, com vistas à prevenção de possíveis complicações decorrentes da exposição ao processo de luto e sofrimento psíquico.
Agradecimentos
Este estudo foi realizado com apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq (Bolsa de Produtividade em Pesquisa).
Contribuição dos autores
Natália Ferracioli: Concetualização, Curadoria dos dados, Análise formal, Investigação, Metodologia, Administração do projeto, Recursos, Redação do rascunho original, Redação - revisão e edição
Elaine Rodrigues: Investigação, Análise formal, Metodologia
Érika Oliveira-Cardoso: Investigação, Análise formal, Metodologia Redação - revisão e edição
Manoel Antônio dos Santos: Concetualização, Curadoria dos dados, Análise formal, Aquisição de financiamento, Investigação, Metodologia, Supervisão, Redação do rascunho original, Redação - revisão e edição