A diabetes é uma doença crónica que está a tomar proporções epidémicas, uma vez que apresenta uma prevalência elevada e crescente a nível mundial (Moura, 2019; World Health Organization [WHO], 2016). Portugal não é exceção, registando uma das taxas mais elevadas da Europa (International Diabetes Federation [IDF], 2019).
Segundo a Associação Protectora dos Diabéticos de Portugal [APDP] (2021), a diabetes tipo 1 é mais rara e atinge na maioria das vezes crianças e jovens, mas também poderá aparecer em adultos. As células beta do pâncreas deixam de produzir insulina, devido a um processo de destruição das mesmas (APDP, 2021).
Logo após o diagnóstico, os indivíduos com diabetes tipo 1 devem efetuar um complexo plano de ações comportamentais de cuidados diariamente, ao longo de toda a vida, de modo a manterem um controlo metabólico adequado e reduzirem a probabilidade de complicações (IDF, 2019; Serrabulho et al., 2014). As atividades de autocuidado resumem-se, de forma genérica, à administração de insulina, à monitorização da glicemia, à realização de uma alimentação saudável, à prática de atividade física, aos cuidados com os pés e aos hábitos tabágicos (APDP, 2021; IDF, 2019; Serrabulho et al., 2014). Uma vez que a gestão da diabetes implica mudanças na rotina familiar e pessoal, a adesão ao tratamento é uma preocupação atual e o desafio dos profissionais de saúde (APDP, 2021; Serrabulho et al., 2014).
Os obstáculos à adesão ao tratamento devem ser analisados na perspetiva do indivíduo e incluem fatores intrapessoais (e.g. ausência de planeamento, défices de conhecimento) e ambientais (e.g. interferências sociais, ausência de suporte), que competem com a tentativa de seguir o regime terapêutico prescrito (Almeida, 2003). No estudo de Alvarado-Martel et al. (2019) averiguou-se que a maioria dos indivíduos com diabetes tipo 1 considera ser difícil seguir as recomendações para a gestão desta doença crónica. Por outro lado, Marques (2015) verificou que estes sujeitos apresentam poucas dificuldades globais no tratamento da diabetes. Nas investigações de Almeida et al. (2012) e de Serrabulho et al. (2014) constatou-se uma dificuldade muito significativa, por parte dos adultos com diabetes tipo 1, para cumprir a automonitorização, a alimentação e o exercício físico. De acordo com Pires e seus colaboradores (2016), os indivíduos com diabetes têm dificuldades na aplicação de insulina e na realização de uma alimentação saudável. E ainda, no estudo de Raulino (2015), observou-se que os obstáculos gerais e os obstáculos à toma da medicação são os que mais influenciam a autogestão nos sujeitos com diabetes tipo 1. Sendo assim, vários estudos têm demonstrado que a perceção de obstáculos ao tratamento se associa à capacidade de autocuidado na diabetes tipo 1, pelo que os indivíduos que relatam dificuldades em seguir o regime terapêutico, obtêm pontuações mais baixas na adesão às atividades de autocuidado (Adu et al., 2019; Alvarado-Martel et al., 2019; Raulino, 2015; Umeda et al., 2020).
O presente estudo, de natureza exploratória e de desenho transversal, tem como objetivo identificar os obstáculos que dificultam a autogestão, nomeadamente a realização das atividades de autocuidado, e compreender como estes podem estar associados com a adesão ao tratamento recomendado em adultos portugueses com diabetes tipo 1.
Método
Participantes
Foi estudada uma amostra não aleatória, do tipo “bola de neve”, constituída por 268 indivíduos com o diagnóstico de diabetes tipo 1, com idades compreendidas entre os 18 e os 88 anos (M=39,27; DP=12,59), residentes em várias regiões de Portugal.
Desta amostra, destacam-se as seguintes características: 70,9% (n=190) do sexo feminino e 28,0% (n=75) do sexo masculino; 34,7% são solteiros/as (n=93) e 34,0% são casados/as (n=91); 86,2% vive acompanhado/a (n=231); 54,5% frequentou o ensino superior (n=146); 69,4% é trabalhador/a (n=186); 76,5% utiliza caneta/seringa (n=205); 87,7% refere que atualmente não tem qualquer acompanhamento psicológico/psiquiátrico (n=235).
Material
Os participantes responderam aos seguintes instrumentos: (1) Questionário Sociodemográfico e Clínico, desenvolvido especificamente para o presente estudo; (2) Escala de Atividades de Autocuidado na Diabetes (Summary of Diabetes Self-Care Activities - SDSCA) (Toobert et al., 2000; versão portuguesa de Bastos, 2004), escala de medida multidimensional de autogestão da diabetes, que mede indiretamente a adesão, através dos níveis de autocuidado; (3) Escala de Barreiras no Tratamento da Diabetes (Barriers to Self-Care Scale - BSCS) (Glasgow, 1993; versão portuguesa de Almeida, 2003), questionário que pretende identificar componentes ambientais e cognitivos que interferem com os objetivos da adesão ao tratamento da diabetes; (4) Escala Hospitalar da Ansiedade e Depressão (The Hospital Anxiety and Depression Scale - HADS) (Zigmond & Snaith, 1983; versão portuguesa de Pais- Ribeiro et al., 2007), escala que tem como objetivo a deteção de estados de depressão e ansiedade. Estes mesmos instrumentos foram reunidos num formulário eletrónico.
Procedimento
O presente estudo foi devidamente autorizado pela Comissão de Ética da Universidade Fernando Pessoa. Para a recolha dos participantes, foram contactadas algumas Associações de Pessoas com Diabetes em Portugal, por via correio eletrónico, com o objetivo de pedir a colaboração nesta investigação. Abordadas formalmente, duas destas instituições aceitaram contribuir no apoio a este estudo, divulgando e convidando os seus associados adultos com diabetes tipo 1, através das redes sociais (Facebook) e mailing lists, a responderem a um questionário online, disponível no Google Forms, que incluiu a autorização informada e os quatro instrumentos referidos anteriormente. Os dados foram recolhidos entre janeiro e março de 2021, e posteriormente, analisados através do programa estatístico SPSS (Statistical Package for the Social Sciences - Versão 27.0).
Resultados
Relativamente à SDSCA, a estatística descritiva revelou que os Medicamentos (insulina) foram a dimensão de autocuidado com uma média superior (M=6,43; DP=1,82), seguindo-se a Monitorização da glicemia (M=6,33; DP=1,49), os Cuidados com os pés (M=5,61; DP=1,34) e a Alimentação específica (M=5,45; DP=0,84). Os comportamentos de autocuidado que registaram uma menor adesão, por parte dos participantes, foram a Alimentação geral (M=4,91; DP=1,51) e a Atividade física (M=2,20; DP=2,11). No domínio dos Hábitos tabágicos, 70,9% dos inquiridos afirma que não fumou um cigarro nos últimos 7 dias (n=190).
Os valores da estatística de tendência central da BSCS revelaram uma média superior nos problemas relativos aos Obstáculos gerais (M=2,04; DP=0,89), à Dieta (M=1,97; DP=0,65) e ao Exercício físico (M=1,87; DP=0,66). As subescalas Pesquisa de glicemia (M=1,51; DP=0,54) e Medicação (M=1,58; DP=0,57) apresentaram médias inferiores. E os problemas globais apresentaram uma média de 1,76 (DP=0,53), numa escala do tipo Likert de 1 a 5.
No que se refere à associação entre os obstáculos no regime terapêutico, avaliados pela BSCS, e a autogestão da diabetes tipo 1, avaliada pela SDSCA, os resultados indicam, como podemos ver no Quadro 1, que foram observadas correlações altamente significativas, inversas e fracas, entre os autocuidados Alimentação geral e Atividade física, e os problemas no tratamento. A atividade de autocuidado Alimentação específica revelou estar negativamente correlacionada, de forma fraca, com os problemas relacionados com a Dieta, o Exercício físico, a Pesquisa de glicemia e a Medicação, bem como positivamente correlacionada, de forma fraca, com os problemas globais. O comportamento de autocuidado Medicamentos revelou estar negativamente correlacionado, de forma fraca, com os problemas associados à Dieta, à Pesquisa de glicemia, à Medicação, e ainda, com os problemas globais. Em contrapartida, não existe uma relação estatisticamente significativa entre os autocuidados Monitorização da glicemia e Cuidado com os pés, e os obstáculos no tratamento da diabetes (p>0,05) (Quadro 1).
Quanto aos níveis de ansiedade e depressão, avaliados pela HADS, 48,1% e 70,5% da amostra apresentou um índice “normal” (n=129; n=189), respetivamente. Por sua vez, o nível de ansiedade está relacionado de forma significativa, direta e moderada, com os problemas no tratamento da diabetes. E o nível de depressão demonstrou estar positivamente correlacionado, de forma fraca a moderada, com os obstáculos no tratamento da diabetes (Quadro 2).
Nota. AG = Alimentação geral; AE = Alimentação específica; AF = Atividade física; MG = Monitorização da glicemia; CP = Cuidados com os pés; M = Medicamentos.
Discussão
Os resultados obtidos neste estudo empírico revelam que as atividades de autocuidado que os adultos com diabetes tipo 1 aderem mais são os Medicamentos (insulina), a Monitorização da glicemia, os Cuidados com os pés e a Alimentação específica. Por outro lado, os comportamentos de autocuidado que os participantes aderem menos são a Alimentação geral e a Atividade física, dados estes que são congruentes com a literatura (Moura, 2019; Visentin et al., 2016).
Relativamente às dificuldades encontradas pelos indivíduos no tratamento da diabetes tipo 1, destacam-se os Obstáculos gerais, os obstáculos relacionados à Dieta e ao Exercício físico. Deste modo, as áreas de tratamento em que os inquiridos referiram menos barreiras foram a Pesquisa de glicemia e a Medicação. Estes resultados vão de encontro aos apresentados anteriormente quanto a adesão às atividades de autocuidado. Na literatura foram encontrados estudos com diversas conclusões, sendo que alguns confirmam o predomínio destes obstáculos (Almeida et al., 2012; Serrabulho et al., 2014) e outros não (Pires et al., 2016; Raulino, 2015).
Na presente investigação observou-se que os adultos não percecionam muitas dificuldades no tratamento da diabetes tipo 1, uma vez que a média obtida nos problemas globais foi de 1,76, numa escala do tipo Likert de 1 a 5. Este resultado, idêntico ao apresentado por Marques (2015), pode ser explicado pela hipótese da desejabilidade social, pelos participantes possuírem uma boa educação terapêutica, um bom acompanhamento multidisciplinar, um maior autocontrolo e apoio dos pares, resultante da integração destes em Associações de Pessoas com Diabetes.
Quanto à relação entre os obstáculos no tratamento e a autogestão da diabetes tipo 1, os problemas globais revelaram uma correlação inversa com a adesão à Alimentação geral, à Atividade física e aos Medicamentos. Estas conclusões vão de encontro às apresentadas noutros estudos, sendo consensual que as barreiras no regime terapêutico estão associadas a uma menor capacidade de autocuidado na diabetes tipo 1, ou seja, quando a perceção de obstáculos é elevada, a adesão ao autocuidado geralmente é baixa (Adu et al., 2019; Alvarado-Martel et al., 2019; Raulino, 2015; Umeda et al., 2020).
Contrariamente, os problemas globais mostraram-se positivamente correlacionados com a autogestão da Alimentação específica, ou seja, quanto maior a identificação de obstáculos, maior a adesão a este autocuidado, revelando maiores dificuldades nesta área. Uma possível explicação deste resultado, que inclusive é coerente com a investigação de Raulino (2015), pode estar relacionada com o trabalho da equipa multidisciplinar que acompanha estes inquiridos, que poderão estar a providenciar uma boa educação sobre a alimentação, nomeadamente sobre o consumo de alimentos não recomendados. Averiguou-se assim que a perceção de obstáculos ao tratamento recomendado em adultos portugueses com diabetes tipo relaciona-se com a autogestão desta doença crónica, especificamente com as atividades de autocuidados.
O presente estudo teve, no seu decurso, algumas limitações: (1) A amostra ter sido selecionada de forma não probabilística, por “bola de neve”, o que implica o risco desta não ser representativa; (2) Os participantes serem provavelmente “bons doentes”, pelo que não terão respondido ao questionário aqueles que têm um péssimo autocontrolo; (3) A amostra não possuir um número muito elevado de inquiridos em comparação com a população portadora de diabetes em Portugal, podendo não ilustrar a realidade e as suas características; (4) Os respondentes serem maioritariamente jovens adultos e diferenciados; (5) Este ser um estudo transversal, que não permite inferir uma relação de causa e efeito.
Sendo assim, sugere-se a realização de investigações futuras acerca desta temática, noutro contexto que não o pandémico (e.g. cuidados de saúde primários e cuidados hospitalares), a partir de uma amostra de maior dimensão, com um desenho de investigação longitudinal e que contemplem dados quantitativos e qualitativos. Ademais, apurou-se que esta é uma área muito importante e pouco estudada em Portugal, à qual dever-se-á prestar maior atenção.
Contribuição dos autores
Telma Rodrigues: Concetualização; Curadoria dos dados; Análise formal; Investigação; Metodologia; Administração do projeto; Recursos; Validação; Visualização; Redação do rascunho original.
Isabel Silva: Concetualização; Análise formal; Investigação; Metodologia; Administração do projeto; Recursos; Supervisão; Validação; Visualização; Redação - revisão e edição.