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Psicologia, Saúde & Doenças

versão impressa ISSN 1645-0086

Psic., Saúde & Doenças vol.23 no.3 Lisboa dez. 2022  Epub 31-Dez-2022

https://doi.org/10.15309/22psd230308 

Artigos

Sentimentos vivenciados pelos profissionais com fadiga por compaixão na assistência em oncologia

Feelings experienced by professionals with compassion fatigue in oncology care

1 Universidade Estadual de Montes Claros, Programa de Pós-Graduação em Ciências da Saúde, Montes Claros, Brasil, renejuniorb4@gmail.com, profcarlasosilva@gmail.com

2 Programa de Residência Multiprofissional, Universidade Estadual de Montes Claros, Montes Claros, Minas Gerais, Brasil, laislopes200@hotmail.com

3 Universidade Estadual de Montes Claros, Departamento de enfermagem, Montes Claros, Brasil, ricardotavio25@gmail.com, diego.dias1508@gmail.com, henriqueabarbosa2007@gmail.com

4 Faculdades Unidas do Norte de Minas Gerais, Departamento de enfermagem, Montes Claros, Brasil, nathiellyneresnunes@gmail.com


Resumo

Este estudo buscou compreender os sentimentos vivenciados por profissionais de saúde acometidos pelo fenômeno fadiga por compaixão na assistência a pacientes com câncer em hospitais de referência localizados na região norte do estado de Minas Gerais, Brasil. Foi realizada pesquisa descritiva de cunho qualitativo com abordagem fenomenológica de análise Husserliana. A amostra intencional foi identificada por levantamento prévio da variável fadiga por compaixão nos profissionais de saúde dos setores oncológicos pela aplicação do instrumento Professional Quality of Life Scale (ProQOL5). Foram identificados 20 profissionais com o fenômeno que, em seguida, foram entrevistados com roteiro não estruturado para investigação do objeto deste estudo. A seguir, procedeu-se à análise do conteúdo das falas. Os resultados foram apresentados e discutidos a partir das seguintes categorias: Dor, Angústia e Compaixão; Apego e Empatia; Sofrimento e Mecanismos de Defesa; Ambivalência Afetiva e Satisfação e Ressignificação. São diversos os sentimentos mobilizados nos profissionais em suas ações de cuidado aos pacientes com câncer. Os sentimentos não exprimem apenas pontos negativos como determinantes da experiência do lidar e cuidar, há também sentimentos positivos capazes de produzir satisfação e ressignificação dos profissionais.

Palavras-Chave: Sentimentos; Fadiga por Compaixão; Trabalho; Hospital; Oncologia

Abstract

This study sought to understand the feelings experienced by health professionals affected by the phenomenon fatigue due to compassion in the care of cancer patients in reference hospitals located in the northern region of the state of Minas Gerais, Brazil. A descriptive qualitative research was conducted with phenomenological approach to Husserlian analysis. The intentional sample was identified by a previous survey of the variable compassion fatigue in health professionals in the cancer sectors by applying the Professional Quality of Life Scale (ProQOL5) instrument. Twenty professionals were identified with the phenomenon who were then interviewed with an unstructured script to investigate the object of this study. Next, the contents of the statements were analyzed. The results were presented and discussed from the following categories: Pain, Anguish and Compassion; Attachment and Empathy; Suffering and Defense Mechanisms; Affective Ambivalence and Satisfaction and Resignification. There are several feelings mobilized in professionals in their actions of care for cancer patients. Feelings not only express negative points as determinants of the experience of dealing and caring, there are also positive feelings capable of producing satisfaction and resignification of professionals.

Keywords: Feelings; Compassion Fatigue; Work; Hospital; Oncology

Os profissionais de saúde estão vulneráveis a sofrer esgotamento psíquico, em virtude do lidar constante com o cuidado de pacientes e vivenciarem cotidianamente situações de sofrimento, estando propensos a desenvolverem problemas relacionados ao trabalho. Neste sentido, destaca-se a importância de se considerar a Saúde do Trabalhador e Saúde Mental como áreas fundamentais para garantir a saúde, o bem-estar e a segurança dos profissionais (Torres et al., 2018).

O vínculo empático desenvolvido no cuidado pode gerar como consequência a compaixão. Por sua vez, a fadiga por compaixão é definida pela presença de comportamentos e emoções consequentes do conhecimento de situação traumática vivenciada por outro. Diz-se do estresse adquirido no ato de ajudar ou cuidar de uma pessoa em sofrimento ou traumatizada (Borges et al., 2019). O modelo de qualidade de vida profissional define a fadiga por compaixão como resultante de elevado burnout, secundário estresse traumático e a diminuída satisfação por compaixão (Stamm, 2010).

Assim, a fadiga por compaixão pode ser definida pelo esgotamento físico, psíquico e social, devido a associação de vários fatores, tais como o contínuo envolvimento dos profissionais acerca do sentimento de responsabilidade com seus pacientes e seu sofrimento, a dificuldade de aliviar essa responsabilidade, o estresse traumático secundário e a recordação das vivências traumáticas decorrentes do estresse. Torna-se inevitável, se a soma desses fatores vier acompanhada de adoecimento e mudanças nos hábitos diários, no status social ou nas responsabilidades pessoais e profissionais (Borges et al., 2019; Torres et al., 2018).

Diversos fatores favorecem o desenvolvimento da fadiga por compaixão, numa perspectiva individual, destaca-se a personalidade do indivíduo, a formação, a experiência pessoal no trabalho e a qualidade de vida, em relação, aos aspectos organizacionais, pode-se apontar, sobretudo, a especificidade da função desempenhada (Duarte & Pinto-Gouveia, 2017).

É essencial, descrever que a fadiga por compaixão não está relacionada à insatisfação com o trabalho e à frustração com o sistema de saúde por meio das condições de trabalho, extensiva carga horária e baixo retorno financeiro, por exemplo, assim, ela pode acometer médicos, enfermeiros, técnicos de enfermagem, assistentes sociais, psicólogos, fisioterapeutas, bombeiros, policiais ou qualquer profissional que tenha como parte do seu ofício lidar com a dor e o sofrimento alheio (Manuelito, 2016).

O contato com os pacientes com câncer desperta sofrimento em seus cuidadores, sendo eles profissionais e/ou familiares, devido ao câncer ser uma doença crônica degenerativa, que ainda é importante causa de mortalidade no Brasil e no mundo. Cuidar de um paciente com câncer gera uma série de sentimentos e elementos estressores que pode prejudicar a saúde mental dos profissionais e a qualidade da assistência prestada (Oliveira & Firmes, 2012).

Acredita-se que os frequentes contatos com situações traumáticas nos serviços de oncologia tornam os profissionais da saúde vulneráveis a interiorizarem a dor dos pacientes, contribuindo para o desenvolvimento da fadiga por compaixão. Desse modo, motivou-se compreender de forma singular, as vivências particulares de profissionais de saúde que trabalham em serviços referência em oncologia e que foram identificados previamente com o fenômeno fadiga por compaixão. Diante do exposto, o objetivo deste estudo foi compreender os sentimentos vivenciados por profissionais de saúde acometidos pelo fenômeno fadiga por compaixão na assistência a pacientes com câncer em hospitais de referência em oncologia localizados na região norte do estado de Minas Gerais, Brasil.

Método

Desenho de Estudo

O presente estudo insere-se no projeto “Fadiga por Compaixão em profissionais da Saúde”, do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Saúde, da Universidade Estadual de Montes Claros-Minas Gerais/Brasil, que visa a analisar os fatores associados à qualidade de vida no trabalho de trabalhadores da saúde que atuam em serviços hospitalares de atendimento a pacientes em situação crítica. Foi realizada pesquisa descritiva de cunho qualitativo com abordagem fenomenológica de análise Husserliana nos hospitais de referência em oncologia localizados na região norte do estado de Minas Gerais, Brasil. A amostra foi intencional e identificada a partir de um levantamento prévio da presença da variável fadiga por compaixão nos profissionais de saúde dos setores oncológicos.

Participantes

Após interpretação do instrumento Professional Quality of Life Scale - ProQOL5, identificou-se 20 profissionais de saúde com a presença do fenômeno fadiga por compaixão, destes, oito eram enfermeiros, nove técnicos de enfermagem, uma farmacêutica e duas auxiliares de farmácia. Os profissionais identificados prestavam assistência aos pacientes com câncer por período maior que seis meses e todos os profissionais prestavam cuidado direto aos pacientes com câncer, sendo a profissional farmacêutica e as auxiliares de farmácia responsáveis pelo fornecimento e qualidade dos fármacos, acompanhamento dos efeitos de cada medicação junto aos pacientes e a manipulação de quimioterápicos.

Material

Inicialmente aplicou-se o instrumento Professional Quality of Life Scale - ProQOL5, traduzido e adaptado aos profissionais para definir-se a amostra que seria alvo deste estudo qualitativo. O ProQOL5 avalia a fadiga por compaixão e é constituído por 30 itens e dividido em 3 subescalas, cada uma composta por 10 itens. Avaliam a satisfação por compaixão, burnout e estresse traumático secundário. Cada item contém uma afirmativa à qual se atribui uma pontuação numa escala de likert, que varia de 1 (Nunca) a 5 (Muito frequentemente). A fadiga por compaixão é resultante de elevados burnout e estresse traumático secundário. Optou-se por este instrumento, pois o mesmo tem sido usado em larga escala nos estudos para investigação de fadiga por compaixão em profissionais da saúde (Borges et al., 2019).

Para entrevista utilizou-se um roteiro não estruturado com a seguinte questão norteadora: “Quais são os sentimentos vivenciados ao lidar/cuidar de um paciente com diagnóstico de câncer?”.

Procedimento

A coleta de dados foi desenvolvida durante o ano de 2017 a abril de 2018. Após aceitação em participarem do estudo, os profissionais assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e, então, posteriormente realizaram-se as entrevistas. Os participantes foram codificados pelas iniciais das categorias profissionais (E: enfermeiro; T: técnico em enfermagem; F: farmacêutico e AF: auxiliar de farmácia) com a numeração arábica indicativa da sequência da realização das entrevistas.

As narrativas foram gravadas e também foram realizadas observações sobre os comportamentos e sentimentos dos profissionais que foram registradas e anotadas pelos pesquisadores em um diário de campo. Para a compreensão dos sentimentos vivenciados pelos profissionais identificados com o fenômeno fadiga por compaixão, foi utilizada a análise fenomenológica Husserliana, realizada em três fases: descrever, compreender e interpretar. Na primeira, foi realizada a transcrição das narrativas e sentimentos observados, leitura cuidadosa e destaque dos elementos em comum entre os participantes. Na segunda fase, foi realizada a reflexão sobre os elementos comuns, releitura cuidadosa e elaboração da síntese compreensiva das narrativas, culminando na construção de categorias temáticas. Na terceira fase, buscou-se, na literatura científica, conteúdos que permitiram a discussão com o que foi compreendido e foi realizada elaboração da síntese interpretativa.

O estudo obedeceu aos preceitos éticos do Conselho Nacional de Saúde, garantindo-se o sigilo e o anonimato dos profissionais, a coleta de dados foi executada após autorização dos hospitais coparticipantes e aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Estadual de Montes Claros - Unimontes com parecer consubstanciado nº. 1.687.445.

Resultados

A seleção para participação do estudo despertou surpresa aos profissionais por serem identificados com o fenômeno fadiga por compaixão. Demonstraram curiosidade sobre o fenômeno e interesse em participar do estudo. As entrevistas permitiram um envolvimento com os pesquisadores, favorecendo um momento de escuta em que puderam ser ouvidos e compreendidos, aos pesquisadores, foi possível acolher o misto de sentimentos vivenciados na oncologia.

Dessa forma, extraíram-se os principais sentimentos que foram agrupados, categorizados, organizados e posteriormente interpretados. Os sentimentos relatados possibilitaram um diálogo com a literatura que aborda as peculiaridades inerentes ao cuidado cotidiano na oncologia. O quadro 1 representa a influência metodológica no delineamento dos resultados.

Quadro 1 Esquema metodológico de delineamento das categorias temáticas 

Discussão

Dor, Angústia e Compaixão

O câncer destaca-se simbolicamente como um representante da morte na contemporaneidade. Suas significações produzidas culturalmente mantêm sua relação com o sofrimento, dor e morte. Numa perspectiva antropológica que considera a doença, sua construção e significados relacionados com as características de cada sociedade, o câncer metaforiza-se como o mal, atua de forma desordenada e destrutiva contra a vida, o corpo e sociedade (Silva, 2009).

Os profissionais que atuam na oncologia mantêm-se bastante mobilizados psiquicamente pelas condições que lidam cotidianamente em suas práticas clínicas. Além da possibilidade iminente da morte, lidam com as dores insuportáveis, as mutilações desfigurantes, a interferência na vida dos pacientes e em sua qualidade, o fantasma das metástases e de sua recorrência (Oliveira & Firmes, 2012).

Os sentimentos vividos por médicos, psicólogos, enfermeiros, assistentes sociais, equipe técnica e cuidadores da oncologia corroboram com as representações produzidas pelos pacientes e sociedade. Assim, neste tipo de assistência, existe uma série de condições que podem comprometer a saúde mental do profissional. Destaca-se o contato íntimo e o lidar com a dor; a perspectiva da morte; a intimidade corporal e emocional; e atuar em situações difíceis tais como pacientes queixosos, agressivos e hostis, autodestrutivos, reinvidicadores, cronicamente deprimidos. Na dimensão do cuidado, é importante refletir sobre a experiência de extrema angústia vivenciada pelos profissionais da oncologia em suas atividades de cuidado (Silva, 2009).

Neste estudo, os sentimentos de dor e angústia foram relatados pelos entrevistados, conforme destacado na fala a seguir:

“[...] é um paciente que vai morrer em decorrência da doença e que me traz angústia, me traz sofrimento, eu sofro de pensar, meu Deus, ele vai morrer dessa doença, do tamanho de que é a gravidade... e aí eu sofro ” (E5).

O contato com a dimensão da fragilidade humana e constantemente com o medo, desespero, pânico, agressividade e depressão dos pacientes são experiências comuns no cotidiano dos profissionais que vivenciam por consequência o sentimento de compaixão. A compaixão é uma peça fundamental na prática do cuidado ao paciente oncológico, sendo o fator que inspira o cuidador a uma assistência mais humanizada, privilegiando sempre o conforto e o bem-estar do paciente (Rosa & Couto, 2015). O sentimento de compaixão está presente nos profissionais entrevistados e expressos nas falas:

“[...] dó, realmente eu sinto muita dó (...), piedade, eu sinto todo um sentimento assim de compaixão por eles e por isso que eu procuro dar sempre carinho” (AF1).

“Você vê que ele quer tratar e ele tem fé que vai melhorar, e por outro lado dá uma dó, uma agonia em saber que não vai acontecer isso que ele está esperando, porque você vê no prontuário que aquele paciente é de prognóstico reservado, que não tem um prognóstico pra melhora” (F1).

“[...] igual esse rapaz que está aqui, poxa um rapaz cheio de vida com câncer, (...) como é isso? Imagina a gente vendo isso? (...) nossa gente eu fico morrendo de dó, cheio de vida, cheio de expectativas, de sonhos, tão novo” (T5).

Esse achado corrobora-se com os resultados encontrados em estudo realizado em hospital de combate ao câncer da Zona da Mata Mineira. Destacou-se as dificuldades dos profissionais e os abalos sofridos psicologicamente nos mesmos frente às vivências de dor, sofrimento e morte. Como consequência, os profissionais sentem involuntariamente compaixão pelos pacientes e em muitas situações o sentimento de fracasso e impotência (Salimena et al., 2013).

A tristeza, angústia e impotência frente ao paciente pode produzir sofrimento em toda a equipe de saúde que se questiona sobre o que poderia ser feito para mudar tal realidade do paciente que está sob seus cuidados. A prática clínica com pacientes que vivenciam a possibilidade da morte produz nos profissionais uma confrontação com a própria mortalidade, com suas limitações e impotência. Os sentimentos decorrentes desse confronto são expressos via compaixão, dor e angústia e podem ser decorrentes da identificação com o paciente (Silva, 2009). É importante destacar também a piedade e compaixão estabelecida pelos profissionais decorrentes das preocupações e envolvimento com os pacientes que também acarretam sofrimento e dor (Chaves et al, 2016).

Vários estudos têm reafirmado as consequências emocionais produzidas e resultantes do cuidado de pessoas em sofrimento, destacando a associação entre a fadiga por compaixão e o estresse no trabalho, principalmente quando este é duradouro e se reverte em burnout, e também quando as situações clínicas são psiquicamente desgastantes, podendo originar o estresse-pós-traumático primário (Borges et al., 2019).

A fadiga por compaixão decorre da dificuldade do profissional em lidar de forma saudável com os sentimentos negativos que surgem em consequência do contato com o sofrimento dos pacientes. Assim, as respostas somáticas e defensivas com relação ao trabalho se apresentam. Como o próprio nome define, a fadiga por compaixão tem como base a experiência da compaixão destacada como estado de preocupação com o bem-estar do paciente, e considera também o estresse e desconforto que esta situação alheia causa (Lago & Codo, 2013).

Neste sentido, a análise dos discursos dos profissionais possibilitou evidenciar a existência do imbricamento entre a presença do sentimento de compaixão em profissionais identificados com o fenômeno fadiga por compaixão.

Apego e Empatia

Estudos revelam que por estarem constantemente lidando com as fragilidades e vulnerabilidades humanas, os profissionais que atuam no cuidado ao paciente com câncer estão mais expostos a questionarem sobre seus limites, suas próprias fragilidades e vulnerabilidades. No contato com o sofrimento e experiências do outro, o seu eu se constrói de forma que lidar com o sofrimento alheio remete-se a lidar com a própria dor de existir e questionar sobre sua própria finitude (Silva, 2009).

O cuidado aos pacientes com câncer desperta diversos sentimentos que são evidentes nos profissionais de saúde, destacam-se a empatia e apego com os pacientes, visto que o convívio contínuo, a aproximação e intimidade estabelecida também com seus familiares fazem com que o profissional se torne suscetíveis a estas emoções (Silva et al., 2018).

Evidenciou-se que os participantes se esforçam para se manterem próximos aos pacientes, primordialmente nos momentos difíceis. Procuram dedicar seu cuidado numa perspectiva de ajudá-lo em suas necessidades, buscando implementar ações que visem promover a vida e aliviar seus sofrimentos. Os sentimentos de apego e empatia estão presentes nos discursos dos profissionais:

“[...] não tem jeito da gente não envolver, porque você na lida ali, no seu trabalho, cuidando do paciente, você se entrega e acaba que o paciente se abre com você, confia, começa a contar da vida dele, aí fala da família, dos filhos, do pai, aí cada um tem uma história. Eu acho que isso é o ponto, na hora que você sabe da história do paciente, aí você se envolve, muito, muito” (E3).

“[...] amanhã pode ser eu, pode ser minha filha, pode ser minha mãe, eu cuido de todo mundo como eu quero que alguém, se eu precisar, um dia cuide de mim” (T5).

“[...] então eu penso assim vai que eu preciso um dia, eu quero ser tratada desse jeito, então eu sempre me coloco no lugar deles, porque ninguém merece passar por isso. Ninguém.” (AF1).

[...]. Porque nós temos pacientes muito novas, de vinte oito, vinte e cinco anos, com câncer de mama... e que tem que retirar a mama, então quem está chegando, precisa desse apoio, precisa dessa ajuda, porque não é fácil, não é fácil mesmo, então eu me coloco no lugar de todos os pacientes que entram aqui, de todos” (E2).

Essa postura é justificada muitas vezes pela tristeza e sentimento de impotência diante daquele paciente que se encontra frágil. O envolvimento e apego com os pacientes são decorrentes da piedade perante o sofrimento do outro e pelas longas internações. O contato intenso produz a necessidade de manter cuidados especiais, sendo imprescindível perceber o outro, e isso só será possível envolvendo-se de forma empática, criando laços afetivos com os pacientes com câncer (Oliveira & Firmes, 2012). A intersubjetividade demonstrada na relação entre paciente e profissional possibilita ajuda e o convívio mútuo. Nesta perspectiva, a relação estabelecida com os pacientes de forma empática e apego são cercados por aspectos que envolvem as dimensões emocionais e psíquicas dos profissionais (Marques et al., 2013).

Os princípios da humanização valorizam a importância de se realizar o cuidado ampliado, não reduzindo-o a uma prática meramente técnica. Neste sentido, a afetividade manifestada, por exemplo, por pequenos gestos e carinho funciona como método para aprimorar o cuidado de forma complementar ao conhecimento técnico-científico (Menogócio et al., 2015). Conforme destacado por Boff (1999) o cuidado deve ser visto como algo além de um ato, sendo uma atitude que gera muitos outros atos. Assim, refere-se a algo inerente a raiz do ser humano, sua constituição e essência. Neste estudo, os profissionais reconheceram a presença de envolvimento emocional e também relataram reciprocidade do apego por parte dos pacientes. Corroborando com estes resultados, estudo realizado em hospital de referência regional oncológica localizado no oeste de Santa Catarina demonstrou que o compartilhamento de sentimentos e emoções gera nos profissionais o envolvimento empático com os pacientes e seus familiares (Kolhs et al., 2016).

Percebeu-se que a empatia ocorre de maneira singular com cada paciente, sendo o seu grau determinado pela afinidade do profissional com o cliente, idade, diagnóstico, prognóstico e tempo de internação. Além disso, quanto mais forte o vínculo, maior o sofrimento. Os profissionais ao experimentarem a possibilidade de poderem ser afetados pelas suas vivências, associados à preocupação empática que caracteriza sua relação intersubjetiva com os pacientes, se veem com fatores de risco para a manifestação do fenômeno fadiga por compaixão e, concomitantemente, tendo o seu bem-estar e saúde mental ameaçada (Pehlivan, 2018; Missouridou, 2017).

Sofrimento e Mecanismos de Defesa

O sofrimento recorrente vivenciado pelos profissionais que atuam na oncologia mobiliza a construção de saídas possíveis para alívio de suas emoções buscando minimizar os impactos em sua vida social. Nesta perspectiva são diversos os mecanismos de defesa produzidos. Os discursos, a seguir, retratam os diversos mecanismos de defesa produzidos pelos profissionais:

“[...] acho que foi mais estratégico mesmo, eu fui pensando comigo mesmo e eu vi que eu não tinha condições de trabalhar e absorver tudo, eu teria que focar no lado profissional e tentar separar as coisas, me doar ao máximo, enquanto no ambiente de trabalho, porém ao sair da porta para fora, eu esqueço que existe trabalho” (E1).

[...] porque na hora que eu saio daqui, na hora que eu estou em casa eu nem lembro que existe hospital, tem muito tempo que eu estou na área (...), se me perguntar o nome de um paciente aqui tem hora que dá trabalho pra mim lembrar ” (E6).

[...] quando eu chego triste eu já desabafo logo, eu já converso com a minha esposa, ela é técnica, aí eu passo pra ela e acabo aliviando o que eu estou sentindo no momento” (T2).

“[...] a gente tem que (...) liberar esse sentimento ruim que a gente carrega, porque tem aquela coisa, tem que ter uma válvula de escape, fazer algo que você gosta muito, pra poder sentir prazer e esquecer o que te faz até sofrer” (E3).

“[...] eu tenho que desfocar, acabou meu plantão, eu desligo, é como se fosse uma máquina, quando acaba, desliga” (T1).

O convívio com situações cotidianas que afetam o emocional dos profissionais acarretam-lhes considerável sofrimento pessoal. Isso torna o trabalho insalubre em sua dimensão psicológica. Os profissionais defendem-se de sua impotência e fragilidade de diversas formas. São vários os mecanismos buscados para alívio das tensões produzidas no trabalho (Silva, 2009)

Dentre os fatores de risco para o estresse ocupacional se destacam os ambientes que lidam com a morte e o sofrimento humano. Outros fatores podem potencializar essa tensão. Há investigações que destacam as práticas clínicas em oncologia como uma das mais estressantes. O cuidado a pacientes com câncer e com a terminalidade são descritos pela literatura como atividades extremamente estressantes e de grande exigência emocional (Faria & Maia, 2007). Ressalta-se que a ansiedade é um dos indicadores do estresse e que o sofrimento produzido por situações ocupacionais pode produzi-la. O estresse é percebido como o esgotamento pessoal que interfere na vida do profissional podendo-se tornar patológico à medida que se intensifica. O agravamento dessa condição pode gerar a síndrome de burnout que se caracteriza por intensa exaustão energética. Considera-se que os profissionais de saúde, em especial os de enfermagem que realizam cuidados diretos aos pacientes, estão suscetíveis a desenvolverem esta condição (Faria & Maia, 2007).

O desgaste emocional denominado de burnout é uma condição muito comum em profissionais que atuam na oncologia (Menogócio et al., 2015). Tais situações precipitam nesses profissionais o acionamento de mecanismos de defesa como estratégias para alívio das tensões, destacou-se neste estudo a negação e o recalque. Essas estratégias funcionam como armaduras contra o problema (Rosa & Couto, 2015).

Em relação aos mecanismos encontrados para lidar com os sentimentos e emoções no cuidado à pacientes com câncer destacam-se os mecanismos de defesa ou de ajustamento como a negação e a repressão ou recalque (Chaves et al., 2016). A repressão se define por um mecanismo que busca o esquecimento seletivo de situações muito desagradáveis para o sujeito que inclusive lhe causam ansiedade. Esta energia recalcada pode se deslocar para alguma ação que em si tende a aliviar a tensão e angústia do indivíduo. A negação por sua vez implica em desconsiderar uma realidade buscando idealizar outra realidade desejada (Chaves et al., 2016). Esses mecanismos são acionados como válvulas de escape utilizadas pelos profissionais para conseguir lidar com o sofrimento buscando transcender estas experiências quando principalmente estão fora dos hospitais (Kolhs et al., 2016) conforme evidenciado neste estudo.

Estudo realizado em ambulatório de quimioterapia de um hospital universitário de São Paulo demonstrou que frente aos desgastes emocionais sofridos pelos profissionais, os mesmos tentam desvincular a vida profissional da vida pessoal. Assim, buscam se desligar após a jornada de trabalho da realidade da mesma. O desabafo com familiares também é um recurso presente como estratégia de enfrentamento ao estresse vivido, como forma de readquirir equilíbrio psicológico (Salimena et al., 2013). Destaca-se que esta separação entre vida profissional e pessoal nem sempre é possível uma vez que o domínio dessa carga emocional adquirida com o trabalho não ocorre de forma consciente (Silva, 2018).

Ambivalência Afetiva e Satisfação

Na relação com o câncer, o profissional se vê invadido por sentimentos ambivalentes. Na ausência da perspectiva de cura, resta-lhes a difícil tarefa de cuidar de forma adequada do paciente. Na identificação das emoções presentes em profissionais da área, também é comum a presença de sentimentos gratificantes como ver processos de recuperação, o contato próximo com o paciente que se contradizem com o sofrimento, impotência e revolta pela morte (Silva, 2009). Essa ambivalência afetiva e a satisfação com o trabalho ficaram evidentes nos discursos:

“[...] eu me encontrei dentro do setor, hoje é algo que eu adoro fazer, trabalhar com paciente oncológico (...), dá satisfação de ver a resposta do paciente, de ver o reconhecimento do paciente pelo nosso trabalho, de ouvir do paciente o quanto ele está grato pelo o que a gente faz por ele [sorriso emocionado], então isso pra gente enquanto profissional apaga toda dificuldade que a gente tem no nosso dia-a-dia, isso é o que deixa a gente feliz” (E1).

“Eu gosto muito, eu gosto muito do que eu faço (...), porque se não gostar, você não teria condições de ficar aqui, é um setor que realmente você tem que gostar muito” (T3).

“[...] eu amo essa parte de oncologia, sou muito satisfeita nessa área da oncologia e poder ajudar o próximo, não tem nada melhor do que isso, ajudar o próximo, saber que aquela pessoa está precisando de você e você poder fazer alguma coisa... [sorriu] (E2).

“É complicado mexer com pessoas, principalmente com pessoas com essa doença, mas tem horas que a gente não fica tão estressado porque têm os pacientes que gratificam a gente [sorrindo], que elogia, que gosta do trabalho, que você vê que está satisfeito, então isso é bom, tinha que ter isso pra você aguentar (...), porque se tivesse só o ruim, a gente desistiria dessa profissão” (T9).

“[chorando] não me vejo em outro lugar na minha vida (...). Então é para mim, realmente assim, um presente de Deus mesmo, com toda dificuldade, mas é um presente de Deus para minha vida. Eu não me vejo em outro lugar, fazendo outra coisa, lidando com outro paciente, não me vejo” (E5).

Conforme verificado nos discursos dos profissionais, cuidar de um paciente com câncer é uma experiência paradoxal que desperta sentimentos que vão desde sofrimento até satisfação. Além dos elementos estressores envolvidos no cuidado oncológico, existem também situações gratificantes, podendo desenvolver-se assim, a satisfação por compaixão (Salimena et al., 2013).

Pode estar presente ao mesmo tempo a piedade, o amor, a compaixão, a raiva, culpa e ansiedade e até mesmo mágoa dos pacientes. No entanto, percebeu-se neste estudo que é notório a realização e sentimento de satisfação de alguns profissionais por atuarem na oncologia. Neste sentido, mesmo que os profissionais, muitas vezes, se afetem de forma negativa no cuidado ao paciente com câncer, esta realidade se contrasta com a repercussão positiva da prática na dimensão pessoal explicitada pela satisfação com seu trabalho (Silva, 2009).

No entanto, a fadiga por compaixão deve ser vista como um fenômeno multidimensional abrangendo fadiga por compaixão, burnout e satisfação por compaixão. A satisfação por compaixão, por sua vez, refere-se ao prazer decorrente do sentir-se capaz de desempenhar bem seu trabalho e ajudar os pacientes que estão sofrendo. Estando diminuída é um dos fatores de risco para o desenvolvimento da fadiga por compaixão (Lago & Codo, 2013).

A realidade encontrada neste estudo entra em concordância com a demonstrada em pesquisa realizada em serviço de oncologia de um hospital na região norte de Portugal e em outro estudo feito em unidade de internação oncológica de um hospital geral de São Paulo que evidenciou predominante satisfação dos profissionais em suas ações de cuidado na oncologia (Bordignon et al., 2015). Nota-se que, apesar das dificuldades distintivas do setor oncológico, os pontos negativos não são os únicos determinantes da experiência de lidar/cuidar de pacientes com câncer. Também existem pontos e sentimentos positivos capazes de produzir satisfação dos profissionais por estas experiências.

Ressignificação

A oncologia revela-se como uma área que possibilita um crescimento tanto pessoal quanto profissional, pois ao acompanharem a luta dos pacientes contra o câncer, muitos profissionais passam por uma transformação psicológica positiva, realizando profundas reflexões e revisão de valores (Bordignon et al., 2015; Melo et al., 2018). Explicitado nos discursos dos profissionais:

“Mudei muito, eu mudei muito, a gente aprende muito com a dificuldade do outro, aprende a ser mais humilde, aprende a ser mais grato, aprende a valorizar mais o próximo, aprende a valorizar acima de tudo a vida em especial” (T8).

“[...] a gente tenta buscar uma relação mais saudável fora daqui (...). Eu acabo dando mais valor, porque eu olho de forma diferente, eu falo nossa eu tenho que melhorar nisso aqui, eu tenho que melhorar minha relação aqui, ou com meu esposo ou com minha mãe, eu tenho que melhorar” (E5).

“[...] a gente entra no serviço de oncologia com uma visão, com uma mentalidade, e você sai com outra totalmente diferente, você se modifica enquanto pessoa e enquanto profissional” (E1).

“[...] isso aqui é uma lição, você aprende a dar valor nas mínimas coisas na sua vida. Eu vou te falar por experiência minha, eu era técnica de enfermagem e eu não dava valor nas pessoas, nas pequenas coisas. Quem vem pra cá aprende, aprende a ser humilde, aprende a dar valor, isso aqui é uma lição, é uma escola, isso aqui é a melhor escola que você pode passar” (E2).

“[...] essa dificuldade que eles vivem nos ensina muita coisa, realmente dar valor nas pequenas coisas, porque às vezes com a rotina ou com as condições de trabalho (...), a vida passa despercebida, às vezes um bom dia, ser mais educado, tratar as pessoas melhor, conseguir tempo para fazer bem ao próximo” (E7).

Os sentimentos relatados no cuidado de pacientes com câncer podem ultrapassar a experiência da angústia podendo produzir a condição de ressignificação dessa experiência. Portanto, é importante abrir espaços para discussões sobre o tema e oferecer aporte psicológico à equipe de saúde mediante suas experiências emocionais e psicológicas que envolvem o cuidado em oncologia (Marques et al., 2013).

Conforme evidenciado neste estudo e de acordo com um estudo realizado em um setor de quimioterapia de um Hospital Universitário de São Paulo, testemunhar o sofrimento alheio e conviver constantemente com a morte torna os profissionais mais humanos e atentos às pequenas coisas que a vida oferece e, em contrapartida, menos tolerantes ao se depararem com pessoas reclamando por coisas banais (Oliveira & Cury, 2016). Compreende-se que a ressignificação de valores é tratada pelos profissionais como um dos elementos gratificantes de trabalhar na oncologia, pois o convívio com cada paciente e sua história trazem consigo novos ensinamentos para a vida.

São perceptíveis os diversos sentimentos mobilizados pelos profissionais em suas ações de cuidado aos pacientes com câncer. Uma peripécia que inicialmente é capaz de produzir dor, angústia e compaixão impactam os profissionais desencadeando apego e empatia. O sofrimento é inevitável e se dialetiza com a busca de saídas para alívio do mal-estar por meio de mecanismos de defesa. Há nessa experiência, portanto, um conjunto de sentimentos ambivalentes. O paradoxo enlaçado entre sofrimento e satisfação está presente. Como resultado é possível que as experiências de sofrimento produzam ressignificação com crescimento pessoal aos profissionais.

A dificuldade e sofrimento produzidos na arte de cuidar de pacientes com câncer encarnam as representações que essa doença tem para a sociedade contemporânea. No entanto, os sentimentos vivenciados e relatados neste estudo não exprimem apenas pontos negativos como determinantes da experiência de lidar/cuidar de pacientes com câncer. Também existem pontos e sentimentos positivos capazes de produzir satisfação aos profissionais por estas experiências.

Neste sentido, é preciso escutar e explorar as experiências subjetivas dos profissionais numa perspectiva ampliada e dessa forma conseguir ultrapassar algumas rotulações patologizantes que possam ser expostas aos mesmos, desconsiderando seus processos subjetivos. Acredita-se que esta pesquisa possa favorecer a adoção de ações estratégicas nas áreas de Saúde do Trabalhador e Saúde Mental que busquem melhorar a qualidade de vida dos profissionais de saúde na área de oncologia e como consequência, contribuir para a realização de um cuidado holístico.

Contribuição dos autores

Rene Silva Junior: Conceptualização, Curadoria dos dados, Análise formal, Metodologia, Administração do projeto, Redação do rascunho original, Redação - revisão e edição.

Lais Amaral: Investigação, Administração do projeto, Redação do rascunho original, Redação - revisão e edição.

Ricardo Gusmão: Curadoria dos dados, Análise formal, Metodologia, Redação do rascunho original, Redação - revisão e edição.

Diego Araújo: Redação do rascunho original, Redação - revisão e edição.

Henrique Barbosa: Administração do projeto, Redação do rascunho original, Redação - revisão e edição.

Carla Silva: Administração do projeto, Redação do rascunho original, Redação - revisão e edição.

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Recebido: 02 de Fevereiro de 2020; Aceito: 22 de Novembro de 2022

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