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Psicologia, Saúde & Doenças

versão impressa ISSN 1645-0086

Psic., Saúde & Doenças vol.23 no.3 Lisboa dez. 2022  Epub 31-Dez-2022

https://doi.org/10.15309/22psd230312 

Artigos

Adaptações familiares na adoção de crianças com adoecimento crônico

Family adaptations in the adoption of children with chronic illness

1 Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM), Uberaba, MG, Brasil, camilaappborges@gmail.com

2 Departamento de Enfermagem Psiquiátrica e Ciências Humanas da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (EERP-USP), Ribeirão Preto, SP, Brasil, fabio.scorsolini@usp.com.br


Resumo

A adoção de uma criança com adoecimento crônico modifica inequivocamente a rotina familiar, sendo necessário não apenas compreender a transição para a parentalidade como também os desafios associados a esse tipo de adoecimento nessa etapa do desenvolvimento da criança e dessa nova família. Este estudo de caso coletivo teve por objetivo compreender os principais aspectos dificultadores, facilitadores e adaptativos vivenciados por pais com filhos por adoção com algum quadro de adoecimento crônico. Foram entrevistadas quatro famílias que adotaram crianças com adoecimento crônico em uma cidade do interior do Estado de Minas Gerais, Brasil. As entrevistas foram interpretadas a partir da Psicologia Positiva. Os pais apontaram como aspectos dificultadores a falta de informação por parte de instituições e profissionais de saúde, mitos acerca da adoção, falta de conhecimento e dificuldades financeiras. As facilidades foram os vínculos e a construção da parentalidade. As principais estratégias de enfrentamento foram relacionadas à família nuclear, principalmente quanto ao cuidado para prevenção de situações de crises e agravos à saúde. Esse tipo de adoção pode ser favorecido não apenas a partir de características pessoais dos pais, mas fundamentalmente pelo fortalecimento de instituições responsáveis por acolher, cuidar e orientar, adensando as redes de apoio disponíveis.

Palavras-Chave: Adoção; Doença crônica; Enfrentamento; Adaptação

Abstract

The adoption of a child with chronic illness unmistakably changes the family routine, making it necessary not only to understand the transition to parenting but also the challenges associated with chronic illness at this stage of the child's and this new family's development. This collective case study aimed to understand the main difficulties, facilitating and adaptive aspects experienced by parents with adoptive children that suffer from any chronic illness. Four families with adoptive children suffering from chronic illness from a city in the interior of State of Minas Gerais, Brazil, were interviewed. The interviews were interpreted through Positive Psychology. The parents pointed the lack of information on the part of health institutions and professionals, myths about adoption, lack of knowledge, and financial difficulties as difficulties. The facilitators were the bonds and the building of parenthood. The main coping strategies were related to the core family, especially regarding care for preventing crisis situations and health problems. This type of adoption can be favored not only by the personal characteristics of the parents, but fundamentally by the strengthening of institutions responsible for receiving, caring and guiding; broadening the available support networks.

Keywords: Adoption; Chronic illness; Confrontation; Adaptation

A filiação por adoção é um tema que vem sendo bastante debatido no cenário brasileiro. Nesse cenário, emergem estudos que debruçam sobre a construção da parentalidade por adoção, o desenvolvimento infantil do adotando, a organização de uma nova família, os aspectos legais relacionados a essa filiação, bem como sobre algumas características específicas que atravessam esses fenômenos, tais como a condição de adoecimento da criança ao ser adotada (Borges & Scorsolini-Comin, 2020; Scorsolini-Comin, 2015).

A Lei nº 12.210/2009 (Brasil, 2009) e a Lei nº 13.509/2017 (Brasil, 2017) reforçam a importância das adoções necessárias (adoção de crianças maiores, com necessidades especiais, com algum tipo de adoecimento, inter-racial, de irmãos), embora suas investigações ainda sejam incipientes na literatura científica (Borges & Scorsolini-Comin, 2020). Segundo Ebrahim (2001), tem-se propagado na sociedade a “cultura da adoção”, que objetiva ressaltar o que o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) estabelece, ou seja, a finalidade de oferecer um lar para as crianças que não o têm, sem rótulos quanto a condição de saúde, cor, sexo e idade. A Lei nº 12.955/2014 (Brasil, 2014a) propôs uma alteração no parágrafo 9º do artigo 47 do ECA, estabelecendo prioridade nos processos de adoção quando tratar-se de criança com necessidades especiais, ou com algum quadro de adoecimento crônico.

Em relação a esse tipo de adoecimento, a Portaria nº 483/2014 (Brasil, 2014b) da Rede de Atenção à Saúde das pessoas com doenças crônicas, no âmbito do Sistema Único de Saúde brasileiro, o define um quadro de início gradual, tempo indeterminado, sem causa específica, mas sim vários fatores. O tratamento envolve mudança no estilo de vida, cuidado contínuo e proporciona qualidade de vida e não a cura. Esse tipo de adoecimento na infância pode ocasionar significativas transformações na dinâmica e na vida familiar, devido às particularidades da doença que são refletidas na família, pode levar a um processo de desajuste, modificar a estrutura do sistema, interferindo nas relações e papéis estabelecidos anteriormente. Desde a descoberta do adoecimento até o tratamento cotidiano, as mudanças são configuradas em torno do cuidado, necessitando que o meio se adapte e estabeleça uma nova identidade para cada integrante, de forma que os membros precisem adaptar-se à condição do adoecimento e aos tratamentos necessários, bem como à rotina de cuidados em saúde (Nóbrega et al., 2012; Pedroso, 2014; Silva & Cavalcante, 2015a).

No caso da família por adoção, quando um casal decide adotar uma criança que apresenta alguma característica especial, compreende que a mesma não irá apresentar um processo de desenvolvimento típico e pode necessitar de cuidados específicos, envolvendo, por exemplo, uma rede de apoio para além do núcleo familiar (Borges et al., 2020). Pressupondo que esses casais valorizam a solidariedade e a generosidade, podem buscar na adoção uma oportunidade de oferecer à criança ou ao adolescente a oportunidade de conviver em família, respeitando a singularidade e as características desse futuro filho (Silva & Cavalcante, 2015b).

Práticas de cuidado prestadas a crianças ou adolescente com doença crônica são complexas, voltadas para à promoção do bem-estar e necessitam de planejamento, podem gerar acúmulo de demandas sobre a família, exigindo reestruturação dos papéis para não sobrecarregar algum membro. Diante desta contextualização, percebe-se o quão necessário é estabelecer algumas estratégias de cuidado para auxiliar tanto os pretendentes como a criança/adolescente nas atividades diárias. Dessa maneira, conciliar trabalho, estudo, cuidados, divisão de tarefas, relacionamento entre irmãos, desenvolver a criança ou o adolescente no seu próprio cuidado, entre outros, terá como norte a busca por qualidade de vida para todos os envolvidos (Araújo et al., 2013; Borges et al., 2020; Merçon-Vargas et al., 2015; Salvador et al., 2015).

Os estudos que evolvem adoção referem-se, em sua maioria, à construção da parentalidade, aos vínculos, às motivações para a filiação adotiva, entre outros (Merçon-Vargas et al., 2015). Estudos que visem a compreender a adoção de crianças/adolescentes com doença crônica podem contribuir para a reflexão de que esse tipo de adoção é possível, demonstrando as facilidades e dificuldades desse processo, bem como as estratégias de cuidado e de enfrentamento adotadas (Borges & Scorsolini-Comin, 2020). O cotidiano dessas famílias pode apresentar peculiaridades significativas. No entanto, os integrantes se reestruturam para atender a essas necessidades do sistema familiar. A partir do panorama apresentado, este estudo teve por objetivo compreender os principais aspectos dificultadores, facilitadores e adaptativos vivenciados por pais com filhos por adoção com algum quadro de adoecimento crônico.

Método

Participantes

A amostra de conveniência foi composta por quatro famílias que adotaram crianças/adolescentes com algum quadro de doença crônica, sendo quatro mães e três pais de uma cidade do interior do Estado de Minas Gerais, Brasil (cidade de médio porte, cerca de 300 mil habitantes).

Material

Foi utilizado um roteiro de entrevista desenvolvido pelos autores do estudo. As perguntas eram referentes às características sociodemográficas, processo de adoção, principais motivações para adotar criança/adolescente com algum quadro de adoecimento crônico, repercussão na família, processo de adaptação, principais dificuldades/facilidades, recursos e estratégias de adaptação desenvolvidos, entre outros aspectos.

Procedimento

Seguindo a legislação ética brasileira, após a aprovação do projeto no Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Triângulo Mineiro (Protocolo nº 67768417.0.0000.5154), as quatro famílias foram contatadas. O recrutamento ocorreu através da indicação da coordenadora do Grupo de Apoio à Adoção da cidade pesquisada. Inicialmente, foi realizado contato telefônico com as famílias. No encontro com os participantes, foram explicados todos os termos do trabalho e, após o preenchimento do Termo de Consentimento Livre Esclarecido, deu-se início à coleta, com aplicação do roteiro de entrevista individual. A coleta foi realizada nas casas dos participantes ou no ambiente de trabalho dos mesmos, lugares reservados, preservando o sigilo. Os participantes foram identificados com nomes fictícios. As entrevistas foram audiogravadas e posteriormente transcritas na íntegra e literalmente, compondo o corpus analítico.

Análise de dados

O corpus foi submetido à análise temático-reflexiva de Braun e Clarke (2019) e interpretado a partir dos estudos sobre a adoção e tendo como norte o referencial teórico da Psicologia Positiva. A Psicologia Positiva é uma abordagem científica com foco nas qualidades positivas humanas relacionadas ao bem-estar (Scorsolini-Comin et al., 2013). Na sua análise é necessário considerar três eixos: emoção positiva, qualidades positivas (forças, virtudes e habilidades) e as instituições positivas (família, democracia, liberdade), aspectos estes intimamente associados (Seligman, 2011).

Resultados

Caracterização dos participantes

Os participantes estão caracterizados no Quadro 1. A média de idade foi de 43 anos de idade, a maioria com ensino superior. A renda das famílias variou de dois até dez salários mínimos. Todos os participantes declararam possuir crença em alguma religião, com destaque para o Catolicismo e o Espiritismo. Dois casais (Caso 1 e o 4) apresentaram crenças diferentes entre si. Em relação ao tipo de filiação, além do filho por adoção, algumas famílias (Caso 2 e 4) também possuíam filhos consanguíneos, sendo esses de um dos cônjuges, de uma relação anterior à atual; dessa forma, os filhos consanguíneos eram mais velhos que o filho por adoção. A idade com que a criança foi adotada se apresentou de forma variável, de quatro meses a quatro anos, caracterizando-se como adoções de bebês (Caso 1 e o 4) e também de adoções de crianças maiores (Caso 2 e 3).

Aspectos dificultadores em famílias com filhos com adoecimento crônico

Em termos das dificuldades, os pais apontaram a falta de informação de instituições e profissionais quanto ao assunto, os mitos da adoção (atitude altruísta e o “roubo” da criança), a aceitação quanto à filiação pela adoção, vinculação, não aceitação familiar e a atuação da Vara da Infância e Juventude. A escola e o hospital foram dois ambientes destacados pelos pais em termos da falta de preparo quanto às questões da adoção, “Foi a questão da escola com o nome social. O nome a gente também teve dificuldade. A gente sempre tinha que ficar pedindo, sabe? Para poder trocar o nome dele” (Martha).

Outra questão apontada sobre o ambiente escolar foi a falta de preparo tanto dos profissionais como do ensino, em que a discussão sobre as novas configurações familiares estão sendo inseridas aos poucos e, com isso, algumas situações ainda não foram modificadas, ao considerar as famílias por adoção: “As escolas não são preparadas para fazer esse acolhimento, de uma nova família (...) eu passei várias vezes, por todos esses anos que tenho o Clark, de pedir foto de mãe grávida, dia das mães, a apostila, a formação da família... Não se fala em adoção, sabe?” (Martha).

O ambiente hospitalar também foi evidenciado pela falta de preparo dos profissionais ao julgarem o casal por ter adotado o(a) filho(a), já que os pais conheciam o histórico médico da criança. Em um dos relatos, nota-se extremo despreparo dos profissionais de saúde durante um atendimento, alegando que o tratamento não era possível: “‘Devolve! Esse era o que estava no Hospital? Eles entregaram ele para morrer em casa’. O Barney levantou pegou as coisas e saiu (...) Ele (médico) encontrou minha sogra, (...) aí ele (médico) falou assim ‘A senhora acredita em milagres? Se a senhora acreditar’” (Betty).

Outra dificuldade apontada foi a atuação da Vara da Infância, a falta de acompanhamento dos técnicos após a adoção, atualmente estabelecido em lei, mas que esses casais não vivenciaram, ainda mais pelas características da adoção. Pelos relatos, há queixa desses pais pela falta desse apoio da Vara: “Eu não sei se isso acontece com quem não tem problema, se depois que adota, se tem algum, assistente social começa a monitorar mais ou menos (...) Isso com o Lock não teve, nunca veio depois pra ver, nunca veio saber” (Gaia).

Quadro 1 Caracterização dos participantes (N = 7). 

Nota: 1Martha tinha uma filha consanguínea de um relacionamento anterior a Jonathan; 2 Gaia e Odin tinham filhos consanguíneos de casamentos anteriores, Gaia com dois filhos e Odin com um.

Quanto às dificuldades presentes em relação ao adoecimento crônico, essas famílias destacaram o medo de perder o filho, cuidado integral pela mãe, parte financeira, alimentação, falta de conhecimento em relação à doença, e também o preconceito da sociedade. O relato de Martha demonstra essa sensação, medo de perder o filho, buscar todas as condições possíveis, mas mesmo assim, conviver com recaídas: “Você tem medo de perder, né? (...) Eu nunca tinha tido um filho que internasse, né? (...) Aí eu falei ‘Meu Deus, vou perder!”Aí eu fiquei com muito medo, aí eu falava: ‘Meu Deus pra que que você pôs ele na minha vida, para tirar, né?”. As famílias destacaram o aspecto financeiro como principal fator de risco: “O financeiro muda totalmente, por que é muito caro cuidar de uma pessoa com deficiência quando você quer dar tudo que ela necessita” (Jenny).

A alimentação também é uma área que pode ser alterada em função das necessidades da criança. Em alguns casos, novos padrões alimentares foram incorporados à dieta cotidiana da família (Fráguas et al., 2008). A fala de Martha aponta essa mudança do cardápio da família, “A questão alimentar também, que tinha que ter os cuidados dele, né? Que não era tudo que ele podia comer, sabe? Questão de fazer mais comida em casa, comida mais natural, mais saudável, essas questões”. Neste caso, todos adaptaram-se à realidade de Clark, os alimentos que ele não podia comer não eram consumidos em casa, sendo adotados novos hábitos alimentares para o grupo familiar.

A falta de conhecimento foi apontada por Gaia e Odin como determinante para o cuidado. Esse casal, ao ser comparado com os outros participantes, não tinha formação relacionada ao cuidado com o filho. Não ter conhecimento sobre o adoecimento do filho foi trazido com angústia pelo casal: “Foi muita luta, muita batalha, por que eu não tinha nenhum conhecimento de criança especial. Não sabia nada o que eu iria fazer, o Lock não mamava.” (Gaia).

Aspectos protetivos na adoção de crianças com adoecimento crônico

Amor e aceitação familiar foram fatores que fortificaram essas famílias, sobretudo ao serem apoiadas na decisão que tomaram: “A facilidade eu acho que tive muito apoio da minha família, muito amor envolvido, vínculos formados com facilidades” (Betty). O vínculo estabelecido entre família nuclear e família extensa também foi apresentado como significativo. Através do vínculo, a união também passa a ser fator de sintonia e com isso de melhor adaptação para o casal e para os outros membros: “A união em si, a família todinha em si mudo, ficou mais unida ainda né?!” (Odin). Outro aspecto apontado foi em relação à paternidade, em que a adoção proporcionou a oportunidade de aprender a ser pai, desconstruindo dúvidas e medos presentes no imaginário social, como destacado na fala de Jonathan: “Eu brinco com ela (enteada) que o Clark mudou nossa vida e, inclusive, me tornou melhor pai dela”.

Outras facilidades apontadas pela maioria das famílias foram o conhecimento, o cuidado relacionado com a experiência do dia a dia e também pela experiência profissional em relação à doença. Três mães tinham experiência e algumas atuavam na área de saúde, o que auxiliou em muitos momentos de crise do(a) filho(a). Se não sabiam qual procedimento realizar, buscavam informação. A fala de Martha ilustra essa situação: “Como eu era da área da saúde eu aprendi a fazer muita coisa, sabe? (...) eu fazia todos os procedimentos que às vezes melhorava e tinha um atendimento mais rápido, sabe?”.

Estratégias de cuidado e enfrentamento: ações cotidianas em busca da adaptação do sistema familiar

Os participantes elencaram estratégias que auxiliam no cuidado, desde questões relacionadas à residência em que moram até características pessoais importantes que facilitam no cuidado prestado. Podemos destacar a divisão de tarefas como principal estratégia das famílias, em que cada integrante assume uma função das atividades cotidianas da casa e, com isso, previne a sobrecarga do cuidador principal. De acordo com a fala de Barney, a divisão de tarefas era algo presente na rotina de sua família: “A divisão de tarefas sempre tem. Ela com essa mudança ai do trabalho, eu ia trabalhar e no final do dia ou na hora do almoço a gente dava banho, trocava ele. A noite (...) eu que vigio a parte da noite (...)”.

Apesar de algumas famílias serem compostas por outros integrantes, como filhos consanguíneos, o cuidado principal era revezado apenas pelos pais. Os outros filhos apenas auxiliavam em alguns momentos como, por exemplo, ficar com a criança enquanto a mãe tomava um banho, situações pontuais e nos momentos que o outro cônjuge não estava em casa. Outro momento em que os pais se revezavam no cuidado era no período noturno, principalmente quando o(a) filho(a) estava em um período de crise em decorrência da doença: “A gente fazia tudo, tanto eu como ele (pai) a gente fazia tudo. As vezes a noite, assim, revezava, um dormia e o outro ficava acordado, sabe?” (Martha).

Uma das estratégias características desse ambiente é quanto à adaptação do lar, tanto em aspectos estruturais como a questão de higiene e da alimentação (Marcon et al., 2009; Salvador et al., 2015). Quanto à estrutura, os participantes desse estudo destacaram as adaptações na residência: “É... adaptação, né? Adaptação... cadeira... cadeira de banho, uma cama com mais segurança, né? Que a gente põe uma gradinha. Ele é... ele é... na casa teve que aumentar tudo, as portas” (Gaia). Dessa forma, a adaptação da área física da casa faz com que se tenha mais segurança e, com isso, a facilidade na prestação do cuidado. Outra modificação é em relação à higiene, em que manter a casa limpa foi apontado por todas as pessoas, bem como a retirada de objetos que acumulavam poeira, pois a presença destes poderia desencadear outros tipos de doença: “A gente acaba tendo um cuidado pra evitar os riscos de chegar numa pneumonia de novo” (Jonathan).

A alimentação também foi apontada como recurso essencial para manutenção da saúde. As famílias procuraram se adequar à dieta que a criança necessitava. Importante destacar que, além da condição do adoecimento, as crianças que passam por instituições de acolhimento e são colocadas para a adoção podem ter sofrido privações significativas. Uma delas é quanto à alimentação, pois o índice de desnutrição presente nessas crianças é alto, e quando associado à doença crônica, a condição de saúde pode se agravar.

Além dessas estratégias do ambiente domiciliar, aspectos pessoais também foram citados pelos participantes como recursos essenciais para prestação do melhor cuidado, como esperança, amor e conhecimento. A partir das falas dos participantes foi possível identificar a esperança relacionada à busca pela a cura da doença, “A questão dele sempre fazer os exames certinho, sempre buscando a cura, porque querendo ou não a gente sempre tinha isso em mente que ele ia se curar, se ele não curasse também a gente tava buscando informações também” (Barney).

O amor também foi apontado como recurso fundamental no processo de construção do vínculo com o(a) filho(a), alguns de forma imediata, outros com a necessidade de um maior tempo. Outro aspecto destacado foi o conhecimento, tanto relacionado à profissão na área da saúde como em relação às experiências anteriores. O conhecimento fez com que essas famílias soubessem prover cuidados cotidianos a esses filhos, como, por exemplo, no momento de dar banho, a forma de dar a alimentação, a quais profissionais recorrer, entre outros. A fala de Jenny ilustra essa situação: “Embora a gente já tivesse um conhecimento de lidar com as pessoas aqui, eu já tinha uma mocinha também, a Laura, que ela já ia pra minha casa várias vezes que tem basicamente a mesma deficiência (...), então eu já sabia fazer isso tudo”.

Discussão

O presente estudo buscou compreender os aspectos dificultadores, facilitadores e adaptativos relatados por pais que adotaram crianças com adoecimento crônico. Na Psicologia Positiva pode-se considerar as dificuldades como sendo um fator de risco, abarcando eventos negativos que podem aumentar a probabilidade de problemas físicos, psicológicos e sociais. As facilidades funcionam como um fator de proteção que se refere às influências que transformam ou melhoram as respostas pessoais (Calvetti et al., 2007). No caso da presente pesquisa, essas atribuições (dificuldades e facilidades) podem ser analisadas tanto em relação à adoção quanto ao quadro de adoecimento crônico.

A partir dos resultados apresentados, a Escola, o Judiciário e o Hospital foram apontados como instituições significativas que essas famílias entraram em contato durante esse processo de adoção. De acordo com Seligman (2011) e Paludo e Koller (2007), as Instituições Positivas são ambientes que propiciam o florescimento das pessoas, permitem o desenvolvimento pleno, saudável e positivo dos aspectos psicológicos e sociais. Essas instituições poderiam ser positivas para o desenvolvimento dessas crianças e suas famílias. No entanto, de acordo com as falas dos participantes, elas acabaram reforçando o estigma e o preconceito, dificultando tanto o acesso a esses equipamentos quanto a um desenvolvimento adequado.

No âmbito escolar, a falta de capacitação dos professores implica que esses não pensem nas diversas possibilidades de ser família na atualidade e, com isso, acabam não abrindo possibilidades do ensino para acolher essas famílias, o que reforça atitudes de preconceito e exclusão (Veloso et al., 2016; Zamora, 2015). É de suma importância que esses professores possam passar por capacitações frequentes, além de que os projetos políticos pedagógicos dessas escolas abarquem assuntos referentes à adoção, a fim de que tenham conhecimento e sensibilidade na atuação com essas crianças, adolescentes e seus pais (consanguíneos ou não).

Pode-se observar que os profissionais de saúde também não se encontram preparados para realizar esse tipo de trabalho de forma adequada, principalmente quando envolve assuntos delicados, como adoção e adoecimento crônico. Com isso, pela falta de capacitação, esses profissionais podem reafirmar preconceitos enraizados na sociedade ao julgarem as famílias pela opção de filiação, bem como ao não acolherem a demanda da criança, desacreditando na capacidade da mesma em superar o quadro da doença, de ser tratada e cuidada. Dessa forma, apresentam dificuldade em abordar o diagnóstico e as orientações para a família em relação ao cuidado (Fonseca et al., 2009).

Entendemos que as dificuldades apontadas em relação ao Judiciário, principalmente no que se refere à falta de apoio da Vara da Infância e da Juventude, pode ocorrer por esses profissionais serem responsáveis por diversas áreas na sua atuação no campo jurídico, sendo a adoção apenas uma parcela das suas atividades (Hueb & Cecílio, 2015; Scorsolini-Comin, 2015). Não se trata, no entanto, de apenas apontar as possíveis falhas dessas instituições em relação ao manejo de famílias constituídas por processos de adoção ou do contexto de cuidado e educação de crianças com adoecimento crônico. É importante que tais instituições sejam alvo de investimentos estruturais, financeiros e de formação profissional, dando condições para que esses profissionais atuem de modo mais adequado em relação à temática priorizada nesse estudo, mas também com suporte institucional adequado e constante.

Quanto às dificuldades presentes em relação ao adoecimento crônico, essas famílias destacaram o medo de perder o filho, o cuidado integral pela mãe, questões financeiras, alimentação, falta de conhecimento em relação à doença e também o preconceito da sociedade. De acordo com Silva et al. (2013), conviver com a doença crônica é estar em contato com as instabilidades, ao mesmo tempo em que a pessoa está com o quadro estável, muitas vezes. A necessidade de prover cuidado integral pode derivar desse medo, em que o cuidador apresenta a fantasia de que ele é responsável por tudo e, com isso, passa a ter o controle da situação. Dessa forma, consequências negativas são refletidas na dinâmica familiar, como a sobrecarga do cuidador principal e também o distanciamento das outras relações familiares (Ruiz et al., 2017).

A dificuldade financeira é uma realidade em destaque nessas famílias. Por conta dos diversos tratamentos, adaptações na residência, alimentação, entre outros, os gastos de uma pessoa com adoecimento crônico podem ser três vezes maiores que os dispensados a uma criança saudável. Ainda, há que se considerar que algumas mães se ausentaram do trabalho para proverem o cuidado integral à criança, aspecto este também reportado na literatura científica (Baltor & Dupas, 2013; Fráguas et al., 2008).

Além disso, a falta de conhecimento é apontada como um aspecto dificuldador na literatura. Fráguas et al. (2008) relatam essa demanda por parte de algumas famílias, em que a falta de informação limita o oferecimento do cuidado necessário à pessoa adoecida em alguns momentos, por justamente não saberem do que realmente a criança necessita. Esse elemento pode demonstrar as falhas dos profissionais de saúde ao não prepararem essas famílias e não assumirem seu papel de educadores em relação ao cuidado domiciliar.

No entanto, apesar dos participantes elencarem dificuldades, também apontaram facilidades, em que o amor, a união, o estabelecimento de vínculos, a parentalidade e o conhecimento foram fundamentais para lidarem com os desafios cotidianos. Ao decidirem pela adoção, essas famílias apontaram que mudanças aconteceram, mas que os benefícios foram superiores às dificuldades, de modo que o adoecimento passou a ser uma característica do(a) filho(a) que precisava de atenção e cuidado.

Segundo Snyder e Lopez (2009), o amor é uma emoção positiva que promove união, sendo um componente central nas relações humanas. A partir do amor podem ser estabelecidos relacionamentos mais profundos, que aproximam as pessoas tanto física como emocionalmente. Ao receberem o amor e o apoio da família, esses casais se sentiram amparados para seguir com a decisão da adoção, prosseguindo com o objetivo de construção da nova família. Com o fortalecimento das relações interpessoais, promove-se o desenvolvimento pessoal de todos os envolvidos. O vínculo estabelecido entre família nuclear e família extensa também foi apresentado como significativo. A família, ao ter um sujeito com adoecimento, faz com que haja o fortalecimento dessas relações, em que o cuidado passa a ser exercido pela família nuclear e depois se amplia para a família extensa (Santos et al., 2014).

De acordo com as falas dos participantes, o conhecimento foi apontado como um fator protetivo para esse tipo de adoção. Dessa forma, ser um profissional da área da saúde pode ter motivado essas mães a adotarem uma criança com adoecimento crônico, por saberem dos cuidados básicos com o(a) filho(a) e também como ter acesso aos recursos necessários para o tratamento.

Como destacado, as dificuldades e facilidades existem em todo processo de construção da parentalidade e de uma nova família. Com o nascimento ou a chegada de novos membros, uma nova rotina é estabelecida e os integrantes da família se adaptam a essas necessidades. No caso dos pais participantes deste estudo, essas adaptações parecem ser mais evidentes, haja vista as diversas mudanças necessárias na rotina familiar, os cuidados específicos em relação ao adoecimento crônico e as repercussões desses processos, por exemplo, na socialização e na educação dessas crianças. Apesar dessas especificidades, deve-se reconhecer que tais desafios também podem ser encontrados em outras configurações familiares, haja vista que as dificuldades podem ocorrer independentemente do tipo de filiação, como vimos nas falas dos participantes.

Ainda assim, diante da realidade dessas famílias, foi possível observar que, ao se adaptarem às necessidades impostas pelo adoecimento crônico, adquiriram habilidades que facilitaram o desenvolvimento do cuidado. As estratégias no âmbito domiciliar incluem a participação de todos os integrantes, com o objetivo de promoção, manutenção e funcionalidade estrutural dos cuidados (Marcon et al., 2009). Como vimos pelas falas, essas estratégias são necessárias para prevenção das crises, garantindo segurança e conforto para o(a) filho(a). Assim, buscam promover o bem-estar e a qualidade de vida (Salvador et al., 2008).

As famílias que utilizam esse tipo de recurso vivenciam a doença no momento presente e não se concentram nos eventos que podem acontecer no futuro. As técnicas utilizadas para prover o melhor cuidado são descobertas apenas no cotidiano, o que possibilita novas construções e adaptações do conhecimento e também das práticas desses familiares. Os participantes elencaram estratégias que os auxiliaram no cuidado, desde adaptações relacionadas à residência em que moram até características pessoais importantes que facilitam no cuidado prestado. Podemos considerar a construção do cuidado para com a criança com adoecimento crônico como um movimento perene em que o agravo da doença faz com que a família se reinvente e, com isso, aplique as estratégias já desenvolvidas (Borges et al., 2020). Caso essas estratégias se mostrem ineficazes para o momento, novas estratégias passam a ser criadas e aplicadas no cotidiano.

Para finalizar, em relação às limitações na execução da pesquisa, destaca-se a dificuldade de acesso a essas famílias. Reforça-se a importância de projetos de conscientização e uma maior divulgação quanto a esse tipo de adoção, pois, muitas vezes, não há espaços para a troca de experiências entre essas famílias, bem como a discussão sobre a atuação de profissionais de saúde e de educação e seu papel essencial no provimento de informações, orientações e cuidados para que essas adoções sejam bem-sucedidas. Para novos estudos, indica-se a possibilidade de investigar a família nuclear de modo integrado, podendo conhecer melhor as especificidades dessas crianças e adolescentes e como os mesmos reconhecem suas necessidades de cuidado e potências para o desenvolvimento positivo. Trabalhar com esses profissionais de saúde e de educação também é uma possibilidade que deve ser conduzida em estudos vindouros.

Financiamento

Este estudo foi financiado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), por meio de bolsa de mestrado concedida à primeira autora. Este artigo é derivado da dissertação de mestrado da primeira autora, intitulada “Adoção de crianças com quadro de adoecimento crônico: investigação sobre a rede de apoio social”, defendida junto ao Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal do Triângulo Mineiro, orientada pelo segundo autor.

Contribuição dos autores

Camila Borges: Conceção do estudo, Coleta e análise de dados, Redação do artigo.

Fabio Scorsolini-Comin: Concepção do estudo, Análise dos dados, Redação e revisão do artigo.

Referências

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Recebido: 18 de Fevereiro de 2020; Aceito: 12 de Novembro de 2022

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