As alterações físicas e psíquicas decorrentes dos efeitos colaterais do tratamento para o câncer de mama acarretam profundas repercussões emocionais nas mulheres acometidas, notadamente em sua imagem corporal e nos relacionamentos interpessoais (Brunet et al., 2013; Pedersen et al., 2016). A quimioterapia, em particular, é referida pela literatura em Psicologia da Saúde como fonte de acentuado sofrimento físico e emocional para as mulheres acometidas em razão de seus efeitos colaterais, especialmente em decorrência da alopecia induzida pela alta toxicidade dos fármacos (Cebeci et al., 2012; Cesnik & Santos, 2012a; Power & Condon, 2008). Tais impactos podem repercutir nas reestruturações psíquicas que naturalmente ocorrem no período da meia- idade feminina, como resultado de processos biopsicológicos tais como climatério, menopausa e alternância intergeracional (Fagulha, 2005).
Os estudos qualitativos que abordam as experiências emocionais de mulheres com câncer de mama são majoritariamente transversais, sendo escassas as investigações com delineamento prospectivo (Cesnik & Santos, 2012a, 2012b; Souza et al., 2021). Este estudo teve como objetivo compreender prospectivamente a experiência emocional de uma mulher de meia-idade com diagnóstico de câncer de mama ao longo do tratamento quimioterápico.
Método
Foi delineado um estudo de caso individual, qualitativo, exploratório e prospectivo. O estudo de caso único consiste em um método de exploração profunda e detalhada visando à descrição de uma situação específica (Peres & Santos, 2005; Yin, 2015). O indivíduo representa um caso peculiar a ser investigado e a metodologia permite descrições que podem revelar nuanças sobre o fenômeno em seu contexto real (Andrade et al., 2017). Foi adotado o referencial teórico da psicanálise winnicottiana, apropriado para o estudo do fenômeno da experiência emocional no contexto do câncer de mama por se tratar de uma abordagem que destaca a continuidade do desenvolvimento humano ao longo da vida, com base na existência psicossomática e na relação singular com o ambiente (Winnicott, 1948/2000b, 1949/2000c, 1996).
Participante
A participante é uma mulher diagnosticada com câncer de mama, com prescrição de quimioterapia realizada em um centro de tratamento oncológico de uma unidade hospitalar localizada em um município do interior do estado de São Paulo, Brasil. Constituíram critérios de elegibilidade para participação no estudo: ter diagnóstico de câncer de mama (tumor primário), ter idade entre 50 e 60 anos e realizar o tratamento quimioterápico em instituição conveniada à rede do Sistema Único de Saúde (SUS). Foram definidos como critérios de exclusão: situação de recidiva, presença de metástase, evidência de outros tipos de cânceres, limitações para livre manifestação do consentimento.
Material
Os instrumentos utilizados como fonte de evidências para composição do corpus do estudo de caso foram: (1) Entrevista aberta a partir de uma questão disparadora; (2) Formulário de Dados Sociodemográficos e Critério de Classificação Econômica Brasil (CCEB), (3) Procedimento do Desenho-Estória com Tema (PDET), (4) Diário de campo. A entrevista aberta foi realizada mediante questão disparadora (Como você tem vivenciado seu corpo atualmente?), para permitir a aproximação da participante com o tema da pesquisa e possibilitar sua livre expressão, de acordo com seus próprios recursos psíquicos (Macedo & Caldas, 2011). O Formulário de Dados Sociodemográficos possibilitou a caracterização da participante em termos sociais, econômicos e clínicos. O Critério de Classificação Econômica Brasil (CCEB) foi incluído nesse formulário para complementar os dados, oferecendo uma estimativa do estrato social ao qual pertence a entrevistada, de acordo com seu poder aquisitivo avaliado pela posse de itens de conforto doméstico (ABEP, 2016).
O Diário de Campo constituiu um registro descritivo da historicidade do percurso metodológico, elaborado imediatamente após os encontros com a participante, contendo apontamentos pessoais da pesquisadora sobre suas observações acerca da situação de entrevista (Araújo et al., 2013). As notas de campo foram utilizadas como fonte complementar de interpretação do material, a partir de registros de elementos não-verbais, tais como riso, choro e inquietação corporal.
Procedimento
O Procedimento do Desenho-Estória com Tema - PDET consiste na produção de um material de cunho mediador-dialógico, uma materialidade lúdica facilitadora da expressão espontânea da participante (Aiello, 1991). A técnica, adaptada para o contexto desta pesquisa, consistiu em oferecer à participante material gráfico (folha de papel sulfite em branco, lápis preto número 2, caixa de lápis de cor e borracha) e solicitar a produção de um desenho mediante o disparador temático: Desenhe uma mulher com câncer de mama. Em seguida, foi solicitado que a participante contasse uma estória a partir do que desenhou e lhe atribuísse um título. Por fim, a pesquisadora formulou questões para esclarecimento de alguns pontos da narrativa.
Mediante autorização do diretor-clínico da instituição hospitalar, a pesquisadora recebeu semanalmente o nome e o contato telefônico de potenciais participantes. O contato inicial foi estabelecido por meio de ligação telefônica, momento no qual a pesquisadora se apresentava e discorria sobre o estudo que estava realizando, seus objetivos, cuidados éticos e instrumentos utilizados. A partir de 10 potenciais participantes contactadas por telefone, seis aceitaram conversar pessoalmente com a pesquisadora para maiores detalhamentos. Dentre essas, cinco mostraram disponibilidade para a participação. O material produzido por uma participante específica, por suas peculiaridades, foi selecionado para constituir a fonte de evidências e o corpus de análise do presente estudo de caso.
Foram realizados encontros presenciais e individuais em três momentos distintos do tratamento quimioterápico: um primeiro momento, imediatamente anterior ao início das sessões de quimioterapia; um segundo momento, aproximadamente na metade do tratamento quimioterápico, e um terceiro momento, diante do último ciclo de quimioterapia. Os encontros ocorreram em local reservado do centro oncológico, tiveram duração média de uma hora, foram audiogravados e, posteriormente, transcritos na íntegra. No primeiro encontro com a participante foram realizados os seguintes procedimentos: apresentação detalhada do estudo, assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido - TCLE, preenchimento do Formulário de Dados Sociodemográficos, entrevista aberta e PDET. Durante o segundo e terceiro encontros foi realizada a entrevista aberta e aplicado novamente o PDET, utilizando os mesmos disparadores temáticos.
A fonte de evidências do presente estudo de caso (Andrade et al., 2017; Yin, 2015) e o corpus de análise foram constituídos pelo material produzido nos três encontros realizados, a saber: transcrição do material na íntegra, diário de campo, informações coletadas por meio do Formulário de Dados Sociodemográficos e o material pictórico produzido. O material foi organizado temporalmente, agrupando as produções relativas aos três momentos: anterior ao início, durante e ao final do tratamento quimioterápico.
A análise do corpus foi mediada pelo método psicanalítico interpretativo (Herrmann, 1991), que consiste em três movimentos de aproximações sucessivas. O primeiro corresponde à leitura e observação exaustiva do material, buscando manter o estado de atenção flutuante, procurando deixar que sentidos preliminares possam emergir do corpus. O segundo movimento compreende a retomada da totalidade do material e dos sentidos iniciais que emergiram das primeiras leituras, para que a pesquisadora possa identificar pontos de destaque no conjunto. O terceiro movimento consiste em um exercício interpretativo de aproximação e nomeação de um campo de sentido afetivo-emocional encontrado no contato imersivo com o corpus, porém criado/nomeado a partir da vivência concreta do encontro com a participante e para além do discurso manifesto (Ferreira & Aiello-Vaisberg, 2003). Da articulação dos três movimentos foi possível criar/nomear o campo de sentido afetivo-emocional que possibilitou compreender a experiência emocional da participante ao longo do tratamento quimioterápico. Tal campo foi interpretado à luz da psicanálise winnicottiana.
Este estudo atendeu as normas vigentes que regulam as diretrizes éticas para pesquisas que envolvem seres humanos. Foi firmado o Termo de Aceitação da Pesquisa pela direção da unidade hospitalar onde os dados foram coletados. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa e recebeu o Certificado de Apresentação de Apreciação Ética - CAAE número 02679818.0.0000.5407. A participante firmou o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e sua identidade foi preservada.
Resultados
A participante é uma mulher de 55 anos, heterossexual, viúva, católica, aposentada, com nível de escolaridade equivalente ao ensino médio completo. Do relacionamento conjugal de longa duração nasceu sua única filha, então com 26 anos. Relatou que, no momento, estava vivenciando um novo relacionamento amoroso e que residia em área urbana com o parceiro íntimo e a filha. Em relação à prática laboral, embora já estivesse aposentada, estava exercendo outra atividade remunerada, da qual teve de se afastar para realizar o tratamento.
A renda familiar era de, aproximadamente, R$ 2.500,00 e, de acordo com o CCEB, a participante pertencia ao estrato econômico C1 (classe média baixa à classe baixa). Em relação ao quadro clínico, a participante referiu que houve demora do sistema público de saúde para realização dos exames laboratoriais confirmatórios do diagnóstico. Em relação ao plano terapêutico, havia realizado procedimento cirúrgico para retirada de microcalcificações em ambas as mamas, tendo sido constatado o câncer na mama direita. Recebeu indicação para realização de seis ciclos de quimioterapia intravenosa. Relatou que, futuramente, seria avaliada a necessidade de radioterapia. Todo o tratamento estava sendo realizado pelo SUS.
A análise do conjunto do material produzido durante os encontros, segundo o método interpretativo psicanalítico (Herrmann, 1991), permitiu a identificação de dois temas dominantes. O primeiro foi relacionado aos sentimentos de medo quanto às alterações corporais e incertezas sobre o futuro desencadeadas pelo diagnóstico do câncer de mama e acentuadas pelo tratamento quimioterápico. O segundo tema dominante foi interpretado a partir da importância atribuída ao parceiro íntimo como elemento central da rede pessoal de apoio social e à consolidação do relacionamento afetivo. A partir desses temas, foi possível encontrar-criar (Ferreira & Aiello-Vaisberg, 2003) um campo de sentido afetivo-emocional que retratou a base afetiva da experiência da participante ao longo da quimioterapia, denominado: Da dúvida à união em meio à batalha pela vida. Trata-se de um campo de sentido que retratou a experiência emocional de constituição da união em meio às turbulências do tratamento quimioterápico.
No momento anterior ao início da quimioterapia, a participante vivenciou o impacto emocional da notícia do diagnóstico. Nesse momento, se percebeu acometida por uma doença grave e potencialmente fatal, cujo tratamento representa tanto uma chance de sobrevida, quanto uma ameaça à integridade de sua constituição corporal (representada graficamente no desequilíbrio da saia e na assimetria das pernas da mulher). Adoecimento e tratamento, nessa primeira etapa, emergiram com o sentido afetivo-emocional de luta entre forças de vida e morte. Esse sentido também foi identificado no título atribuído pela participante à primeira unidade de produção (Figura 1).
Um excerto do PDET: “eu tô, tô feliz” (as expressões entre aspas foram extraídas dos relatos). O material pictórico produzido representa uma mulher com câncer de mama. Os seios foram ressaltados no desenho mediante transparência da figura, que traz um elemento (sorriso) sugestivo de conduta defensiva, na tentativa de aplacar a angústia e mascarar o sentimento de tristeza desestabilizadora do self: “Se ela ficar triste ou chorar, vai adiantar?” A despeito do contexto de negação, a participante manifestou temor em relação ao futuro do relacionamento com seu parceiro íntimo e dúvida quanto à aceitação das transformações corporais. Esse excerto da entrevista exemplifica a intensidade das experiências emocionais, que naquele momento se manifestavam como medo da rejeição pelo companheiro: “Será que ele vai ficar comigo?”
No segundo momento do estudo, realizado após a conclusão da metade dos ciclos de quimioterapia, foram identificadas contradições discursivas sobre os efeitos colaterais da quimioterapia. Os seguintes excertos da entrevista exemplificam essa nuance: “ficava o dia inteiro de cama” e, posteriormente na mesma entrevista: “eu vivo como se eu não tivesse nada, nem lembro que estou doente, assim está ótimo”. No entanto, nesse ínterim houve transformação positiva no relacionamento e o parceiro íntimo passou a residir com a participante, constituindo união estável. Essa mudança possibilitou a manifestação de um sentido afetivo-emocional relacionado ao parceiro como elemento de força e esperança para superar o câncer. Tal sentido foi interpretado a partir do material pictórico e do título atribuído pela participante à segunda unidade de produção (Figura 2).
Embora a participante não tenha efetivamente vivenciado a ocorrência da alopecia induzida por quimioterapia, apresentou preocupação com alterações de sua imagem corporal, senso de feminilidade e possível estigmatização decorrente do risco e da expectativa social de ocorrência da alopecia: “se fosse cair [o cabelo], nossa, eu ia falar, gente, não vou mais sair nem de casa”. Nesse sentido, o risco da ocorrência da alopecia foi representado com sentimento de tristeza e emoções angustiantes.
No terceiro momento, realizado ao final da quimioterapia, a participante revelou sentimentos de “ansiedade” e verbalizou ter“pressa” para verificar os resultados dos exames que confirmariam se ela estaria “curada”. Em sua produção relatou proximidade com o parceiro e o fortalecimento do laço conjugal, com preservação de práticas sexuais referidas como satisfatórias, potencializando seu bem-estar pessoal. Conteúdos defensivos ainda emergiram nesse momento e sua produção pictórica foi interpretada como anseio pelo retorno às atividades cotidianas e como valorização da vida (Figura 3).
Discussão
Este estudo permitiu conhecer a experiência emocional de uma mulher de meia-idade ao longo do tratamento quimioterápico para o câncer de mama, por meio da identificação de um campo de sentido dinâmico, facilitada pelo uso prospectivo da técnica do PDET. O primeiro tema dominante mostrou-se relacionado à percepção de risco à existência psicossomática (Winnicott, 1949/2000c): os conteúdos simbólicos retratavam a ameaça à vida e à integridade da imagem corporal. Esses resultados são consistententes com a literatura psico-oncológica (Cebeci et al., 2012; Gil & Santos, 2021; Inocenti et al., 2016; Oliveira-Cardoso et al., 2018; Power & Condon, 2008; Pozzada et al., 2022; Souza et al., 2014). O segundo tema dominante, que retrata a importância do ambiente interpessoal acolhedor durante o percurso do tratamento quimioterápico, expressa os impactos da quimioterapia sobre os relacionamentos interpessoais e conjugais. A percepção de acolhimento pelo ambiente é fundamental para a manutenção do bem-estar emocional (Winnicott, 1996) e, nesse caso, a aceitação do parceiro íntimo foi fundamental para o reequilíbrio emocional da participante, em conformidade com o que é descrito pela literatura (Brunet et al., 2013; Pedersen et al., 2016).
Os conteúdos representativos do momento anterior ao início da quimioterapia são sugestivos de condutas defensivas protetivas contra as ameaças de desintegração do self, tais como a minimização e o uso de opostos (Winnicott 1935/2000a). O medo da rejeição pelo companheiro também é destacado pela literatura (Cebeci et al., 2012; Peres & Santos, 2007, 2009; Power & Condon, 2008). As modificações na aparência física e o temor da repulsa do parceiro, em decorrência das alterações corporais induzidas pela quimioterapia, emergiram como as principais e mais devastadoras experiências emocionais vividas ao longo do tratamento quimioterápico, demandando a necessidade de contar com uma rede de apoio (Ambrósio & Santos, 2015) para poder desenvolver reestruturações psíquicas para além das que ocorrem tipicamente no momento da meia-idade (Fagulha, 2005).
Alguns dos conteúdos presentes no segundo momento da pesquisa sugeriram defesas expressas pela manutenção de contradições discursivas. Os riscos associados aos efeitos colaterais da quimioterapia, incluindo a alopecia, foram vivenciados como ameaças desestabilizadoras do self (Winnicott, 1935/2000a). Tais resultados estão em conformidade com a literatura, notadamente quanto ao isolamento social como defesa contra a estigmatização social produzida pela doença (Cebeci et al., 2012; Power & Condon, 2008; Silva et al., 2019). No entanto, a percepção de aceitação das alterações corporais pelo parceiro íntimo e a manutenção da vida sexual possibilitaram o contato com um ambiente acolhedor, proporcionando alívio dos desconfortos físicos e incremento do bem-estar da participante em meio às turbulências vividas (Cesnik et al., 2013; Fonseca et al., 2014; Junqueira et al., 2013; Santos et al., 2014a, 2014b, 2017; Vidotti et al., 2013; Winnicott, 1949/2000c).
O fortalecimento da conjugalidade, representado no terceiro momento da pesquisa, aponta para a importância da união com o parceiro íntimo, o que encontra respaldo na literatura psico-oncológica (Santos & Souza, 2019; Yoshimochi et al., 2018). A experiência de aceitação pelo parceiro íntimo foi afetivamente vivenciada como acolhimento ambiental, o que sugere que o relacionamento interpessoal positivo pode ter facilitado o processo de reorganização psíquica, funcionando como uma base de sustentação similar ao holding (Winnicott, 1948/2000b), promovendo o sentimento de congruência e continuidade do ser a partir da experiência emocional mutativa.
O conhecimento produzido contribui para um olhar reflexivo e psicodinâmico sobre o fenômeno, sem a pretensão de esgotar as possibilidades interpretativas oferecidas pelo material. Espera-se que os resultados possam mobilizar reflexões e sensibilizar profissionais de saúde para as necessidades de cuidado dos aspectos emocionais da mulher submetida ao tratamento quimioterápico, bem como de seu parceiro íntimo.
Contribuição dos autores
Elaine Rodrigues: Concetualização, Investigação, Análise formal, Metodologia, Administração do projeto, Visualização, Redação do rascunho original, Redação - revisão e edição.
Manoel dos Santos: Concetualização, Metodologia, Visualização, Supervisão, Redação do rascunho original, Redação - revisão e edição.