Muitos estudos têm vindo a mostrar que a pandemia de covid-19 tem tido um impacto importante nos jovens em múltiplas dimensões da sua vida, em Portugal como noutros países (Branquinho et al., 2020; Godinho et al., 2022; Son et al., 2020). Por exemplo, numerosos estudos mostram que a saúde mental foi afetada e que os jovens apresentam níveis de depressão, ansiedade e stress mais elevados do que antes da pandemia (Maia & Dias, 2020) e mais elevados do que outras faixas etárias da população (Godinho et al., 2022).
No entanto, poucos estudos têm focado o impacto da pandemia na vivência do corpo. Alguns sugerem que a pandemia ocasionou alterações de peso (sobretudo aumento) nos jovens, e mais do que noutras faixas etárias (Godinho et al., 2022). Outros mostram que a insatisfação com a aparência física pode ter aumentado em função do aumento do uso de redes sociais (Vall-Roqué et al., 2021) e do aumento do índice de massa corporal (IMC) (Swami et al., 2021). Menos estudos mostram também a consciência interocetiva, que é a perceção consciente das sensações que provém do interior do corpo (Mehling et al., 2012), como preditora de depressão, ansiedade ligada à saúde e sintomas somáticos durante a pandemia (Suzuki et al., 2021). Mais ainda, uma menor preocupação com as sensações corporais desconfortáveis é preditora de menor ansiedade face à covid-19 (Elliot et al., 2022).
Dada a importância que as vivências do corpo, mais focadas na aparência física ou nas sensações provenientes do interior do próprio corpo, parecem ter na saúde física e mental dos jovens (Grogan, 2006; Murphy et al., 2017; Quadt et al., 2018), é crucial compreender como se relacionam com a experiência da pandemia dos estudantes universitários.
Assim, os objetivos desta investigação foram: (a) examinar a vivência do corpo (IMC, insatisfação com a imagem corporal e consciência interocetiva) de estudantes universitários durante a pandemia da covid-19, nomeadamente diferenças de género e associação com a idade e ano de estudos; (b) explorar a associação entre a experiência da pandemia (preocupações com a pandemia e seu impacto no estilo de vida) e a vivência do corpo.
Método
O presente estudo é de tipo transversal, quantitativo e correlacional. Utilizou-se uma amostragem não probabilística de conveniência.
Participantes
Participaram 280 estudantes (223 do género feminino, 79,6%) da Universidade de Évora, dos 18 aos 29 anos (M = 21,06, DP =2,48). Destes, 71,8% frequentavam uma licenciatura e 23,6% um mestrado, sendo que 34,6% estavam no 1º ano, e 18,2% e 17,9% frequentavam respetivamente o 2º e 3º anos; 15,7% frequentavam o 1º ano de mestrado ou o 4º ano da licenciatura e 10,4% o 2º ano de mestrado. Dois estudantes (0,7%) frequentavam 11º semestre de um curso de mestrado integrado (7 não deram informação). A maior parte estudava na Escola de Ciências Socias (41,1%) e na Escola de Ciências e Tecnologia (28,6%). Durante o período de aulas presenciais, 23,9% dos participantes residia na casa da sua família, contra 82,9% quando as aulas eram online. Sessenta por cento dos participantes já tinham realizado o teste de despiste à covid-19, 7,1% já tinham estado infetados e mais de metade (57,9%) conhecia alguém (e.g., família, amigos) que estava ou tinha estado infetado.
Material
O Questionário Sociodemográfico recolheu informação sociodemográfica, académica, sobre peso e altura (para calcular o IMC, dividindo o peso pelo quadrado da altura) e relacionada com a pandemia da covid-19, entre outras.
A Escala de Avaliação de Silhuetas de Thompson (Thompson & Gray, 1995; versão portuguesa, Francisco et al., 2012) avalia a insatisfação com a imagem corporal. É composta por 9 silhuetas femininas e 9 masculinas numeradas de 1 a 9, desde as mais magras às mais gordas. Os participantes devem selecionar a silhueta que mais se aproxima da sua imagem corporal atual e a que corresponde à sua imagem corporal ideal. A insatisfação com a imagem corporal corresponde ao valor absoluto da diferença entre a aparência atual e a aparência ideal (Francisco et al., 2012) e valores mais elevados indicam maior insatisfação. A adaptação portuguesa (Francisco et al., 2012) mostrou boas qualidades psicométricas.
O Questionário de Avaliação Multidimensional da Consciência Interocetiva (Machorrinho et al., 2019; Mehling et al., 2012; versão portuguesa,) avalia a consciência interocetiva. Inclui 33 itens divididos por 7 subescalas: Notar (4 itens; e.g., “Eu noto quando estou desconfortável no meu corpo”), Não se Distrair (4 itens; e.g., “Eu tento ignorar a dor”), Não se Preocupar (4 itens; e.g., “Eu consigo aperceber-me de uma sensação corporal desagradável, sem ficar preocupado/a com ela”), Regulação Atencional (7 itens; e.g., “Se me distrair, consigo voltar a prestar atenção ao meu corpo”), Consciência Emocional (5 itens; e.g., “Eu noto como o meu corpo se altera quando estou zangado/a”), Autorregulação (7 itens; e.g., “Eu ‘escuto’ o meu corpo para saber o que fazer”) e Confiar (3 itens; e.g., “Eu sinto que o meu corpo é um lugar seguro”) (Machorrinho et al., 2019). Os itens são pontuados de 0 (Nunca) a 6 (Sempre) e pontuações médias mais elevadas indicam uma melhor consciência interocetiva em cada dimensão. Neste estudo, tal como no de Machorrinho et al. (2019), a consistência interna das escalas foi considerada adequada a boa (Notar, α = 0,64; Não se Preocupar, α = 0,75; Regulação Atencional, α = 0,85; Não se Distrair, α = 0,86; Consciência Emocional, α = 0,86; Confiar, α = 0,86; Autorregulação, α = 0,88).
O Questionário de Preocupações com a Covid-19 foi desenvolvido para este estudo a partir de outros questionários (e.g., Ellis et al., 2020) e de modo a incluir itens relativos a aspetos do funcionamento e saúde dos estudantes universitários que possam ter sido afetados pela pandemia (e.g., alimentação) (Son et al., 2020), com o objetivo de avaliar a experiência da pandemia em estudantes universitários. A resposta é assinalada numa escala de 1 (Nada) e a 4 (Muito). Procedeu-se ao estudo da estrutura interna da escala através de Análise de Componentes Principais, com 3 fatores com rotação oblíqua. Tendo em consideração os itens com carga fatorial superior a .40, 9 itens compuseram a subescala “Preocupações com a Covid-19” (α = 0,76; e.g., “Tens estado preocupado/a com o impacto da covid-19 no teu ano letivo?”), 5 itens integraram a subescala “Impacto no estilo de vida” (α = 0,76; e.g., “A situação da pandemia levou a alterações nos cuidados com o corpo e com a aparência física”) e 4 itens reuniram-se numa subescala “Mista” (α = 0,28 e.g., “Nos últimos 7 dias, até que ponto te envolveste em distanciamento social?”). Dada a sua fraca consistência interna, esta última subescala não foi considerada neste estudo. Foram obtidas duas pontuações correspondentes à média dos itens das duas subescalas e pontuações mais elevadas correspondem a mais preocupações e maior impacto no estilo de vida.
Procedimentos
O projeto de investigação obteve parecer positivo do Concelho Científico da Escola de Ciências e Tecnologia e da Comissão de Ética da Universidade de Évora (GD/37034/2020).
Os instrumentos foram aplicados de modo online através da plataforma LimeSurvey. A primeira página referia as condições relativas à obtenção de consentimento informado. O estudo foi divulgado por e-mail junto dos diretores de curso e estudantes da Universidade de Évora e o questionário esteve ativo de 12 de março a 13 de maio de 2021. Contaram-se 310 questionários integralmente respondidos, 24 dos quais foram excluídos (idade igual ou superior a 30 anos, não mencionavam onde estudavam ou frequentavam outra universidade).
A análise estatística foi realizada com o SPSS, v. 27 (Quadro 1). Os valores do ano de estudos foram recodificados, de modo que os valores de 1 a 3 correspondessem aos respetivos anos de licenciatura, 4 ao 4º ano de licenciatura ou ao 1º ano de mestrado, 5 ao 2º ano de mestrado e 6 ao 11º semestre de mestrado. Estudou-se a distribuição das variáveis e calcularam-se as estatísticas descritivas. O teste t para amostras independentes foi usado para examinar diferenças de género, e as correlações não paramétricas de Spearman (devido à distribuição não normal das variáveis, exceto a autorregulação; teste de Kolmogorov-Smirnov, p < 0,05), foram usadas para analisar a associação da vivência do corpo com a idade, ano de estudos e experiência da pandemia.
Resultados
O Quadro 1 apresenta os resultados relativos às diferenças de género e às correlações entre as variáveis. O género feminino apresentou níveis significativamente mais elevados do que o masculino nas escalas de notar e consciência emocional, na insatisfação com a imagem corporal e nas preocupações com a covid-19. A idade associou-se significativa e positivamente ao IMC, p = 0,001, e negativamente às preocupações com a covid-19, p = 0,008. Estas apresentaram várias associações significativas com a vivência do corpo, positivas com o notar, p = 0,021, e a consciência emocional, p = 0,000, e negativa com o não se preocupar, p = 0,000. As alterações ao estilo de vida provocadas pela pandemia associaram-se significativa e positivamente ao notar, p = 0,010, à consciência emocional, p = 0,001, e à insatisfação com a imagem corporal, p = 0,005, bem como, negativamente, à regulação atencional, p = 0,025, e ao confiar, p = 0, 010.
Discussão
Este estudo teve como objetivos examinar a vivência do corpo de estudantes universitários e a sua associação com a experiência da pandemia da covid-19. Em linha com outros estudos, as raparigas revelaram notar mais as sensações somáticas e compreender mais a relação entre sensações corporais e estados emocionais (Grabauskaite et al., 2017) e ter uma maior insatisfação com a imagem corporal (Esnaola et al., 2010). Por outro lado, os resultados sugerem que IMC aumenta com a idade, o que pode relacionar-se com anos sucessivos de uma alimentação menos saudável dos estudantes universitários (Tapera et al., 2017).
Os resultados mostram que quanto mais foram sentidas preocupações com a pandemia e maior o impacto percebido da pandemia, mais foi reportada a consciência das sensações do corpo (neutras, confortáveis e desconfortáveis) e da sua relação com as emoções. Sugerem assim que a incerteza inerente à pandemia, poderá ter ocasionado uma hipervigilância das sensações corporais, nomeadamente das sensações potencialmente associadas aos sintomas da covid-19, e que os constrangimentos sentidos no dia-a-dia durante a pandemia (e.g., isolamento social, sobrecarga de trabalho académico) (Branquinho et al., 2020; Son et al., 2020) poderão ter levado os estudantes a focarem-se mais na sua experiência interna, resultando assim amplificadas as sensações corporais. Estas hipervigilância e amplificação das sensações corporais podem ser desadaptativas (Ginzburg et al., 2014) e têm sido associadas a problemas de saúde mental (e.g., ansiedade, depressão) e física (e.g., dor) (Murphy et al., 2017). A leitura inversa, de que uma maior consciência das sensações do corpo possa ter contribuído para amplificar as preocupações e o impacto percebido da pandemia, é também admissível (Ginzburg et al, 2014) e requer mais investigação.
Por outro lado, a perceção de um maior impacto da pandemia foi associada à diminuição da capacidade de manter e regular a atenção face às sensações corporais e de confiar no corpo como lugar seguro. Isto sugere que os estudantes poderão ter ficado assoberbados com as alterações no seu dia-a-dia impostas pela pandemia e, por isso, com dificuldades em gerir a atenção às suas sensações corporais (incluindo as relacionadas com emoções). Estas, em conjunto com as associações acima mencionadas, podem ter contribuído para o aumento de alterações afetivas (e.g., ansiedade, depressão) associadas à pandemia que se tem verificado (Maia & Dias, 2020). Todavia, é também possível que uma melhor regulação da atenção dada às sensações do corpo e uma maior confiança no corpo e nos seus sinais, possam ser afinal habilidades capazes de amenizar possíveis perceções catastrofistas dos impactos da pandemia (Elliot et al., 2022; Ginzburg et al, 2014).
A menor perceção das preocupações com a pandemia da covid-19 foi associada a menor preocupação com as sensações (desconforto ou dor) corporais, sugerindo que a habilidade para desvalorizar as sensações corporais pode ser importante para limitar as preocupações e a ansiedade relacionada com a pandemia (Elliot et al., 2022).
Por fim, quanto maior foi a perceção do impacto da pandemia, maior foi a insatisfação com a imagem corporal reportada pelos estudantes universitários. Estes resultados vão ao encontro de estudos recentes (e.g., Vall-Roqué et al., 2021) e podem sugerir que alterações no dia-a-dia, como a menor atividade física e a maior presença nas redes sociais (e.g., Jalal et al., 2021), podem ter contribuído para uma maior insatisfação com a imagem corporal.
Apesar das limitações deste estudo (e.g., natureza correlacional, amostra de conveniência), os resultados incentivam estudos longitudinais futuros com amostras de proveniência mais alargada, que permitam analisar a direcionalidade e a complexidade das relações encontradas entre experiência da pandemia e a vivência do corpo, bem como a relação desta com a saúde mental dos estudantes universitários.
Contribuição dos autores
Sara Pinto: Concetualização; Curadoria dos dados; Análise formal; Investigação; Metodologia; Redação do rascunho original; Redação - revisão e edição
Guida Veiga: Concetualização; Análise formal; Metodologia; Administração do projeto; Supervisão; Redação - revisão e edição
Maria João Carapeto: Concetualização; Curadoria dos dados; Análise formal; Metodologia; Administração do projeto; Supervisão; Redação - revisão e edição