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Psicologia, Saúde & Doenças

versão impressa ISSN 1645-0086

Psic., Saúde & Doenças vol.23 no.2 Lisboa ago. 2022  Epub 30-Set-2022

https://doi.org/10.15309/22psd230227 

Artigos

Perceção dos profissionais relativamente às campanhas de violência doméstica: uma análise qualitativa

Professionals' perceptions of domestic violence campaigns: a qualitative analysis

1Universidade Fernando Pessoa, Porto, Portugal, gloria@ufp.edu.pt, pjrcardoso@gmail.com, lailapaz@hotmail.com, isabels@ufp.edu.pt

2Universidade Lusíada, Porto, Portugal


Resumo

Com o presente estudo pretendemos realizar uma aproximação à perceção geral dos especialistas sobre o fenómeno da violência doméstica contra a mulher. Foram realizadas entrevistas a 20 profissionais da Psicologia, Medicina, Enfermagem, Publicidade, Ensino e Justiça, utilizando um guião de entrevista composto por sete perguntas relativas à perspetiva do entrevistado sobre o fenómeno da violência doméstica contra a mulher, a sensibilização da população em torno desta problemática e sobre as campanhas de prevenção. Após a transcrição das entrevistas, foi realizada uma análise qualitativa. Foram identificadas três categorias: 1) Ausência de informação específica sobre o fenómeno da violência doméstica; 2) Questões sociais e reforços que favorecem a aceitação da violência doméstica; e 3) Impunidade em relação aos agressores. Para os participantes, as vitimas desconhecem outros tipos de violência que não seja a física. Também destacaram a tentativa de banalização dos crimes, seja pela desqualificação às vítimas por seu comportamento fora dos ditames de género ou pela aplicação de penas mais brandas. Finalmente, destacaram que a busca pela proteção dos direitos das mulheres é produto de inovações legislativas recentes, adquirindo cada vez mais relevância a cada inovação que as elevem à categoria de sujeitos de direitos.

Palavras-Chave: Violência doméstica; Campanhas de prevenção; Perceção de especialistas; Análise qualitativa

Abstract

The present study aimed to obtain an approximation to the general perception of experts on the phenomenon of domestic violence against women. Twenty Psychology, Medicine, Nursing, Advertising, Education and Justice professionals were interviewed, using an interview script composed of seven questions regarding the interviewee's perspective on the phenomenon of domestic violence against women, the awareness of the population on this issue and on prevention campaigns. After transcribing the interviews, a qualitative analysis was carried out. Three categories were identified: 1) Lack of specific information about the phenomenon of domestic violence; 2) Social issues and reinforcements which favour the acceptance of domestic violence; and 3) Impunity towards aggressors. According to the participants, the victims are unaware of other types of violence other than physical violence. They also highlighted the attempt to trivialize the crimes, either by disqualifying the victims for their behaviour or by applying softer sentences. Finally, they emphasized that the search for the protection of women's rights is the product of recent legislative innovations, acquiring more relevance with every action that raises them to the status of subjects of rights.

Keywords: Domestic violence; Prevention campaigns; Experts' perceptions; Qualitative analysis

Segundo o artigo 5º da lei nº 11.340, de 7 de Agosto de 2006, também conhecida como Lei Maria da Penha, a violência doméstica e familiar contra a mulher é “qualquer ação ou omissão baseada no género que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial”. Estima-se que 1 em 3 mulheres no mundo já sofreu algum tipo de violência física ou sexual por parte do seu companheiro ou ex-companheiro (Ajuda em Ação, 2020). O Brasil, o contexto onde a presente investigação foi desenvolvida, é o quinto na lista de países com mais crimes de género (ONU News, 2021). Este é, portanto, um problema social e de saúde pública que requer intervenção intensa e urgente.

As pesquisas científicas poderão ser valiosas para a planificação de campanhas de sensibilização. Os especialistas que lidam de perto com este problema podem contribuir para a construção de um quadro de análise geral e holístico sobre a violência contra as mulheres. A partir da sua experiência será possível traçar um retrato do fenómeno, assim como lançar sugestões para intervenções futuras e para a planificação de medidas de sensibilização, tal como as campanhas publicitárias.

Neste contexto, a presente investigação tem como objetivo geral analisar a perceção dos especialistas acerca da efetividade das campanhas publicitárias centradas na violência doméstica contra a mulher. Especificamente, o estudo procurou compreender: 1) a perceção geral dos especialistas sobre a eficácia das campanhas de prevenção que foram veiculadas nos cinco anos anteriores; 2) a sua perspetiva sobre os aspetos que poderiam ser melhorados, quer em termos de conteúdo, quer em termos de canais de comunicação utilizados.

Método

Tal como foi referido anteriormente, nesta investigação foi utilizada uma abordagem metodológica de carácter qualitativo por ser o método mais adequado a uma investigação exploratória e compreensiva de um fenómeno procurando as diversas perspetivas e nuances que o assunto pode conter (Marconi & Lakatos, 2003; Raymond & Campenhoudt, 2005; Yin, 2016). Os procedimentos envolveram a realização de entrevistas individuais a especialistas ligados a este fenómeno e a respetiva análise de conteúdo, sob a perspetiva de Bardin (2011).

Participantes

A amostra foi intencionalmente composta por psicólogos, profissionais de comunicação, profissionais de saúde e por outras funções que, de algum modo, pudessem estar direta ou indiretamente relacionadas com o fenómeno, num total de 20 participantes (Quadro 1).

Em concreto, foram envolvidos profissionais da Medicina, Enfermagem e Psicologia, uma vez que são os profissionais da área da saúde que normalmente são os primeiros a amparar mulheres vítimas de violência doméstica. Foram também incluídos profissionais da área do Direito, que naturalmente também têm acesso quotidiano a casos de violência doméstica contra a mulher. Os profissionais de comunicação foram escolhidos por serem autores de mensagens de sensibilização relativamente ao fenómeno. Finalmente, foram selecionados profissionais da Educação, dada a sua importância no processo de educação e de consciencialização da população geral.

Quadro 1 Caracterização dos participantes 

Procedimento

Após parecer positivo dos Comités de Ética da Plataforma Brasil e da Universidade Fernando Pessoa, procedeu-se à identificação dos potenciais participantes, através de consulta aos sites dos órgãos públicos ou entidades privadas. Posteriormente, os potenciais participantes foram contactados através do e-mail com o objetivo de explicar o teor do estudo, assim como solicitar a sua participação. Neste momento foi também disponibilizado a cada um deles o guião de entrevista, com o objetivo de que o entrevistado pudesse decidir sobre a sua participação, e caso aceitasse participar, se preparasse e realizasse uma reflexão melhor sobre o tema abordado.

Uma vez que a pesquisa se desenvolveu durante a pandemia gerada pela Covid-19, optou-se pela utilização de plataformas digitais que permitissem a realização de videoconferências para gravação de áudio e/ou vídeo: Zoom ou o WhatsApp. Além disso, a realização de cada entrevista esteve condicionada à aceitação da respetiva gravação de áudio e/ou vídeo, bem como pelo preenchimento do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

Material

Para a recolha de dados foi elaborado um guião de entrevista semiestruturada composto por perguntas abertas, organizadas em dois módulos: um primeiro centrado na perceção da eficácia das campanhas de sensibilização para a violência doméstica contra a mulher, e um segundo centrado na opinião do entrevistado sobre os aspetos a melhorar nessas campanhas.

Resultados

A informação recolhida foi dividida em grandes categorias que contemplavam os 2 objetivos específicos colocados inicialmente: a eficácia das campanhas e os aspetos a melhorar.

Em relação à eficácia das campanhas de sensibilização pressupõem uma certa eficácia junto da população. Ora, neste contexto, a grande maioria dos entrevistados (16) não consideram as campanhas eficazes, enquanto apenas 4 as consideram eficazes.

Os especialistas que consideram as campanhas ineficazes atribuem, frequentemente, esse insucesso a aspetos que são intrínsecos à população e não imputáveis às campanhas em si. Assim, os entrevistados evocam características da população tais como: a ausência de educação desde a infância sobre igualdade de género, a ausência de informação sobre outros tipos de violência, que não só a física, tais como a psicológica, a moral, a sexual. Neste contexto, alguns entrevistados enfatizam a importância da educação e da sensibilização em contexto escolar, desde a infância: “Não é possível falar em efetividade da campanha de prevenção se não há um trabalho estrutural para combater esse tipo de violência. (…) precisamos de educação sobre género na escola” (ADVM27).

Outro problema apontado nestas campanhas é a sua escassez: as campanhas são insuficientes, são raras, e como tal a mensagem não passa e não deixa recordação: “Eu acho que as campanhas desenvolvidas pelo governo são ineficazes, são insuficientes” (ADVF33).

Num sentido contrário, surgem opiniões de que as campanhas realmente resultam e são eficazes, apesar desta opinião estar menos presente e ser apenas referida por 4 entrevistados:

Eu acho que elas são um esforço, independente de linguagem, de abordagem, elas cumprem o papel fundamental que é estar agindo nesse processo de informação e de consciencialização da população em relação a esse problema” (PBM58).

O segundo grande objetivo do estudo procurava encontrar os aspetos que poderiam ser melhorados nestas campanhas. Os participantes centraram as suas respostas em aspetos como o conteúdo das campanhas (12), os canais de comunicação utilizados (8), a constância e frequência das mensagens difundidas (6), e a responsabilidade social das empresas (5).

O conteúdo das campanhas emerge como um aspeto essencial na eficácia das campanhas. Um dos fatores mencionados é a falta de elucidação sobre os canais que podem ser usados, pelas vítimas ou denunciadores, para avançarem com os processos contra a violência doméstica:

“As campanhas elas mostram como a mulher pode denunciar, só que as campanhas não mostram o depois. A minha angústia é essa, é o depois, é mostrar para essa mulher que existe o abrigo, que existe a delegacia de género, porque a gente não vê isso mostrado nas campanhas, não é?” (PSIM39).

Quanto ao enquadramento e ao tom das mensagens, alguns especialistas consideram que estas campanhas devem evitar o impacto emocional e o sensacionalismo, optando por uma abordagem de sensibilização e menos de choque: “Eu acho que não é uma questão para se tratar de forma dramática (…) porque se torna cansativo. Mas se você começa a trabalhar uma linguagem de envolvimento, de engajamento, de sensibilização (…) de educação, de empatia”. (PBM58)

Quanto aos canais de comunicação, surgem 3 sugestões importantes. Por um lado, surge a consciência de que os meios de comunicação de massa são essenciais para expandir a mensagem e chegar a um maior número de pessoas. Por outro lado, é mencionada a importância de utilizar canais que chegam onde os outros meios não chegam, como por exemplo a rádio no meio rural. Finalmente, enfatiza-se a importância dos canais digitais como forma de chegar a determinados públicos, nomeadamente os mais jovens.

“Eu acredito que a gente não pode deixar de pensar na comunicação de massa (…) tem que estar na mídia de massa (…) tem que estar em todo lugar” (PBF62).

“Na zona rural, no interior, o instrumento ainda muito usado pela população é o rádio. Aquele rádio de pilha. O pessoal às vezes vai para a roça, leva o rádio, sintoniza, está trabalhando, ali o rádio dele” (PRMM36).

“(...) hoje em dia a campanha é muito voltada a televisão, a população jovem não assiste mais televisão, é só internet, Youtube, Spotify, podcast, esse tipo de canais de comunicação” (ADVF33).

Na perspetiva dos entrevistados é importante que as campanhas sejam constantes, que se crie uma frequência na divulgação destas campanhas. Dessa forma, a eficácia será alcançada mais facilmente:

“… Consciencialização é um processo a longo prazo e tem que bater na mesma tecla, tem que ser constante (…). E com isso as mulheres vão criando coragem, que é o que está acontecendo, é um processo, é lento, mas está acontecendo” (FPFF58).

Alguns entrevistados salientam a importância das empresas para que estas mensagens possam passar para a população de forma mais eficaz. Assim, as empresas, no âmbito da responsabilidade social corporativa, podem ajudar na divulgação destas mensagens:

“(...) empresas que apoiam essa causa (…) marcas que apoiam essa causa, a exemplo do que acontece hoje na questão da sustentabilidade, do meio ambiente em que as empresas se enquadram dentro desse, digamos assim, desse protocolo de responsabilidade social” (PBM58).

Discussão

A maioria dos especialistas que participaram neste estudo consideram que as campanhas de sensibilização para a violência doméstica não são eficazes. Essa ineficácia é atribuída à falta de bases educacionais sobre o tema. Assim, entendem que antes de campanhas de sensibilização devia atender-se à educação das crianças e jovens sobre este tema. Outra razão evocada para esta ineficácia está relacionada com a escassez e frequência das mensagens difundidas, entendendo assim que as campanhas centradas na violência doméstica são raras e insuficientes.

Face a esta ineficácia, os participantes propõem medidas para a sua melhoria. Estas medidas passam, em primeiro lugar, pelo conteúdo das próprias campanhas, entendendo os profissionais que não devem apenas levar à denuncia das situações, como também mostrar os canais indicados para que as vítimas e testemunhas possam dirigir-se às entidades adequadas. Quanto ao enquadramento e ao tom das mensagens, os profissionais opinam que as campanhas contra a violência doméstica devem priorizar a sensibilização da comunidade, optando por ser mais elucidativas e menos sensacionalistas.

Quanto aos canais a utilizar, os participantes realizam três importantes propostas para a divulgação destas campanhas: 1) a necessidade de se utilizar meios de comunicação de massa para atingir um grande volume de público; 2) a importância de segmentar canais que sejam especialmente eficazes para determinado público, como, por exemplo, a rádio em zonas mais rurais e; 3) finalmente, a conveniência de utilizar a diversidade dos canais digitais na sociedade tecnológica atual.

Por fim, os participantes sugerem o envolvimento das empresas na divulgação das mensagens preventivas da violência doméstica. Assim, no contexto da responsabilidade social corporativa, as empresas podem ser importantes canais emissores e divulgadores destas campanhas.

Em formato de remate, cumpre salientar que, a partir das propostas de melhorias destas campanhas, foi possível, por um lado, fazer um retrato sobre a perspetivas dos especialistas relativamente a esta temática e, por outro, recolher contributos que possam ser úteis para os profissionais de comunicação.

Contribuição dos autores

Gloria Jólluskin: Concetualização; Análise formal; Investigação; Metodologia; Administração do projeto; Supervisão; Validação; Visualização; Redação do rascunho original; Redação - revisão e edição

Paulo Ribeiro Cardoso: Concetualização; Análise formal; Investigação; Metodologia; Administração do projeto; Supervisão; Validação; Visualização; Redação do rascunho original; Redação - revisão e edição

Laila Paz: Curadoria dos dados; Análise formal; Recursos

Isabel Silva: Validação; Visualização; Redação do rascunho original; Redação - revisão e edição

Referências

Ajuda em Ação (2020). Dados e estatísticas da violência de género no mundo. Ajuda em ação, 2/12/2020. Disponível em: https://ajudaemacao.org/blog/mulheres/dados-e-estatisticas-violencia-genero-mundo-2020/Links ]

Krug, E. G., Dahlberg, L. L., Mercy, J. A., Zwi, A. B., & Lozano, R. (2002). World report on violence and health. WHO. [ Links ]

Bardin, L. (2011). Análise de conteúdo. Edições 70. [ Links ]

Marconi, M. A., & Lakatos, E. M. (2003). Fundamentos da metodologia científica. 5a edição. Atlas. [ Links ]

ONU News (2021). ONU Mulheres inicia campanha de 16 dias de ativismo contra violência de gênero. ONU News, 24 novembro 2021. Disponível em: https://news.un.org/pt/story/2021/11/1771322Links ]

Raymond, Q., & Campenhoudt, L. V. (2005). Manual de investigação em ciências sociais. 4º edição. Gradiva Editora. [ Links ]

Yin, R. K. (2016). Pesquisa qualitativa do início ao fim. Penso. [ Links ]

Recebido: 15 de Junho de 2022; Aceito: 10 de Setembro de 2022

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