O Grupo de Estudos e Intervenções em Lutos e Terminalidade da Universidade de São Paulo (LUTE-USP) foi criado em 2020 junto ao Laboratório de Ensino e Pesquisa em Psicologia da Saúde da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (LEPPS-FFCLRP-USP-CNPq). O LUTE-USP se insere em uma proposta de ensino, pesquisa e extensão universitária que tem como missão social oferecer cuidados psicológicos à população menos favorecida e promover o aprimoramento da formação de graduandos e pós-graduandos em Psicologia de uma instituição de ensino superior de natureza pública. Atualmente, o LUTE é composto por 15 psicólogos (dois docentes da FFCLR-USP, nove pós-graduandos(as) e quatro psicólogos(as) egressos do Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Mediante a oferta de estágios profissionalizantes, colabora com a formação de 21 graduandos do curso de Psicologia. O nascimento do LUTE coincidiu com o advento da pandemia da COVID-19, quando a Organização Mundial de Saúde (OMS) declarou a emergência sanitária global em decorrência da disseminação do vírus da síndrome respiratória aguda grave 2 (SARS-CoV-2) (Oliveira et al., 2020b). Apesar de ser um projeto concebido e gestado anteriormente, este marco histórico foi o propulsor da criação do LUTE.
A COVID-19 instaurou um momento disruptivo sem precedentes em escala global, marcado por alterações drásticas da rotina da população e ameaça constante à continuidade da vida. As pessoas passaram a conviver com o medo de morrer e o luto decorrente de inúmeras e sucessivas perdas impactou dramaticamente a saúde mental da população (Dong & Zheng, 2020; Oliveira-Cardoso et al., 2020). No final de 2021 eram contabilizadas no Brasil 619.056 mortes em decorrência de complicações da COVID-19 (Ministério da Saúde, 2021b), o que implicava na existência de milhares de brasileiros enlutados. Era urgente fornecer apoio psicológico a essas pessoas em sofrimento, além de oferecer capacitações rápidas para os profissionais da área da saúde.
Diante das novas demandas e da impossibilidade de ofertar atendimentos presenciais, foi necessário articular novos espaços de cuidados em caráter emergencial. Sensível a essa circunstância excecional, o Conselho Federal de Psicologia (CFP, 2020) publicou novas diretrizes para orientar os atendimentos psicológicos online nesse período. Tendo como pano de fundo o cenário turbulento da pandemia, as primeiras ações e intervenções do LUTE foram planejadas e colocadas em prática. Considerando esse contexto, este estudo tem como objetivo descrever a organização e as atividades desenvolvidas nos dois primeiros anos (2020-2022) de implementação do LUTE-USP.
Método
A estratégia metodológica utilizada foi o relato e análise de experiência, por meio do método narrativo. A coleta de dados envolveu análise documental e observação participante realizada no período de 2020 a 2022. Como fontes foram utilizados: registros de atendimentos realizados e indicadores de produtividade, complementados por revisão da literatura. Os dados quantitativos foram tabulados em termos de frequência e os registros qualitativos foram submetidos à análise temática por dois pesquisadores, de modo independente e, posteriormente, organizados em eixos temáticos.
Resultados
As atividades desenvolvidas pelo LUTE no período de 2020 a 2022 foram agrupadas em: extensão universitária, ensino, produção e divulgação de conhecimento científico.
Extensão universitária: consistiu de intervenções grupais e individuais voltadas a pacientes, familiares e equipes multiprofissionais de saúde. Foram atendidos 32 familiares enlutados, totalizando 857 atendimentos, e desenvolvidos cinco grupos de apoio psicológico, abrangendo 38 participantes e 143 encontros grupais. Os atendimentos foram conduzidos por psicólogas(os) voluntárias(os) ou por estagiários do curso de graduação em Psicologia, mediante supervisão de profissionais experientes. As intervenções foram amparadas pela abordagem psicanalítica.
Dos 32 familiares atendidos, a maioria era constituída por mulheres que haviam perdido um dos pais (na maior parte dos casos, a mãe). A maioria das perdas de entes queridos decorreram de complicações da COVID-19, porém também foram atendidos pacientes enlutados por mortes relacionadas a outras doenças, especialmente o câncer. No caso das perdas decorrentes da COVID-19, o sofrimento preponderante nos relatos estava centrado em dois núcleos: desespero e inconformismo.
Uma das principais dificuldades referidas foi a questão do curto período de tempo decorrido entre o diagnóstico e a morte do ente querido, agravada pela impossibilidade de despedida (Oliveira-Cardoso et al., 2020). Dada a importância dos rituais coletivos de despedida, que foram suprimidos ou restringidos nesse período, os pacientes puderam realizar, com suporte à distância dos profissionais, rituais de despedida após o enterro do familiar, lançando mão de recursos tais como: escrita de cartas, visita ao túmulo, plantio de árvore, dentre outras atividades desenvolvidas com vistas a dar expressão aos sentimentos de pesar.
Os grupos de apoio psicológico foram voltados ao acolhimento de: a) familiares enlutados (dois grupos, com duração de um semestre cada), b) pacientes com doenças crônicas e, portanto, com risco aumentado para desenvolverem as formas mais graves da COVID-19 (um grupo com duração de 18 meses e intervenções semanais); c) grupo de profissionais da saúde (dois grupos, com duração de um semestre cada). Durante os encontros grupais, os participantes puderam compartilhar experiências e sentimentos, além de receber e oferecer apoio. No cenário pandêmico, as intervenções grupais online mostraram ser uma alternativa efetiva para a oferta de cuidados psicológicos e ajuda mútua diante da crise, favorecendo experiências de gerar conforto, alívio do estresse e manutenção da rede de apoio em tempos de distanciamento social (Sola et al., 2022).
Ensino: consistiu de atividades voltadas tanto para profissionais formados como estudantes em formação e o público leigo. Foi celebrada uma parceria com o Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP). Foram oferecidas quatro capacitações para profissionais da saúde da rede pública, abarcando cerca de 40 profissionais. As capacitações foram planejadas segundo o modelo de Educação para a Morte, com discussões sobre o processo de morrer e enlutamento, atitudes frente à morte, cuidados paliativos, luto do profissional de saúde, comunicação de más notícias, promoção de saúde e outras estratégias de ação nesses contextos (Oliveira-Cardoso & Santos, 2017).
O modus operandi consistiu em: a) os profissionais tinham acesso antecipado a uma aula online relacionada a um dos temas contemplados, ministrada por um dos integrantes do LUTE; b) em seguida havia um momento reservado para discussão, enriquecido pelos comentários de dois profissionais do LUTE e de uma docente do IPUSP.
No âmbito mais estritamente acadêmico, foram ministradas duas disciplinas sobre os temas Morte e Morrer para profissionais da saúde, junto ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia, atendendo 60 alunos. Foram abordados os desafios do cenário da pandemia, o processo de morrer e os diferentes tipos de enlutamento encontrados nos contextos de crise.
Os mesmos temas foram adaptados para a realidade dos psicólogos em formação e ministrados na disciplina Psicologia Hospitalar para o curso de graduação em Psicologia da FFCLRP-USP. Nesse período foram ofertadas três disciplinas online e contemplados 50 alunos. Os discentes, além da aquisição de conhecimentos téoricos, desenvolveram atividades práticas de estágio clínico sob supervisão de psicólogas(os) do LUTE-USP.
Produção e divulgação de conhecimento científico: Foram organizados três livros e publicados 14 artigos científicos e 13 capítulos, além de um manuscrito aceito para publicação. Os capítulos foram divulgados em livros sobre métodos de pesquisa em Psicologia, processos de enlutamento na pandemia, processos grupais de orientação psicanalítica, psico-oncologia, vulnerabilidade humana em diferentes contextos , psicoterapias e mediações terapêuticas na clínica dos extremos. Os títulos dos livros estão descritos no Quadro 1.
Dos 15 artigos publicados, sete tiveram a pandemia como tema de investigação. Os demais tematizaram os processos de perda e enlutamento em cenários de doenças não infecciosas, que também ameaçam a continuidade da vida (Quadro 2).
Foram realizadas as seguintes atividades online de divulgação científica: seminário online (webinar) sobre morte em crianças, com 1252 inscritos; jornada sobre lutos na pandemia e jornada sobre diferentes abordagens teórico-clínicas do processo de enlutamento, com 2987 inscritos, além de lives e ampla disseminação de material em mídia social - instagram @luteusp.
Discussão
A pandemia instaurou um cenário de saúde pública que acentuou a urgência de pensarmos novas modalidades de intervenção psicológica em situações de crise (Moura et al., 2022; Oliveira et al., 2021). Também evidenciou as deficiências de preparo técnico dos profissionais brasileiros para manejarem as questões de luto em contextos de imprevisibilidade e elevada morbimortalidade (Ferracioli et al., 2022). Por outro lado, a COVID-19 abriu oportunidades para inovação e pesquisa de estratégias de cuidado e de formação de recursos humanos especializados, com foco na mitigação dos efeitos devastadores das rupturas instaladas.
Com esse intuito foi criado o LUTE-USP e planejadas três linhas de ação: intervenção clínica, no polo assistencial; capacitação de profissionais de saúde, no polo do ensino; e divulgação do conhecimento científico produzido, no polo científico. A experiência acumulada mostra a importância de articular intervenções em questões de luto e terminalidade, mediante ações coordenadas em diferentes frentes, interligando ensino, pesquisa e extensão universitária.
Agradecimentos
Este estudo foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - CAPES e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq (Bolsa de Produtividade em Pesquisa).
Contribuição dos autores
Érika de Oliveira-Cardoso: Concetualização, Curadoria dos dados, Análise formal, Aquisição de financiamento, Investigação, Metodologia, Administração do projeto, Recursos, Redação do rascunho original, Redação - revisão e edição
Jorge dos Santos: Investigação, Análise formal, Metodologia
Pamela Sola: Investigação, Análise formal, Metodologia Redação - revisão e edição
Ana Clara de Carvalho: Análise formal, Metodologia
Aline Accoroni: Análise formal, Investigação, Metodologia
Breno da Silva: Análise formal, Metodologia
Juliana Garcia: Investigação, Redação do rascunho original
Lucas Lotério: Metodologia, Redação do rascunho original
Hellen Queirós: Investigação, Metodologia
Manoel Antônio dos Santos: Concetualização, Curadoria dos dados, Análise formal, Aquisição de financiamento, Investigação, Metodologia, Redação do rascunho original, Redação - revisão e edição