A pandemia provocada pela COVID-19 conduziu a mudanças drásticas na vida pública e privada das pessoas que tiveram um enorme impacto na população mundial a nível económico e social, mas também na saúde mental. Foram decretados sucessivos confinamentos que provocaram grandes alterações no quotidiano da população, nomeadamente a necessidade de distanciamento físico e social, mudanças comportamentais e a impossibilidade de realizar rotinas diárias (World Health Organization, 2021). A atividade económica e social alterou-se e o sector da educação não foi alheio a essas alterações.
As instituições de ensino foram obrigadas a repensar os modelos de educação, a estipular novas regras de funcionamento e alterar o sistema de ensino-aprendizagem. A situação obrigou a uma necessidade de adaptação brusca e a repensar modelos alternativos e complementares ao nível da aprendizagem e de estratégias de avaliação. As ferramentas de e-learning acabaram por desempenhar um papel decisivo durante a pandemia, permitindo a continuidade da aprendizagem dos alunos (Pokhrel et al., 2021). Contudo, estas alterações modificaram os padrões diários de comportamento dos estudantes, afetando o seu equilíbrio psicológico e emocional, colocando em risco uma aprendizagem produtiva (Elmer et al., 2020; Oliveira et al., 2020).
O regresso ao ensino presencial ou hibrido tem sido controverso, associado a um conjunto de medidas de controlo da infeção e de minimização dos comportamentos de risco. O uso obrigatório de máscaras, a redução do número de alunos efetivo nas salas de aula, a disponibilização de gel desinfetante nas salas de aula e em espaços comuns, a definição de circuitos de circulação, entre outras, foram medidas introduzidas que afetaram a relação pedagógica e o modelo de ensino (Alfano et al., 2021). O distanciamento físico e social mantém-se e confrontamo-nos, agora, com uma nova normalidade pós-covid no ensino superior (Tesar, 2020) que veio alterar as formas de socialização de todos os interlocutores no domínio da educação.
Apesar das medidas de contenção da pandemia terem protegido a saúde física, a saúde psicológica foi abalada, com um aumento significativo de perturbações psicológicas (Anderson et al., 2020; Barros & Sacau-Fontenla, 2021; Brooks et al., 2020; Pancani et al., 2021) que se tornaram preocupantes em matéria de saúde pública. De facto, as alterações no sistema de ensino, provocadas pelos sucessivos confinamentos, prolongaram o isolamento, diminuindo as interações pessoais e sociais, causando desequilíbrios a nível emocional. Reações comportamentais, tais como solidão, melancolia, apatia, perturbações de sono, fadiga generalizada, acabaram por se traduzir num aumento de sintomas de depressão, ansiedade e stress entre os estudantes universitários (Omari et al., 2020; Wang et al., 2020).
O desenvolvimento de sintomas de depressão, ansiedade e stress, além dos fatores contextuais e sociais, parece estar associado a características individuais, nomeadamente a dimensões da personalidade; de facto, a personalidade parece estar relacionada com a forma como cada um reage aos acontecimentos adversos, determinando a forma como se interage com o mundo exterior (López-núñez et al., 2021; Rettew et al., 2021). Dimensões da personalidade como a conscienciosidade e a extroversão têm um papel protetor da saúde mental enquanto o neuroticismo conduz à instabilidade emocional tornando a pessoa mais vulnerável ao aparecimento de sintomas de perturbação mental (Gubler et al., 2020; Shokrkon et al., 2021).
As diferenças de género parecem influenciar esta relação. As mulheres apresentam índices mais elevados de ansiedade e depressão, demonstrando uma maior dificuldade para lidar com o impacto da pandemia, mesmo possuindo uma melhor perceção das suas próprias emoções; já os homens apresentam uma melhor capacidade para gerir situações stressantes (Hou et al., 2020; Junior et al., 2020). Os homens mostraram-se mais resilientes ao stress causado pela pandemia, apresentando mais capacidades e melhores habilidades na gestão das interações sociais e no uso das novas tecnologias de informação e comunicação (Prowse et al., 2021; Yu et al., 2021) o que pode ter mitigado o impacto do isolamento social.
Na verdade, o impacto do confinamento provocado pela COVID-19 teve implicações psicológicas nos estudantes universitários com consequências ao nível emocional sentidas de forma diferente, pelas mulheres e pelos homens, o que pode estar associado a diferentes características. Neste sentido, neste trabalho procurou-se explorar em que medida as características de personalidade relacionadas com a regulação e estabilidade emocional se associam com a saúde mental dos estudantes universitários e qual o papel protetor destas características em momentos especialmente desafiantes, associados às alterações do sistema de ensino-aprendizagem.
Método
Participantes
Participaram no presente estudo 724 estudantes universitários portugueses do ensino público e privado. A amostra é maioritariamente do sexo feminino, sendo 71,3% do sexo feminino e 28,7% do sexo masculino. A idade média dos participantes é de 20,22 anos com um desvio padrão de 3,54. Do total da amostra, 96,5% dos participantes é solteiro, 2,9% casado e 0,6% vive em união de facto.
Material
Para avaliar a saúde mental utilizou-se a escala de Depressão, Ansiedade e Stress (DASS-21). Neste estudo foi utilizada a versão reduzida (Lovibond & Lovibond, 1995) composta por 21 itens, 7 itens para cada uma das três dimensões da saúde mental. A subescala de depressão avalia a perda de autoestima, a desmotivação, o desânimo e a apatia; a subescala de ansiedade avalia estados persistentes de ansiedade e irritabilidade assim como respostas intensas de perceção de pânico e o medo; a subescala de stress avalia sintomas de impaciência e irritabilidade, pouca tolerância à frustração e dificuldade em relaxar. Foi utilizada a versão adaptada à população portuguesa (Pais-Ribeiro et al., 2004). O formato de resposta é uma escala tipo Likert de 4 pontos em que 0 equivale a “Não se aplicou nada a mim”, 1 equivale a “Aplicou-se a mim algumas vezes”, 2 equivale a “Aplicou-se a mim muitas vezes”, 3 equivale a “Aplicou-se a mim a maior parte das vezes”. As pontuações mais elevadas correspondem a níveis mais elevados de depressão, ansiedade e stress. O grau de severidade dos sintomas em cada dimensão calcula-se pela soma das pontuações diretas nos itens da dimensão e multiplicam-se por dois para obter a pontuação final na escala original de 0 a 42 pontos. Em relação à depressão, pontuações entre 0 e 9 representam uma presença de sintomas considerada normal, pontuações entre 10 e 13 representam um nível de depressão leve, entre 14 e 20 uma depressão moderada, entre 21 e 27 uma depressão grave e uma pontuação de 28 pontos ou superior representa um nível de depressão muito grave. No que se refere à ansiedade, o intervalo entre 0 e 7 é considerado normal, entre 8 e 9 é leve, entre 10 e 14 indica um nível de ansiedade moderado, entre 15 e 19 grave e uma pontuação de 20 ou mais pontos indica um nível de ansiedade muito grave. Por fim, em relação ao stress, as pontuações entre 0 e 14 representam um nível de stress normal, entre 15 e 18 leve, entre 19 e 25 moderado, entre 26 e 33 grave e as pontuações iguais ou superiores a 33 representam um nível de stress muito grave.
Para avaliar as dimensões de gestão e regulação emocional utilizou-se a Ten-Item Personality Inventory (TIPI) baseada no modelo dos 5 fatores (Gosling et al., 2003). Trata-se de uma escala constituída por 10 itens, 2 itens para cada dimensão da personalidade: extroversão, afabilidade, conscienciosidade, estabilidade emocional e abertura a novas experiências. O formato de resposta é de tipo Likert de 7 pontos onde 1 significa “discordo totalmente” e 7 “concordo totalmente”. Foi utilizada a versão portuguesa que apresenta uma boa estabilidade temporal e convergência com outras medidas de personalidade Lima & Castro, 2009; Nunes et al., 2018).
Procedimento
Após aprovação do estudo pela Comissão de Ética da Universidade Fernando Pessoa (Ref. PI-138/21), o questionário foi divulgado, com o auxílio do Google Forms, através das redes sociais entre os dias 26 de março e 6 de abril de 2022, recorrendo a uma amostragem não probabilística pela técnica do snowball. A técnica de snowball (bola de neve) consiste numa metodologia de recolha de dados em que é solicitado aos participantes que, dentro da sua rede social, convidem novos participantes do seu grupo de amigos e conhecidos. A amostra vai, progressivamente, aumentando à medida que os participantes selecionados convidam novos participantes até se obter o total da amostra.
Os dados foram analisados usando o software IBM SPSS versão 27. Foram calculados estatísticos descritivos para a caracterização da amostra e a avaliação da prevalência de sintomas de depressão, ansiedade e stress, análises de diferenças de médias através da prova t de Student para verificar diferenças de género na saúde mental e análises correlacionais através do teste de correlação de Pearson para verificar a relação entre as dimensões da personalidade e as dimensões de saúde mental. Para testar o papel protetor das dimensões de personalidade na saúde mental tendo em conta o sexo foi desenhado um modelo de moderação simples testado através do modelo 1 da macro PROCESS do SPSS. Todas as análises foram realizadas com intervalos de confiança a 95% e p<0,05.
Resultados
Análise descritiva
A análise dos resultados da escala DASS-21 mostra níveis elevados de perturbação mental nos estudantes universitários sendo a percentagem de casos com sintomatologia clínica superior à percentagem de casos com níveis considerados normais ou não clínicos nas três dimensões (Quadro 1). Destaca o elevado número de casos com sintomatologia muito grave de depressão, ansiedade e stress (16,6%, 25,3% e 8,8% respetivamente).
O estudo revela valores preocupantes para a depressão, ansiedade e stress, com percentagens de sintomatologia identificada como grave ou muito grave de 34,3% para a ansiedade, 27,6% para a depressão e 25,9% para o stress.
A comparação entre médias mostra diferenças significativas entre estudantes de ambos os sexos (Quadro 2) nas três dimensões de saúde mental. As mulheres apresentam índices de depressão, ansiedade e stress mais elevados do que os homens, sendo no stress onde se verifica a maior diferença.
A análise da relação entre as dimensões da personalidade medidas através do TIPI e a saúde mental (Quadro 3) mostra relações negativas e significativas entre todas as dimensões de personalidade e a depressão, ansiedade e stress exceto entre abertura a experiência e a ansiedade. Estudantes com níveis mais altos de extroversão, afabilidade, concienciosidade, estabilidade emocional e abertura à experiência apresentam menos sintomas de depressão, ansiedade e stress. Apenas a abertura a experiência não mostra uma relação significativa com a ansiedade. Esta dimensão apresenta também a relação mais fraca com o stress, contudo o sentido das relações mantém-se inverso. Destacam-se as relações moderadas da estabilidade emocional com as três dimensões de saúde mental.
Havendo evidência de que o efeito protetor de determinados fatores pessoais e sociais na saúde mental possa ser influenciado pelo sexo, foi aplicado um modelo de moderação simples considerando as dimensões de personalidade como variável independente, os sintomas de perturbação mental (depressão, ansiedade e stress) como variável dependente e o sexo (0=homem; 1=mulher) como variável independente moderadora.
Trata-se de verificar se o efeito preditor das dimensões da personalidade na saúde mental varia em função do sexo. A Figura 1 mostra os resultados do modelo de moderação simples. Não se verificam efeitos de interação entre o sexo e as dimensões da personalidade pelo que se descarta o efeito moderador da variável sexo (Quadro 4) confirmando-se o efeito protetor da personalidade na saúde mental quer para as mulheres quer para os homens. A presença de sintomas de depressão, ansiedade e stress é menor naqueles estudantes com níveis mais altos de extroversão, afabilidade, concienciosidade, estabilidade emocional e abertura a experiência.
Apesar de não se verificarem efeitos de interação, a afabilidade e a abertura a experiência têm um efeito protetor tendencialmente mais forte para os homens (coeficientes b para o sexo com sinal negativo: -3,052 e -2,234, respetivamente) enquanto a extroversão, a concienciosidade e a estabilidade emocional exercem um efeito protetor tendencialmente mais intenso nas mulheres (coeficientes b para o sexo com sinal positivo: 10,226, 8,352 e 6,609, respetivamente).
Contudo, os valores dos coeficientes b (Quadro 4) confirmam o papel preponderante da estabilidade emocional na saúde mental sendo este papel muito idêntico entre os rapazes e raparigas (ligeiramente mais forte para as raparigas). De facto, níveis elevados de estabilidade emocional têm um efeito protetor na saúde mental (Figura 2).
Discussão
As implicações da prevenção pandémica - distanciamento físico e social - reduziram os contactos interpessoais e as formas de socialização, tornando mais visíveis as necessidades e as vulnerabilidades diferenciadas dos estudantes. Neste contexto, os fatores psicossociais ganharam uma outra visibilidade associada aos dados preocupantes da saúde mental dos estudantes universitários, nomeadamente nos sintomas de depressão, ansiedade e stress. Esta situação é reportada em estudos recentes que referem que ensino à distância teve um impacto significativo na saúde destes estudantes, nomeadamente desgaste psicológico, stress, fadiga, exaustão emocional e depressão acompanhada de ansiedade e alterações de humor (Caroppo et al., 2021; Prati et al., 2021; Prowse et al., 2021). O nosso estudo revela valores preocupantes para a depressão, ansiedade e stress, contudo para a sintomatologia identificada como grave e muito grave foi encontrada para a ansiedade, seguida da depressão e do stress. As diferenças de género são significativas, evidenciando uma maior vulnerabilidade nas estudantes universitárias, valores já encontrados noutros estudos (Batista & Noronha, 2021; Fenollar-Cortés et al., 2021; Maia et al., 2020) que confirmam que as estudantes de sexo feminino referem sentimentos de maior isolamento social e maiores preocupações e dificuldades em gerir as tarefas escolares e o desempenho académico.
As relações entre saúde mental e as características de personalidade mostraram-se pertinentes, revelando que existem dimensões de personalidade que induzem maior vulnerabilidade e outras que se revelam protetoras da saúde psicológica. Neste sentido, estudantes com valores mais elevados de estabilidade emocional apresentam menos sintomas de depressão, ansiedade e stress. Estas características parecem funcionar como fatores protetores que ativam a resiliência nos comportamentos e estilos de vida durante o confinamento, atenuando o sofrimento psicológico. De facto, os estudos desenvolvidos com estudantes universitários (Lopes & Nihei, 2021; Mir et al., 2020; Rettew et al., 2021) mostraram que estas características podem prever padrões de resposta emocional e interferir no comportamento em situações de crise.
Contudo, apesar de outros estudos apontarem a extroversão como uma das dimensões mais positivamente relacionada com a saúde mental (Shokrkon et al., 2021) os resultados do nosso estudo indicam que a estabilidade emocional é a dimensão com um maior peso para a preservação da saúde mental em momentos de crise, como aquele que estamos a vivenciar. Uma maior estabilidade emocional parece estar relacionada com uma maior capacidade para gerir situações de ansiedade e stress e um maior equilíbrio e regulação emocional (Gubler et al., 2020; Modersitzk et al., 2021), diminuindo, assim, sintomas de apatia e de depressão.
Contudo, esta nova situação teve um impacto diferencial nos estudantes. As mudanças no sistema de ensino-aprendizagem tiveram impacto nos comportamentos dos estudantes, nomeadamente consequências psicológicas (Flynn et al., 2021; Hong et al., 2021; Lien et al., 2022). Atendendo à influência das características individuais (Bhowmik & Bhattacharya et al., 2021), como a vulnerabilidade psicológica, é premente ter em consideração o efeito protetor que determinadas dimensões, como a estabilidade emocional, podem ter na saúde mental.
Neste sentido, é necessário promover o desenvolvimento de competências transversais, como a gestão e a regulação emocional, no sentido de um maior equilíbrio do desenvolvimento humano. É importante que a investigação sobre este tema continue a decorrer, para que se possa compreender de forma mais eficaz o impacto de toda esta situação atípica e desafiante. As implicações da pós-pandemia no contexto da educação alertam-nos para a necessidade de investigação em áreas mais específicas que tenham em consideração as diferenças individuais dos estudantes de modo a repensar as medidas mais eficazes para uma aprendizagem num contexto de educação com saúde.
Contribuição autores
Carla Barros: Conceitualização; Investigação; Metodologia; Administração do projeto; Recursos; Redação do rascunho original; Redação - revisão e edição
Ana Sacau: Conceitualização; Investigação; Metodologia; Administração do projeto; Recursos; Redação do rascunho original; Redação - revisão e edição.