A COVID-19, doença causada pelo novo coronavírus (SARS-CoV-2), foi inicialmente notificada na China em dezembro de 2019. Dadas as características de contágio, que ocorre principalmente pela transmissão de pessoa a pessoa, com a propagação de gotículas de saliva ou de secreção nasal pelo ar, o vírus alastrou-se rapidamente pelo mundo (Mallah et al., 2021). A doença se propagou por diversos países até que, em 11 de março de 2020, a Organização Mundial de Saúde OMS) decretou estado de pandemia (Organização Pan- Americana de Saúde, 2020).
No Brasil, a primeira onda da pandemia da COVID-19 teve início em fevereiro de 2020 e perdurou até novembro do mesmo ano. Naquele mês, o aumento significativo do número de casos positivados e de óbitos deu impulso à segunda onda da pandemia, ainda que a primeira sequer estivesse debelada. O ápice da crise sanitária se daria em março de 2021 (Morais, 2021). Em abril do mesmo ano, o número de mortes registradas desde janeiro já havia superado o total de óbitos de todo o ano de 2020, alcançando a alarmante cifra de 400 mil vidas perdidas (Brasil, 2021).
Lamentavelmente, o ano de 2021 foi encerrado com a marca de 619.056 mortes (Brasil, 2021). Os milhares de óbitos decorrentes da COVID-19 no país denotam a existência de milhares de pessoas enlutadas. Para complicar ainda mais esse quadro dramático, o estado de excepcionalidade imposto pela pandemia impactou as experiências de terminalidade e luto, que sofreram uma série de constrangimentos sem precedentes (Ferracioli et al., 2021; Ingravallo, 2020; Mallah et al., 2021).
Durante o curso da pandemia, os serviços de saúde tiveram de ser reestruturados e uma parte significativa das instalações e recursos humanos foram redirecionados para atender a nova demanda por atendimentos, procedimentos e insumos na situação de emergência sanitária. Os casos graves de COVID-19 deveriam ser mantidos em isolamento em alas específicas dos hospitais e as visitas para acompanhamento de pacientes internados foram proibidas ou drasticamente restringidas. Velórios foram banidos e passou-se a recomendar o uso de sacos plásticos para revestimento dos corpos e sepultamento com caixão lacrado (Brasil, 2020; Moura et al., 2022; Nascimento, 2020; Oliveira et al., 2020).
A interdição das visitas hospitalares aos entes queridos e as alterações nos rituais de despedida antes e após o óbito inibiram a livre exteriorização do sofrimento dos familiares e prejudicaram a obtenção de apoio social (Oliveira-Cardoso et al., 2020, 2021; Pattison, 2020; Wang et al., 2020). As preocupações com os possíveis impactos da pandemia sobre o processo de enlutamento levaram à identificação de fatores que podem contribuir para o desenvolvimento de luto complicado, tais como: falta de preparação/educação para a morte, segregação dos doentes que estão em iminência de morte, manutenção do distanciamento dos familiares, impossibilidade de cumprir os ritos de despedida ao lado do ente familiar, experiência de múltiplas mortes quase simultaneamente na mesma família, proibição ou alteração de rituais fúnebres e redução do apoio social (Eisma et al., 2020; Fiocruz, 2020; Wallace et al., 2020).
Considerando que as experiências de luto foram impactadas pela pandemia, Weir (2020) e Wang et al. (2020) sugerem que o acompanhamento de famílias enlutadas por parte de profissionais de saúde pode auxiliar o processo de adaptação à perda. Estudos mostram que os familiares que se sentem acolhidos e com possibilidades de expressar seu pesar valorizam a experiência de serem ouvidos e compreendidos (Benites et al., 2021; 2022). Para tanto, a oferta de suporte às pessoas enlutadas, especialmente em contextos de desastres naturais e pandemias, necessita considerar determinadas particularidades. Segundo Wallace et al. (2020), em situações emergenciais as abordagens de suporte ao luto necessitam de ajustamentos. Com base nesses pressupostos, este estudo objetiva compreender os fatores complicadores da vivência do luto na perspetiva de familiares enlutados.
Método
Estudo descritivo-exploratório, com delineamento transversal, que utilizou o método clínico-qualitativo, considerado apropriado para investigar fenômenos no cenário da saúde (Turato, 2011). Parte-se da premissa de que os significados que as pessoas atribuem ao binômio saúde-doença podem ser interpretados a partir de atitudes existencialista, clínica e psicanalítica. Como referencial teórico foi utilizada a teoria do luto, proposta por Parkes (2009). O autor considera que há uma diversidade de fatores determinantes do processo de luto, que incluem a qualidade da relação estabelecida com a pessoa falecida, características de personalidade do indivíduo enlutado e da pessoa falecida, tipo de morte ocorrida e contexto da perda, presença ou ausência de apoio social, status socioeconômico, exposição a outras situações de estresse e a possibilidade de identificação de oportunidades emergentes nas experiências penosas.
A seleção dos participantes foi realizada por meio da técnica snowball de amostragem não-probabilística. A amostra intencional foi composta por 10 familiares, sendo adotados os seguintes critérios de elegibilidade da amostra: idade igual ou superior a 18 anos, ter vivenciado a perda de um familiar em decorrência da COVID- 19 nos últimos 12 meses, ser residente no Brasil e ter acesso à conexão de internet. Não foram selecionadas pessoas com dificuldades acentuadas de compreensão ou limitações de acesso à internet, que poderiam inviabilizar o engajamento na situação da entrevista.
Foram aplicados os seguintes instrumentos: 1) Formulário de Dados Sociodemográficos e Critério de Classificação Econômica - Critério Brasil (CCEB), por meio de formulário online; 2) Entrevistas individuais, com uso de roteiro de entrevista semidirigida e duração aproximada de uma hora. Foram realizadas na modalidade online por meio de um aplicativo de videoconferência, que pode ser acessado tanto pelo computador quanto pelo celular.
As entrevistas foram realizadas em julho de 2021. Com a prévia anuência dos participantes, as conversas foram áudio e videogravadas, por meio de uma ferramenta de gravação disponibilizada pelo aplicativo, que indicava na tela quando a conversa estava sendo gravada. Tal recurso de gravação foi escolhido com o intuito de oferecer ao participante transparência a respeito do procedimento. As entrevistas foram transcritas de forma literal e integralmente, respeitando a sequência e a forma das falas, como foram registradas.
Seguindo o método de análise temática reflexiva, proposto por Braun e Clarke (2020), padrões repetidos de significados no conjunto de dados obtidos por meio das entrevistas foram identificados e analisados de maneira indutiva, semântica e realista, por dois pesquisadores que avaliaram o material de forma independente.
O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da FFCLRP-USP e o estudo seguiu os procedimentos éticos estabelecidos pela Resolução nº 466/2012 (Brasil: Ministério da Saúde, Conselho Nacional de Saúde, 2012) e Resolução nº 016/2000 (Conselho Federal de Psicologia, 2000). Tomou-se o cuidado de esclarecer antecipadamente com cada participante os objetivos da pesquisa e as condições de preservação do sigilo, sendo que a pesquisa só foi realizada com aqueles que assentiram com a participação e firmaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).
Resultados
A amostra foi composta na sua maioria por mulheres (n = 8), com idades entre 21 e 52 anos, residentes em municípios dos estados de São Paulo, Minas Gerais e Bahia. Em relação aos familiares falecidos, a maioria havia perdido um dos pais (quatro mães e três pais), seguida da perda de avós, cônjuges e irmãos. A idade do familiar falecido variou de 30 a 85 anos, e o tempo decorrido desde o óbito de dois a 11 meses. Quatro participantes sofreram perdas múltiplas (morte de mais de um familiar), em um total de 16 perdas, com intervalo máximo de uma semana entre as mortes.
Os resultados foram organizados em quatro categorias: (1) Restrições de visitas hospitalares; (2) Interdição ou alterações significativas nos rituais fúnebres e cerimônias de despedida; (3) Isolamento físico e falta de apoio social; (4) Vida breve, morte rápida.
Restrições de visitas hospitalares
Dos 10 participantes, sete não receberam autorização para visitar os familiares durante a internação hospitalar, motivada por graves complicações decorrentes da COVID-19. Dois conseguiram obter autorização após muita insistência e um pôde permanecer no hospital como acompanhante. No entanto, mesmo os participantes que conseguiram realizar visitas/acompanhamento foram impedidos de ver seus familiares em algum momento da internação. Sentimento de impotência foi relatado por todos os participantes, que foram impossibilitados de estar fisicamente presentes para auxiliar nos cuidados necessários e não puderam compartilhar os últimos momentos de vida do ente querido, nem oferecer conforto, trocar afeto e manifestar sentimentos.
Foi muito desesperador isso, de não poder ajudar, não poder ouvir a voz e não poder ver, sabe? Não poder tocar, estar ali perto. (Enlutada pela morte do pai e do avô)
Foi horrível. ... Deu a impressão assim: meu irmão está morrendo ... e eu sem poder fazer nada por ele. (Enlutada pela morte da mãe, do pai e do irmão)
Era muito ruim, muito ruim. Porque a gente não podia ver, não podia fazer nada. (Enlutada pela morte do avô)
Interdição ou alterações significativas nos rituais fúnebres e cerimônias de despedida
Os participantes relataram dificuldades em realizar despedidas significativas. Das 16 mortes ocorridas, apenas em seis casos eles receberam autorização para a realização de velório, com duração máxima de duas horas e limite de 10 pessoas, conforme preconizavam os protocolos sanitários.
Não teve velório, foi só o enterro. Foi dolorido. (Enlutada pela morte da mãe)
Eu não pude ver a minha mãe, eu não pude vestir a minha mãe. (Enlutado pela morte da mãe)
O corpo dele ia ficar dentro de um saco. Foi muito complicado tudo. A gente não poderia ver ele de jeito nenhum. Estava tudo lacrado. E aí a gente foi pro cemitério. ... Então foi só realmente deixar meu avô ali e acabou. (Enlutada pela morte do avô)
A pandemia, neste momento, dificulta muito você despedir de um parente que falece. ... O enterro foi com caixão lacrado. A gente sentiu mais de não poder ter se despedido. De não poder ver. (Enlutado pela morte da esposa)
Isolamento físico e falta de apoio social
Os participantes relataram que, após a morte dos familiares, sentiram que as medidas de distanciamento físico repercutiram negativamente na vivência do luto, uma vez que impactaram diretamente na obtenção de apoio social por limitarem a aproximação e articulação da rede.
As pessoas não sabiam o que fazer, não sabiam o que falar, não podiam visitar. E a gente entendia isso. Porque, afinal de contas, é uma coisa que você ia transmitir. Mas essa questão do isolamento foi muito ruim. (Enlutada pela morte da mãe, do pai e do irmão)
Estar em isolamento não contribuiu pro meu luto ser mais agradável. ... De ficar junto das pessoas, eu acho que isso teria me ajudado, estaria me ajudando mais a lidar, sabe? ... Porque eu acho que o luto e, principalmente, o luto numa situação como essa, de isolamento. É mais dolorido e pior. (Enlutado pela morte da mãe)
A pior sensação que eu senti foi que, mesmo entre nós, irmãos, nós não pudemos nos abraçar. A gente teve enorme perda, a gente estava tipo em choque com aquela situação. (Enlutada pela morte da mãe, do pai e do irmão)
Só que a minha mãe também estava com COVID. ... E aí eu cheguei aqui extremamente desesperada. Eu queria abraçar minha mãe. ... Aí eles colocaram uma toalha nela, assim [mostra o busto], pra mim abraçar ela, passaram álcool. Depois que eu abracei ela, me passaram álcool também. Passaram álcool nela. (Enlutada pela morte do pai e do avô)
Vida breve, morte rápida
Os relatos dos participantes indicam que o adoecimento dos familiares foi marcado pela rápida progressão do quadro, levando à piora clínica: o familiar foi internado em estado não tão grave e, em poucos dias, o declínio da saúde exigiu o uso do cateter nasal, seguido da máscara de oxigênio, da intubação e do falecimento. A rápida deterioração das condições clínicas e o desfecho abrupto contribuiu para a percepção de que a morte aconteceu de maneira repentina, solitária e sofrida.
Só que o da minha vó foi muito rápido. Ela… do cateter nasal ela já passou pra máscara de oxigênio, e da máscara já foi pra intubação. ... Foi tudo muito rápido. Tudo, assim, de uma maneira muito ruim, muito dolorosa. (Enlutada pela morte do pai e da avó)
Ela [esposa] morreu em muito pouco tempo. ... A COVID é muito rápida. ... Foi, assim: puff, dentro do prazo de duas semanas eu estava viúvo. ... Foi muito rápido, muito rápido. Foi num estalo de dedo. De repente, ela estava boa e, de repente, não estava mais. (Enlutado pela morte da esposa)
Discussão
As medidas protetivas de distanciamento físico impactaram, principalmente, as visitas hospitalares, que foram drasticamente restringidas. Velórios foram proibidos ou limitados por regras restritivas. As repercussões pessoais e familiares dessas limitações transpareceram nas falas e estão alinhadas com os apontamentos da literatura (Brasil, 2021; Nascimento, 2020; Sola et al., 2021).
Apoio familiar e comunitário é um recurso indicado pela literatura como indispensável em situações de luto, notadamente quando acompanhadas por forte sentimento de incontrolabilidade e comoção coletiva (Mallah et al., 2021; Oliveira-Cardoso et al., 2020; Pattison, 2020; Wang et al., 2020). Esse suporte foi prejudicado, principalmente após o falecimento, pois em momentos esporádicos os familiares apoiaram e receberam apoio apenas das pessoas mais próximas de suas redes pessoais. Além das barreiras interpessoais, a velocidade dos acontecimentos foi outro fator potencialmente dificultador do processo de assimilação da perda. Os participantes relataram intenso sofrimento advindo da dificuldade de acompanhar a evolução do quadro clínico de seus familiares, seja devido ao isolamento, seja pela rapidez da piora, sem poderem contar com ações protetivas.
Dois focos foram claramente identificados nos relatos, concentrados em torno de dois sentimentos marcantes: desespero e revolta. O desespero foi a reação emocional predominante até o falecimento dos familiares. A dificuldade inicial de ter acesso aos recursos de saúde em um cenário caótico potencializou o desespero, agravado pelo declínio vertiginoso do estado de saúde e a proximidade com a possibilidade de morte. A revolta surgiu mais intensamente após o óbito, diante da confrontação com a realidade irreversível da perda e da constatação de que todos os cuidados tomados até então para evitar o contágio haviam se mostrado insuficientes. Infelizmente, os entes queridos passaram a fazer parte das estatísticas dramáticas de óbitos no país.
Os participantes lamentaram que seus familiares “quase conseguiram” ser vacinados e refletiram que, caso tivessem tido acesso ao benefício da imunização coletiva a tempo, talvez estivessem ainda vivos. Assim, foram identificados fatores que podem contribuir para o desenvolvimento do luto complicado (Eisma et al., 2020; Fiocruz, 2020; Oliveira-Cardoso et al., 2022; Wallace et al., 2020), principalmente devido à falta de preparação para a morte, ao distanciamento compulsório entre doentes em iminência de morte e seus familiares, barreiras enfrentadas para realizar a despedida, múltiplas mortes simultâneas na mesma família, alterações e interdições de rituais fúnebres e menores níveis de apoio social. A intersecção desses diversos fatores determinantes do processo de luto é consistente com a teoria proposta por Parkes (2009).
Ampliar a compreensão acerca dos fatores dificultadores do luto é importante para direcionar recursos e preparar os serviços de saúde, de modo a melhorar o atendimento das necessidades subjetivas dos enlutados, visando reduzir as fontes de sofrimento e contribuir para uma vivência mais plena e com menor angústia no encontro com a terminalidade.
Agradecimentos
Este estudo foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - CAPES e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq (Bolsa de Produtividade em Pesquisa, PQ-1A).
Contribuição dos autores
Pamela Sola: Concetualização, Curadoria dos dados, Análise formal, Investigação, Metodologia, Administração do projeto, Redação do rascunho original.
Jorge dos Santos: Concetualização, Curadoria dos dados, Análise formal, Investigação, Metodologia, Redação do rascunho original, Redação - revisão e edição.
Manoel Antônio dos Santos: Concetualização, Curadoria dos dados, Análise formal, Aquisição de financiamento, Investigação, Metodologia, Redação - revisão e edição.
Érika de Oliveira-Cardoso: Concetualização, Curadoria dos dados, Análise formal, Metodologia, Administração do projeto, Recursos, Redação - revisão e edição.