Em 2020, a disseminação acelerada do novo coronavírus (SARS-CoV-2), agente causador da COVID-19, exigiu a adoção de diversas medidas sanitárias para evitar o colapso do sistema de saúde, reduzir o pico de incidência de novos casos de infecção e, consequentemente, o número de mortes (Oliveira et al., 2020b; Santos et al., 2020). Assim, medidas protetivas, como isolamento e distanciamento físico, preconizadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS), passaram a ser adotadas nos estados e municípios brasileiros (Brooks et al., 2020; Ferguson et al., 2020; Organização Pan-Americana de Saúde, 2020).
A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), por meio da nota técnica GVIMS/GGTES/ANVISA nº 07/2020, orientou a elaboração de um plano de contingência a fim de definir diversas ações práticas necessárias nos serviços de saúde para o enfrentamento da situação de crise. Nesse contexto, o papel da Psicologia consistiu em contribuir com a implantação dos protocolos sanitários e serviços estratégicos, apoiar os demais profissionais das equipes, divulgar informações confiáveis, orientar sobre os serviços da rede de assistência disponíveis e oferta de suporte psicossocial, com foco na promoção de bem-estar, de modo a mitigar o sofrimento intenso e prevenir agravos futuros (Fiocruz, 2020; Oliveira et al., 2020a).
As alterações drásticas e abruptas na dinâmica do trabalho, provocadas pela emergência sanitária, exigiram adaptações e criatividade por parte das equipes de saúde. Em resposta aos desafios impostos pela situação emergencial, o uso de Tecnologia da Informação e Comunicação (TIC) passou a ser amplamente reconhecido e incentivado (Oliveira-Cardoso et al., 2020).
No cenário caótico que se instalou nos primeiros meses da pandemia, as intervenções grupais configuraram uma alternativa efetiva frente à descontinuidade da oferta de cuidados psicológicos presenciais, potencializando recursos de ajuda mútua diante da crise e favorecendo a troca de experiências de conforto, alívio das tensões e manutenção da rede de apoio em tempos de distanciamento social e luto coletivo (Sola et al., 2022; Wallace et al., 2020; Wang et a., 2020; Weir, 2020).
Considerando o exposto, este estudo teve como objetivo analisar os conteúdos relacionados às vivências do luto que emergiram em sessões de um grupo terapêutico online realizado durante a pandemia da COVID-19,
Método
Tipo de Estudo
Trata-se de um estudo de delineamento transversal, descritivo-exploratório, que utilizou o método clínico-qualitativo. Segundo Turato (2011), esta perspetiva metodológica corresponde a uma particularização dos métodos qualitativos, na qual os significados que as pessoas atribuem ao binômio saúde-doença são interpretados a partir de uma confluência de três posturas epistemológicas: clínica, existencialista e psicanalítica.
Referencial Teórico
Como referencial teórico, foi adotada a teoria do luto proposta por Parkes (1998, 2009), que considera uma variedade de fatores determinantes do processo de luto, tais como: a qualidade da relação estabelecida com a pessoa falecida, as características de personalidade da pessoa enlutada e da pessoa falecida, o tipo de morte ocorrida e o contexto da perda, a presença ou ausência de apoio social e familiar, o status socioeconômico, a exposição prévia do indivíduo enlutado a outras situações de estresse e sua capacidade de identificar ou não oportunidades emergentes de amadurecimento pessoal na experiência de sofrimento.
Participantes
Foram critérios de inclusão no estudo: idade igual ou superior a 18 anos; ter vivenciado a perda de ao menos um familiar em decorrência de complicações da COVID-19 nos últimos 12 meses; ser residente no Brasil e ter acesso à internet. A seleção dos participantes foi realizada por meio de convite enviado por rede social do Grupo de Estudos e Intervenções Lutos e Terminalidades (LUTE), associado ao Laboratório de Ensino e Pesquisa em Psicologia da Saúde (LEPPS), da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, que esclarecia que a intervenção seria realizada em formato de grupo terapêutico fechado e que era parte de um projeto de pesquisa que investigava a efetividade da aplicação de grupos online para sujeitos enlutados.
Cuidados Éticos
Foram seguidos todos os cuidados éticos necessários. Os objetivos do estudo foram inicialmente explicitados aos membros do grupo e as condições de sigilo e preservação do anonimato foram asseguradas. A pesquisa foi realizada após a obtenção da concordância dos participantes, que firmaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).
Procedimentos de coleta de dados
O grupo terapêutico foi coordenado por três profissionais de Psicologia, de agosto a dezembro de 2021, totalizando 20 sessões, com duração aproximada de 80 minutos cada. As sessões grupais aconteceram por meio de uma plataforma online de vídeo-conferência e foram transcritas na íntegra logo após o término de cada sessão. As transcrições constituíram o corpus de pesquisa.
Análise dos dados
Seguindo o que é preconizado no método de análise temática reflexiva, proposto por Braun e Clarke (2006, 2019), padrões repetidos de significados detectados no corpus do estudo foram identificados por dois pesquisadores, que analisaram os dados de forma independente e de maneira indutiva, semântica e realista (Braun & Clarke, 2020).
Resultados
Participaram do grupo nove pessoas enlutadas, a maioria mulheres (n = 7), com idades entre 21 e 52 anos, residentes nos estados de São Paulo, Minas Gerais e Bahia. Em relação aos familiares falecidos, a maioria dos participantes havia perdido um dos pais (quatro mães e três pais), seguidos por perdas de avós e cônjuges. A idade dos familiares falecidos variou de 30 a 85 anos, e o tempo de falecimento de dois a 11 meses. Quatro participantes sofreram perdas múltiplas (morte de mais de um membro familiar em decorrência da COVID-19), compreendendo um total de 16 perdas, com intervalo máximo de uma semana entre as mortes ocorridas em uma mesma família.
Os resultados foram organizados em quatro categorias: (1) “Estou exalando saudades”; (2) “ O luto é solitário”; (3) “Parece que não é certo ficar feliz”; (4) “Ele(a) dizia para eu realizar meus sonhos”.
Estou exalando saudades
A perda dos familiares em decorrência de complicações da COVID-19 havia ocorrido entre dois e 11 meses, sendo, portanto, recente. O impacto da morte repentina e inesperada do ente querido ainda estava muito presente e o sentimento de saudade foi frequentemente compartilhado pelos participantes, que buscaram maneiras de reorganizar suas rotinas tentando seguir adiante sem a presença dos familiares falecidos.
É importante considerar que as mortes ocorreram em períodos nos quais o número de óbitos provocados pela COVID-19 no Brasil era exponencialmente elevado, dada a desproteção imunológica da população e a inexistência de tratamento de comprovada eficácia. Por outro lado, as medidas sanitárias, tais como o distanciamento social e a crise econômica agravada pela paralisação da economia contribuíram para a fragilização das redes de proteção social.
No contexto brasileiro, a gestão errática da pandemia pelo governo federal, o desmonte de políticas públicas e a ausência de ações de inclusão socioeconômica e de apoio familiar frente ao aprofundamento das desigualdades sociais, contribuíram para maximizar os sentimentos de desamparo e solidão dos grupos vulneráveis. Considerando esse panorama, foram recorrentes, durante as sessões, os relatos a respeito de se sentir perdido(a) e sem motivação para executar as tarefas do dia a dia.
Queria saber qual é o meu lugar no mundo. Parece que, sem minha mãe, nada mais importa. Parece que estou no meio da rua 25 de março em São Paulo [rua conhecida pela concentração de comércio popular e pelo movimento intenso de transeuntes], uma semana antes do Natal. Estou lá no meio, sem saber que rumo quero tomar e sem tomar um rumo. (Enlutada pela morte da mãe)
É como se eu estivesse no escuro. Eu não vejo uma saída, não vejo uma porta, não vejo nada. Eu não sei como agir, o que fazer, nada, ou por onde começar. O que eu vou fazer? [Chora]. É muito difícil. (Enlutada pela morte do marido, da sogra e do sogro)
Tudo o que eu fazia era pensando neles. Se for pra conquistar algo, era por eles. Então, perdi o chão, de verdade. E perdi também a motivação. Eu não tenho motivação. Eu vou trabalhar porque eu preciso do financeiro e também porque eu ia entrar numa depressão e morrer. Mas eu tenho a impressão de que eu nunca vou voltar a ser a pessoa que eu era antes. E isso me assusta. Eu acho assim: a maior dor que um ser humano pode sentir, eu já senti. A pior perda. (Enlutada pela morte da mãe, do pai e do irmão)
O luto é solitário
Nos momentos mais agudos da pandemia, mensagens contraditórias foram emitidas por autoridades do governo federal, que incentivaram as pessoas a reestabelecerem suas rotinas e a retornarem ao trabalho, expondo-se ao risco de infecção. Além disso, festas e shows aconteciam clandestinamente, contrariando as normas sanitárias e afrontando a proibição estabelecida pelas autoridades, o que gerava intenso desconforto nos participantes diante do mundo que continuava a se mostrar indiferente à dor alheia. O sofrimento também foi agravado pela vivência de datas comemorativas, como o Dia dos Pais e Natal, que remetem à memória de encontros familiares, ampliando sentimentos melancólicos.
Assim, eram frequentes os relatos de solidão e desamparo, experienciados pelos participantes com o sentimento penoso de que estavam sós no mundo, com suas perdas. Afinal, se o mundo continuava como se nada houvesse mudado, só eles estavam sofrendo e com dificuldades em retomar suas vidas. O sentimento de solidão, inclusive, foi um dos fatores que incentivou os participantes a buscarem o grupo terapêutico, uma vez que reconheceram a oportunidade de compartilhar suas experiências com outras pessoas que poderiam ouvir suas histórias e entendê-las genuinamente.
Eu faço terapia, tento falar e viver esse luto. E quando eu perguntei pra minha psicóloga se seria redundante estar aqui no grupo, ela falou: “Não, não é redundante”. Ela falou: “A terapia individual serve pra uma coisa, a terapia em grupo vai servir pra outra coisa”. E ela falou: “Eu não consigo lidar com certas questões que talvez você vai conseguir lidar na terapia em grupo. Porque você vai estar coletivizando a sua dor”. Eu achei isso muito bonito. (Enlutado pela morte da mãe)
Parece que só eu que tenho esse sentimento, que tive essa perda. É bom, às vezes, a gente compartilhar o que a gente sente, porque assim a gente não se sente sozinha, a gente não se sente solitária nesse mundo de revolta. (Enlutada pela morte da mãe)
A gente virou família aqui, compartilhamos os sentimentos e as perdas também. (Enlutada pela morte da mãe)
Parece que não é certo ficar feliz
Com o passar do tempo e o fortalecimento dos vínculos grupais, os participantes passaram a relatar, durante os encontros, maior abertura e disponibilidade para também vivenciar alguns bons momentos, com busca mais efetiva por obter satisfações e desfrutar de eventuais realizações. No entanto, concomitantemente, experimentavam culpa por estarem tentando seguir em frente, como se não devessem estar aproveitando a vida.
Assim, os enlutados procuraram obter no grupo não só o reconhecimento e a legitimação de suas dores e perdas, como buscaram também “autorização” para usufruírem dos bons momentos e prazeres da vida, como descrito no diálogo ocorrido durante um dos encontros:
Acho que estamos em um vício emocional de ficar triste. Quando a gente está feliz, a gente se sabota para ficar triste. Sabota de alguma forma a nossa felicidade. (Enlutada pela morte da mãe)
Parece que nosso normal é ficar triste. (Enlutada pela morte da mãe)
Parece que não é certo ficar feliz. Não posso ficar feliz sabendo que minha mãe está sozinha, sabendo que está triste. Talvez a gente se puna pela morte da pessoa. (Enlutada pela morte do pai e do avô)
Ele(a) dizia para eu realizar meus sonhos
A dificuldade de seguir com a vida sem a presença dos familiares falecidos foi relatada pelos participantes que, ao longo dos encontros, puderam aproveitar de lembranças carregadas de afeto como combustível para impulsionar a continuidade e o trabalho de reconstrução da vida.
Durante as últimas sessões grupais, os participantes relataram sentimentos conflitantes alimentados pelo fato de perceberem que continuavam a escrever suas histórias, porém, por vezes não se sentiam preparados para dar esse passo. Após a realização de um exercício reflexivo proposto, os participantes relataram:
Parece que eu senti minha mãe aqui comigo. Ontem me perguntaram se eu já tinha sentido a presença dela [mãe], hoje eu senti. Parece que eu ouvi ela falando: “Eu te criei para o mundo”. (Enlutada pela morte da mãe)
Parecem duas sensações. Parece uma sensação de estar sozinha e outra de estar preparada para caminhar. (Enlutada pela morte da mãe)
Lembrei que meu pai falava que eu ia realizar meus sonhos. Parece que senti a presença dele, me ajudando a levantar para voltar para o mundo. (Enlutada pela morte do pai e da avó)
Eu senti o quanto está difícil voltar para o mundo. Sinto que não estou pronta para voltar para o mundo. (Enlutada pela morte do pai e do avô)
Discussão
Um dos agravantes do processo de enlutamento dos familiares no Brasil foi a mescla de incúria e insensibilidade demonstradas pelo governo na gestão federal da situação pandêmica. O desmantelamento das políticas públicas de saúde, perpetrado pelo governo de extrema-direita de Jair Bolsonaro, e a ausência de ações compensatórias efetivas para proteção dos grupos sociais mais vulneráveis do ponto de vista socioeconômico deixaram as famílias expostas ao sofrimento psicossocial, intensificando vivências de desamparo e solidão (Santos et al., 2020). Por conseguinte, a experiência traumática da perda inesperada de familiares e a posterior reorganização da vida após a morte ocorreram em um contexto no qual o distanciamento físico era imperativo e se somou a outras vivências de ruptura que estavam sendo simultaneamente vivenciadas, tais como a perda da rotina diária, da segurança financeira e alimentar, da saúde física e psíquica, o que acentuou o impacto das situações estressantes (Ferracioli et al., 2021; Moura et al., 2022; Oliveira-Cardoso et al., 2020).
Diante dos desafios impostos pela pandemia, implementar intervenções em modalidades não convencionais foi uma medida necessária para oferecer apoio psicológico aos segmentos mais vulneráveis da população, como as pessoas enlutadas por perdas de entes queridos em decorrência de complicações da pandemia de COVID-19. Em consonância com a literatura (Fiocruz, 2020; Sola et al., 2022; Wallace et al., 2020; Wang et al., 2020; Weir, 2020), os resultados obtidos pelo estudo mostraram que a intervenção grupal se afigurou como uma alternativa viável e efetiva, ao possibilitar o fortalecimento das defesas e a redução do estresse agudo, mitigando o sofrimento intenso. Além disso, observou- se que a rede de apoio social pôde ser, graças ao grupo, expandida entre os participantes, que criaram vínculos significativos que perduraram após o encerramento da intervenção.
No cenário da pandemia, a intervenção grupal online representa uma alternativa efetiva e segura para a oferta de cuidados psicológicos e ajuda mútua diante da crise, favorecendo a potencialização e o intercâmbio de recursos para fornecer conforto, alívio das tensões e manutenção da rede pessoal de apoio em tempos de perdas repentinas, distanciamento social e fragilização dos laços e das redes de proteção social (Oliveira et al., 2021).
Financiamento
Esta pesquisa conta com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), mediante concessão de bolsa de mestrado, processo número 88887.643082/2121-00.
Contribuição dos autores
Pamela Sola: Concetualização; Curadoria dos dados; Análise formal; Metodologia; Redação do rascunho original.
Juliana Garcia: Concetualização; Curadoria dos dados; Análise formal; Validação.
Jorge dos Santos: Concetualização; Curadoria dos dados; Análise formal; Validação.
Manoel Antônio dos Santos: Supervisão e Redação - revisão e edição.
Érika Oliveira-Cardoso: Supervisão e Redação - revisão e edição.