Transtornos Alimentares (TAs) são caracterizados por um medo mórbido do sujeito de estar acima do peso e por grave e persistente distorção da imagem corporal, que levam à adoção de medidas compensatórias que visam à perda drástica de peso e que impactam o desenvolvimento saudável (Leonidas et al., 2019; Moraes et al., 2021; Ynomoto et al., 2022). O Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, 5ª edição (DSM-5) reúne critérios diagnósticos para os seis tipos conhecidos de TAs, dentre eles a Bulimia Nervosa (BN) (American Psychiatric Association [APA], 2014). Esses transtornos são agrupados dentro de uma mesma categoria em função das semelhanças que apresentam em seus aspectos comportamentais e psicológicos, no entanto, os diversos subtipos de TAs apresentam diferenças significativas em termos de curso e desfecho clínico. Observa-se uma diferença significativa na prevalência dos TAs entre os sexos, com maior suscetibilidade na população feminina (Murray, 2017; Striegel-Moore et al., 2008).
De etiologia multifatorial, a BN demanda uma abordagem que não pode se restringir aos aspectos unidimensionais do transtorno, tornando imprescindível a compreensão de elementos psicodinâmicos, tais como a formação de vínculos e as relações familiares (Valdanha-Ornelas et al., 2021). A literatura pontua que, a depender das características e qualidade dos vínculos estabelecidos no grupo familiar, a família pode se configurar como fator de risco ou fator protetivo para o desenvolvimento e manutenção dos sintomas de TAs, o que precisa ser considerado na planificação do tratamento e da reabilitação psicossocial do indivíduo acometido (Ali et al., 2017; Leonidas & Santos, 2022c; Melek & Ornelas Maia, 2017).
Apesar da reconhecida influência atribuída à dinâmica das relações familiares na constelação sintomática (Gil et al., 2022), a figura paterna foi pouco pautada pelos estudos ao longo do tempo, especialmente quando se trata de uma abordagem que considere a perspetiva do pai sobre a relação com um filho que tem diagnóstico de TA (Santos & Costa-Dalpino, 2019; Simões & Santos, 2021). Não obstante, estudos recentes têm apontado que o pai é um elemento central a ser considerado na equação etiopatológica, dado o impacto significativo que pode exercer no curso clínico do transtorno e no desfecho do tratamento do filho (Toubøl et al., 2019; Treasure et al., 2019).
Ao se considerar a complexidade inerente à relação pai-filho no contexto psicopatológico, é necessário lançar mão de aportes teóricos que auxiliem a compreensão das nuances que permeiam o vínculo da díade. A literatura descreve uma relação pai-filha(o) marcada pelo distanciamento e por interações superficiais que não proporcionam adequada expressão afetiva, o que inviabiliza o suporte emocional necessário para o enfrentamento de experiências angustiantes e de sofrimento (Leonidas & Santos, 2014, 2015a; Simões & Santos, 2021).
Nessa vertente, a Psicanálise das Configurações Vinculares oferece contribuições valiosas, uma vez que sua atenção se volta para além dos elementos subjetivos e individuais, resultando em uma transposição do conceito de relação objetal para a noção de vínculo, com um olhar atento sobre aquilo que se situa no espaço constituído entre os indivíduos, isto é, o interssubjetivo (Berenstein & Puget, 1997). Tal espaço intersticial configura e tece a trama que enreda os aspetos conscientes e inconscientes de cada membro familiar (Gomes & Levy, 2009; Oliveira, 2019; Santos et al., 2017). Em contextos de sofrimento, como no transtorno mental grave, o sintoma é compreendido como tentativa de trazer à superfície elementos que incidem sobre a vinculação, como as falhas e descontinuidades, uma vez que esses elementos ainda não puderam ser adequadamente elaborados e integrados pelo núcleo familiar (Berenstein, 2011; Leonidas & Santos, 2015b, 2020a, 2020b), 2020c.
Esta é uma perspetiva que abre espaço para se pensar na necessidade de reconfiguração e reelaboração dos laços que unem o grupo familiar em torno de um pacto inconsciente (Benghozi, 2005). A trama vincular do grupo familiar pode ser pensada como uma rede, na qual a malha é constituída pelo entrecruzamento dos vínculos de filiação e afiliação, que dão origem à disposição dos laços. Essa disposição é estruturada a partir do conjunto de vínculos que compõem o grupo familiar, estrutura que delimita o continente psíquico do grupo familiar (Benghozi, 2010). Toda a trama constituída é passível de ser malhada, desmalhada e remalhada conforme a organização e reorganização dos vínculos. Assim, situaçõe extremas como a emergência dos sintomas de bulimia em um membro da família podem ser compreendidas como uma tentativa de remalhagem da rede, que se mostra fragilizada a ponto de ser facilmente desmalhada.
Considerando esses pressupostos, este estudo tem como objetivo compreender o vínculo pai-filho e a experiência da paternidade na perspetiva do pai de um jovem adulto em tratamento para BN em um serviço especializado.
Método
Trata-se de um estudo descritivo-exploratório, conduzido com enfoque de pesquisa qualitativa com corte transversal e organizado como um estudo de caso individual. Foram observados e respeitados os parâmetros éticos de pesquisas envolvendo seres humanos (Parecer n° 27234719.7.0000.5407). Os nomes próprios foram substituídos por nomes fictícios.
Foram seguidas as orientações práticas que norteiam o planejamento, execução e divulgação de estudos de caso individual, tal como preconizado pela literatura na área da Psicologia (Peres & Santos, 2005). Um estudo de caso remonta a uma abordagem investigativa que tem como objetivo oferecer uma descrição e análise aprofundada de um fenômeno específico, respeitando-se suas características e complexidade, de maneira a contemplar as diferentes dimensões envolvidas a fim de expandir o conhecimento existente (Stake, 2000).
Participantes
O participante é um homem de 61 anos, aqui designado como Ruy, casado, pai de uma filha com 32 anos de idade e um filho com 31. O filho recebeu diagnóstico de BN do tipo purgativo e estava em atendimento por um serviço especializado no tratamento de TAs, situado em um hospital universitário do interior do estado de São Paulo, Brasil. O participante foi selecionado de uma amostra de conveniência de pais entrevistados para um projeto mais amplo, cujo objetivo geral era compreender os significados atribuídos à paternidade e à parentalidade por genitores de pessoas com diagnóstico de TAs.
Os critérios adotados para a inclusão do participante foram: a) ter um filho diagnosticado com algum tipo de TA; b) conviver diariamente com o filho diagnosticado; c) estar em condições físicas e mentais adequadas para participar do estudo; d) apresentar características e elementos que configurassem um “caso”, tal como preconizado pela literatura (Stake, 2000). Dentre os sujeitos incluídos no estudo maior, foi selecionado o único que era pai de um paciente do sexo masculino, considerando que a prevalência de BN em homens é rara em comparação com o sexo feminino, o que justifica o interesse em estudar as particularidades do presente caso.
Material
Para a coleta de dados foram utilizados: a) Formulário de Dados Sociodemográficos, b) Critério de Classificação Econômica Brasil (CCEB), c) Genograma, d) Roteiro de entrevista semiestruturado. A composição do roteiro de entrevista incluía perguntas que visavam compreender a relação entre o participante e o filho diagnosticado, e o modo como ele concebia a paternidade e a parentalidade, bem como seus sentimentos relacionados à condição de pai.
Procedimento
A coleta de dados foi realizada em julho de 2021. Devido às restrições e o necessário distanciamento social imposto pela pandemia de COVID-19, o procedimento de coleta foi realizado de forma remota, mediante videochamada pela plataforma Google Meet. A entrevista individual foi audiogravada mediante consentimento e, posteriormente, transcrita de forma literal e na íntegra, constituindo o corpus da pesquisa. Os dados foram interpretados com amparo da Psicanálise das Configurações Vinculares (Berenstein, 2011; Santos et al., 2017).
Resultados
A participação de Ruy no estudo se deu após um período de internação do filho com diagnóstico de BN. A hospitalização foi indicada devido a um quadro grave de hipocalemia, desencadeada por episódios recorrentes de vômito autoinduzido. Anteriormente, Ruy não acompanhava o filho nos atendimentos em regime ambultorial e não participava de seu tratamento, a despeito das exigências e recomendações do serviço. A literatura destaca a tendência a um marcado distanciamento afetivo da figura paterna na vida de pessoas acometidas por TAs, bem como dificuldades para a inserção ativa do pai no tratamento (Santos & Costa-Dalpino, 2019; Simões & Santos, 2021).
No caso em análise, algo que a princípio poderia ser compreendido como mera casualidade na verdade reflete o distanciamento entre pai e filho, apesar de viverem sob o mesmo teto. Foi possível observar uma configuração vincular na qual o pai se conscientiza tardiamente da condição de saúde do filho, apesar das evidências de gravidade dos sintomas e dos conflitos suscitados no ambiente familiar, sendo necessária a incidência de um evento da magnitude de uma hospitalização integral do filho para que houvesse um princípio de percepção da realidade e do risco de vida a que o filho estava exposto.
Não, eu fiquei sabendo do tratamento há pouco tempo aí, que ele chegou a desmaiar lá em casa. Eu já sabia que ele fazia isso, até o ponto de ele chegar e desmaiar, entendeu? Foi quando fez a primeira internação dele (Ruy, 61 anos).
As demandas inerentes ao exercício da função paterna carregam uma complexidade tal que, diante da dificuldade do sujeito em assimilá-las, podem levá-lo a um afastamento das tarefas que lhe cabem, constituindo uma fonte de sofrimento para o pai (Cherer et al., 2018; Santos et al., 2021). Nesse sentido, a trama vincular que articula o grupo familiar fica sujeita a falhas e descontinuidades que fragilizam os laços que sustentam as relações estabelecidas, tornando-se vulnerável e mais suscetível a rupturas (Benghozi, 2010).
O distanciamento que marca a relação entre Ruy e o filho denota uma construção intersubjetiva na qual incidem, além das complexidades do vínculo paterno, a constituição subjetiva e as dificuldades individuais do pai. Isso se destaca no modo rude com que Ruy algumas vezes buscava se aproximar do filho, fazendo uso de apelidos que o levavam a se sentir ofendido.
Mas quando ele era pequenininho, ele era uma bolinha desse tamanhozinho, aí eu chamava ele de Fofão. Ele não gostava muito não [...] “Oh, Fofão, vem cá! Oh, Fofão, vamos sair? Oh, isso, aquilo e aquilo outro, você entendeu? Às vezes ele gostava, às vezes ele não gostava, sabe, eu queria ser útil e agradável, entendeu? (Ruy, 61 anos).
A dificuldade em encontrar formas mais funcionais e amorosas de estabelecer uma relação de proximidade afetiva com o filho pode ser melhor compreendida quando contempladas as características da relação que Ruy experienciou com seu próprio pai e o modelo parental experimentado por ele ao longo de seu desenvolvimento. A ausência e rigidez com que a figura paterna foi introjetada por Ruy remetem a um modelo parental desprovido de recursos afetivos, caracterizando uma relação empobrecida no que diz respeito ao repertório de interações e pouca abertura para a expressão espontânea e genuína de sentimentos.
A gente procura só, sei lá, não ser tão rígido que nem meu pai às vezes foi com a gente. E é que nem eu falo pra você, não é, tipo, assim da minha índole, sabe? Eu acho que a correção do meu pai com a gente foi muito boa, mas ele era meio... ele era mais ausente [...] (Ruy, 61 anos).
De forma semelhante, a rigidez vivenciada por Ruy em sua família de origem é reproduzida por ele em sua família constituída, sobretudo, na relação com seu único filho do sexo masculino, o que contribuiu para cristalizar o marcado distanciamento da díade.
[...] 99%, ou tipo assim, 70, 80%, é a mãe que sabe do filho. O restante é o pai. O que chega, quando chega no pai, é porque a coisa já ficou feia, entendeu? A coisa já ficou feia e eles já vão ver que o pai vai descobrir e vai ficar nervoso com aquilo e aquilo outro. Então, quando chega em você, a notícia já está chegando meio tarde, entendeu? (Ruy, 61 anos).
O sentimento de estar sempre “chegando atrasado” no conhecimento do que se passa com o filho reflete uma vivência de deslocamento e insegurança no exercício da função paterna. Constata-se a existência de uma relação afetivamente empobrecida em função do distanciamento que se perpetua ao longo do percurso de desenvolvimento do filho, devido às dificuldades de Ruy em fazer uso de seus recursos internos que lhe permitiriam a criação de um espaço de intimidade psíquica, com aberturas para a expressão de afeto e cuidado parental. Tal constatação nos permite pensar em um vínculo fragilizado entre pai e filho e de uma trama vincular cuja malha se apresenta débil e vulnerável e, portanto, suscetível de ser desmalhada, podendo levar ao colapso e ao esfacelamento da rede composta pelo grupo familiar diante de situações de maior estresse (Benghozi, 2005, 2010). Assim, é possível compreender o adoecimento e agravamento do quadro clínico apresentado pelo filho como uma forma de remalhagem dos laços que dão sustentação à trama vincular da família. O sintoma constitui uma tentativa mal-sucedida de busca de elaboração e reconstrução das falhas e descontinuidades que incidem sobre os vínculos (Benghozi, 2005; 2010; Berenstein, 2011).
Com amparo da literatura, é possível conceber dois cenários para uma compreensão psicanalítica deste caso: 1) um possível desenvolvimento favorável do quadro clínico do filho de Ruy guarda, em certa medida, relação com a capacidade da díade de empregar os recursos necessários para a remalhagem dos laços que sustentam a rede na qual a trama vincular da família está inserida; 2) a inclusão, ainda que tardia, do pai no tratamento e a adoção de estratégias que beneficiam a continuidade de sua participação ativa nos cuidados são importantes não só devido às especificidades do transtorno, mas também pelas dificuldades relacionais e necessidade de amadurecimento emocional do próprio pai (Melek & Ornelas Maia, 2017; Toubøl et al., 2019; Treasure et al., 2019; Simões & Santos, 2021).
Em um contexto de sofrimento, como é o caso da BN, um transtorno mental grave e persistente, é necessário lançar um olhar compreensivo sobre as especificidades da trama vincular configurada em cada caso e em sua trama vincular familiar (Berenstein, 2011). Isso permite potencializar uma rede de proteção capaz de auxiliar o pai a transpor as barreiras que surgem devido à tendência autoculpabilizadora, tornando então possível para ele reconhecer suas próprias potencialidades, direcionando seus recursos para um apoio mais consistente ao filho. Ao refletir sobre as mudanças que gostaria que acontecessem na relação com o filho, Ruy destaca seu desejo de estar mais próximo e ser um pai mais presente na vida dos filhos.
Ah, sei lá, ser mais participativo com eles, né. É que nem eu falo pra você, cada época é uma época, cada momento é um momento, você entendeu? Tem o momento de ser feliz, tem o momento de chorar, tem o momento de brigar, tem o momento em que você, lógico, chama a atenção, porque você não vai ficar chamando a atenção a troco de nada, entendeu? Tem que ser mais participativo com os filhos, porque o tempo passa assim, muito rápido (Ruy, 61 anos).
Desse modo, Ruy se mostra sensibilizado pelo sofrimento do filho e parece estar disposto a recuperar o “tempo perdido” junto ao filho. Ao apoiar a inclusão do pai no tratamento, é fundamental ajudá-lo a elaborar estratégias que lhe permitam compreender suas próprias demandas e necessidades, de modo que ele possa se converter em aliado ativo no processo. É preciso pensar no potencial das relações familiares como fator protetivo, dado o papel que o malha vincular desempenha na recuperação do indivíduo em sofrimento (Ali et al., 2017).
Discussão
Este estudo alcançou o objetivo de compreender a relação pai-filho na perspetiva do pai de um jovem com diagnóstico de BN pela lente da Psicanálise das Configurações Vinculares. Verificou-se uma relação marcada pelo distanciamento paterno e atravessada pela dificuldade em construir um espaço favorável à expressão de afeto, espontaneidade e cuidado emocional do filho, o que guarda relação com o modelo parental que o participante experienciou com seu pai na infância.
Com base na literatura (Santos & Costa-Dalpino, 2019; Simões & Santos, 2021), compreende-se que o vínculo paterno se configura no caso apresentado como fator de risco para o quadro de saúde do filho, uma vez que as dificuldades observadas na relação da díade contribuem para a perpetuação de uma dinâmica disfuncional e pouco saudável que enlaça e aprisiona a díade. A constatação de que Ruy experienciou em sua família de origem uma relação marcada por rigidez, empobrecimento da expressão emocional e abandono afetivo por parte da figura paterna colabora na compreensão acerca da formação e persistência de uma dinâmica vincular pouco favorecedora do amadurecimento pessoal.
Por outro lado, o tratamento pode funcionar como ferramenta para engendrar novas remalhagens, convertendo-se em oportunidade de potencializar um fator protetivo rumo a uma relação mais saudável, constituindo-se em um valioso aliado para a recuperação do filho. Por fim, os pressupostos teóricos da Psicanálise das Configurações Vinculares e o olhar direcionado para o vínculo estabelecido entre pai e filho nesse contexto permitiram a extensão do olhar para aspetos que vão muito além de um plano unidimensional, permitindo analisar as características e nuanças da trama vincular que enreda a dupla. Desse modo, foi possível a compreensão do sintoma como uma forma de remalhagem dos laços que unem a díade, a partir das tensões e demandas que o quadro clínico suscita no restante da família (Santos et al., 2016; Siqueira et al., 2020), o que coloca a necessidade de um trabalho ativo em torno dos vínculos estabelecidos entre os membros do grupo familiar (Berenstein & Puget, 1997; Souza & Santos, 2012; Valdanha et al., 2013).
Ao recomendar aos profissionais de saúde que evitem a armadilha de reforçar a culpabilização da figura paterna no contexto do tratamento dos TAs, o presente estudo contribui para endereçar um olhar mais compreensivo, capaz de validar os esforços do pai para se inserir no tratamento do filho, ajudando-o a identificar e valorizar seus recursos pessoais que podem resultar em fortalecimento egoico para enfrentar as situações desafiadoras.
Contribuição dos autores
Michel da Matta Simões: Concetualização, Curadoria dos dados, Análise formal, Investigação, Metodologia, Administração do projeto, Recursos, Redação do rascunho original, Redação - revisão e edição
Manoel Antônio dos Santos: Concetualização, Curadoria dos dados, Análise formal, Aquisição de financiamento, Investigação, Metodologia, Supervisão, Redação do rascunho original, Redação - revisão e edição