O envelhecimento populacional é uma realidade cada vez mais emergente sendo que em Portugal (von Humboldt & Leal, 2014; von Humboldt et al., 2013, 2014a, 2014b), prevê-se que o índice de envelhecimento duplique e que até 2080 o número de idosos seja de 3 milhões, o que significa que serão 300 por cada 100 jovens (Instituto Nacional de Estatística, 2020). Posto isto, é fundamental a realização de investigações acerca das variáveis que contribuem para o bem-estar psicológico (BEP) desta população, como o sentido de vida (SV) e a espiritualidade (E). Assim, a espiritualidade pode ser definida como o conjunto de pensamentos, sentimentos e experiências relacionados com uma procura pessoal por conhecimento, significado e transcendência (Leondari & Gialamas, 2009), sendo parte integrante do desenvolvimento da personalidade dos sujeitos (Seligman, 2007; von Humboldt et al., 2014b). Por outro lado, o sentido de vida poderá ser entendido como a atividade do desejo e como o conjunto de objetivos a serem realizados pelo sujeito sendo, por isso, aquele que o possui detentor de um elevado nível de autoconhecimento. O sentido de vida apresenta ainda duas componentes: a procura (se um sujeito procura algum sentido para a sua vida) e a presença (se um sujeito tem algum sentido para a sua vida) do mesmo (Steger et al., 2008). Já o bem-estar psicológico traduz-se no funcionamento psicológico positivo, na avaliação positiva que cada sujeito faz da sua vida, na experiência de significado e de realização do potencial humano (Ryff, 1989; Ryff & Keyes, 1995; McMahan, & Estes, 2011).
Neste seguimento, existem evidencias duma associação entre os construtos espiritualidade e sentido de vida, sendo que a primeira promove a presença do segundo auxiliando em situações de crises existenciais e de sofrimento (Vela et al., 2015). Por sua vez, estes dois conceitos encontram-se relacionados ao BEP, na medida em que fornecem um senso de identidade pessoal e apoio social (Vehling et al., 2011; Ivtzan et al., 2013), estando a ausência de SV associada a reduzidos níveis de BEP (Damásio et al., 2013; Schnell et al., 2018). Contudo, os estudos que averiguam o poder preditivo do SV e da E sobre o BEP são escassos (Liang et al., 2017), sendo ainda mais reduzidos aqueles que o analisam em população idosa (Ivtzan et al., 2013; von Humboldt, & Leal, 2014). Além disso, não se encontrou nenhum estudo que realizasse esta análise em população idosa portuguesa. Posto isto, o presente estudo teve como objetivo averiguar se as variáveis sentido de vida (presença, procura e sentido de vida relatado) e espiritualidade são preditores significativos do bem-estar psicológico de população idosa portuguesa.
Método
Participantes
A amostra constituiu-se por 36 participantes, com idades compreendidas entre os 65 e os 106 anos (M=85,86; DP=8,10), sendo estes utentes da Santa Casa da Misericórdia de Aljezur. Do total dos participantes, 25 (69,40%) eram do sexo feminino e 11 (30,60%) do sexo masculino, encontrando-se 5 casados (13,90%), 1 divorciado (2,80%), 24 viúvos (66,70%) e 6 solteiros (16,70%). A maioria dos participantes apresentou um grau de escolaridade equivalente ao 3º (n=11; 30,60%) e ao 4º (n=11; 30,60%) ano do ensino básico, 6 (16,70%) são analfabetos, 3 (8,30%) sabem ler e/ou escrever, 1 (2,80%) tem o 2º ano do ensino básico, 1 (2,80%) tem o 5º ano do ensino básico, 1 (2,80%) tem o 11ºano, 1 (2,80%) tem o 12ºano e 1 (2,80%) frequentou o ensino superior. Do total dos participantes, 25 (69,40%) apresentavam um nível socioeconómico baixo e 11 (30,60%) médio. Foram excluídos deste estudo sujeitos que apresentassem um grau moderado e/ou elevado de demência.
Material
Mini Mental State Examination (MMSE). Utilizou-se a versão portuguesa adaptada (Guerreiro et al., 1994) doMini Mental State Examinition(MMSE; Folstein et al., 1975), uma prova neuropsicológica que avalia as funções cognitivas gerais para realizar o despiste de défices cognitivos e demência. Este instrumento apresenta 6 dimensões sendo elas: orientação, retenção, atenção e calculo, evocação, linguagem e habilidade construtiva. A pontuação máxima que um sujeito pode obter neste teste é 30. Considera-se que pontuações entre os 25-30 indicam um grau de deterioração questionável, entre 20-25 superficial, 10-20 moderado e 0-10 severo. Esta prova apresenta valores de corte diferenciados de acordo com a literacia: 15 pontos em indivíduos analfabetos; 22 para 1 - 11 anos; 27 para > 11 anos. O instrumento apresenta um alfa de Cronbach de 0,78, tendo uma boa consistência interna.
Questionário Sociodemográfico. Foi utilizado um questionário sociodemográfico para obter informações acerca da idade, sexo, estado civil, escolaridade e nível socioeconómico.
Entrevista Estruturada. Para avaliar o sentido de vida fizeram-se duas questões fechadas “Tem algum sentido para a sua vida?” (SVE) e “Anda à procura de algum sentido para a sua vida?” (SVP) e uma questão aberta “Qual é o sentido da sua vida?” (SV).
Escala do Bem-estar Psicológico. Para medir o bem-estar psicológico utilizou-se a escala do Bem-estar Psicológico (EBEP), uma adaptação portuguesa (Ferreira, & Simões, 1999) da versão de 18 itens da escala Psychological Wellbeing Scale (PWBS) de Carol Ryff e Marilyn Essex (Ryff, & Essex, 1992). Este é um instrumento de autorrelato que se baseia no modelo multidimensional do BEP apresentando seis subescalas (autonomia; domínio ambiental, crescimento pessoal, relações positivas com os outros, propósito na vida e autoaceitação) com 3 itens cada. Cada item é classificado numa escala do tipo Likert de 6 pontos onde 1 significa “Discordo Completamente” e 6 “Concordo Completamente”. O cálculo para cada subescala resulta da soma das pontuações de cada item, sendo que pontuações mais elevadas traduzem maiores níveis de bem-estar psicológico. Esta adaptação da escala apresenta um alfa de Cronbach de 0,94 para a escala geral (variando entre 0,69 e 0,88 para cada uma das subescalas) e validade convergente com medidas como a Satisfação com a Vida, a Afetividade Positiva e discriminante com a Afetividade Negativa (Ryff, 1989).
Escala da Espiritualidade (EE). A escala da espiritualidade (EE) utilizada é composta por 7 itens, avaliados numa escala Likert de 5 pontos em que 1-discordo totalmente, 2- Discordo, 3- Não concordo nem discordo, 4-Concordo, 5-Concordo Totalmente. Esta escala foi desenvolvida e validada para uma amostra de idosos portugueses e apresenta duas subescalas: (1) Transcendental, constituída por cinco itens e (2) Pessoal constituída por dois itens. A espiritualidade total é dada pela soma dos valores obtidos para cada um dos itens. Esta é uma escala que foi desenvolvida no âmbito de Dissertação de Mestrado realizada sob a orientação da Professora Doutora Isabel Leal e da Professora Doutora Sofia Von Humboldt, docentes no ISPA - Instituto Universitário de Ciências Psicológicas, Sociais e da Vida para obtenção de grau de Mestre na especialidade de Psicologia Clínica. Contudo, ainda não foi alvo de revisão. Não obstante, o instrumento apresentou um valor de KMO=0,874, um bom ajustamento aos dados (χ2(13)=47,250; p=0,000), validade divergente e convergente e estabilidade temporal. Os valores de consistência interna foram para o instrumento geral α=0,92, para o fator Transcendental α=0,94 e para o fator Pessoal α=0,90.
Procedimento
Foi solicitada autorização à instituição para a realização do estudo tendo sido depois requerida a mesma permissão aos utentes através do consentimento informado, no qual se indicou que a investigação não apresentava qualquer risco, assegurando-se o anonimato e sendo o participante livre de a abandonar em qualquer momento. Os dados foram recolhidos em 2 dias consecutivos, tendo sido primeiro aplicado o Mini Mental State Examination (MMSE), seguido pelo questionário sociodemográfico, pela escala do BEP, pelas questões acerca do sentido da vida e pela escala da espiritualidade. A aplicação destes questionários teve uma duração média de 15 minutos por participante. Após a recolha, foram criadas subcategorias exclusivas para os dados relativos ao sentido da vida sendo estes depois codificados numericamente. Todos os dados foram inseridos e analisados através do programa SPSS (versão 28.0 para Windows).
Resultados
Pretendeu-se predizer a variável dependente bem-estar psicológico (BEP) a partir das variáveis independentes E (v.quantitativa), SVE (v.qualitativa nominal), SVP (v.qualitativa nominal) e SV (v.qualitativa nominal). Optou-se por recorrer à regressão linear múltipla, tendo antes que transformar as variáveis nominais em variáveis dummy através do SPSS, o que produz, de igual modo, resultados válidos dado estas entrarem no modelo como variáveis independentes (Marôco, 2021). Recorreu-se aos métodos de seleção de preditores Stepwise, Backward e Foward para verificar quais as variáveis independentes com relações mais fortes com o BEP, sendo que essas serão as melhores candidatas ao modelo definitivo (Marôco, 2021). Dado que o modelo a ser mantido deverá ser aquele que apresente o maior R2 a e menor QME (Marôco, 2021), o método escolhido foi o Backward, tendo sido inseridas no modelo as variáveis: sentido de vida: trabalho (SVT), sentido de vida: existência- não (SVEN), sentido de vida: família e trabalho (SVFT), sentido de vida: fazer o bem (SVB), sentido de vida: ter saúde (SVES), sentido de vida: família e fazer o bem (SVFB), sentido de vida: procura-sim (SVPS), sentido de vida, sentido de vida: não tem (SVNT); e espiritualidade (E). Contudo, nem todas estas variáveis se mostraram significativas para o modelo, tendo apresentado p-values superiores a 0,005. Assim, a única variável que se manteve no modelo foi a espiritualidade (p<0,001; Quadro 1).
Depois procedeu-se à estimação dos coeficientes do modelo de regressão pelo método dos mínimos quadrados tendo-se obtido B 0 =-25,27 e B E =1,64. Seguidamente, para averiguar se o modelo ajustado era significativo, utilizou-se a análise de variância e, sendo p<0,001, rejeitou-se a hipótese nula podendo-se concluir que o modelo ajustado é significativo. O coeficiente de determinação obtido foi R 2 =0,517, o que indica que 51,70% da variabilidade do BEP é explicada pelo modelo de regressão (Quadro 2). Este indicador também nos sugere que a dimensão do efeito é muito elevada. Assim, o modelo ajustado obtido foi: BEP = -25,274 + 1,643E. A estatística de teste associada foi Z (1,34)=36,36, p<0,001 e QME=54,99 (Quadro 3).
Os três pressupostos da regressão linear simples foram verificados, sendo o da independência dos resíduos comprovado pelo teste de Durbin-Watson, onde se obteve um valor de d=2,072 ≈ 2,000, o que significa que não existe uma autocorrelação entre os resíduos (Quadro 2; Marôco, 2021). Realizou-se o teste de White tendo-se obtido χ2(2)=2,60 com p-value= 0,272, não se rejeitando a hipótese nula da homogeneidade das variâncias (Quadro 4; Marôco, 2021). Para verificar se os erros possuem distribuição normal, recorreu-se ao teste de Shapiro-Wilk tendo-se obtido um p-value=0,272 concluindo-se que os erros possuem distribuição normal (Quadro 5; Marôco, 2021).
Discussão
O objetivo do presente estudo foi averiguar se as variáveis sentido de vida e espiritualidade são preditores significativos do bem-estar psicológico estabelecendo-se um modelo preditivo dessa relação. De facto, foi possível confirmar-se que a espiritualidade é preditor significativo do BEP, tendo-se obtido o modelo final ajustado 𝐵𝐸𝑃 = -25,274 + 1,643E, sendo este altamente significativo (p<0,001). Foi ainda possível averiguar que esta variável é responsável por 51,7 % da variação do BEP. Relativamente ao sentido de vida, nenhuma das variáveis revelou ser preditor significativo do BEP. Os dados obtidos vão de encontro com a literatura existente, comprovando que a espiritualidade é preditor significativo do BEP. Contudo, em relação ao sentido de vida, os nossos resultados não permitiram documentar que este é preditor do BEP, o que contrasta com as evidências existentes (Vehling et al., 2011; Prashar, 2013).
Assim, este estudo permite esclarecer a importância que a espiritualidade apresenta para o bem-estar psicológico e como esta tem um papel preponderante na predição do BEP de população idosa. Posto isto, os resultados alcançados apresentam implicações para a área da psicologia clinica e da saúde enfatizando a relevância da espiritualidade para o bem-estar psicológico. Além disso, vem demonstrar que, apesar de estar documentado na literatura que o sentido de vida é um preditor significativo do BEP, este talvez não tenha tanta preponderância na predição do mesmo na idade avançada. Futuramente, seria de interesse que se realizassem estudos que averiguassem a causalidade da relação entre o SV e a E com o BEP. Também seria pertinente verificar em que medida a espiritualidade se poderá apresentar como preditor significativo do sentido de vida. Além demais, outras variáveis que possam contribuir para a predição do BEP deverão ser averiguadas.
As limitações deste estudo foram primeiramente a homogeneidade da amostra, a amostra reduzida e o tipo de amostragem por conveniência. que dificultam a generalização dos resultados para a população idosa portuguesa. Outra limitação foi o instrumento utilizado para medir o BEP, dado que a versão de 18 itens é criticada por apresentar reduzida consistência interna sendo apenas recomendado o seu uso quando a dimensão amostral é grande. Contudo, as outras versões desta escala são excessivamente extensas (42 e 84 itens), o que poderá envolver outro tipo de problemas associados à sua aplicação. Em conclusão, os resultados obtidos suportam a literatura existente sendo assim enfatizada a necessidade de estudos adicionais que verifiquem a espiritualidade como preditor do BEP na população idosa portuguesa.
Contribuição dos autores
Isabel Furtado Francisco: Concetualização; Curadoria dos dados; Análise formal; Investigação; Metodologia; Administração do projeto; Recursos; Software; Visualização; Redação do rascunho original; Redação - revisão e edição.
Sofia von Humboldt: Concetualização; Análise formal; Metodologia; Supervisão; Validação; Visualização; Redação do rascunho original; Redação - revisão e edição.
Isabel Leal: Supervisão; Redação - revisão e edição.