A suspensão súbita do uso de álcool e outras drogas ilícitas configuram-se como desafio diante da gravidade dos sintomas da abstinência, que torna esse processo difícil e demorado para os dependentes. Com isso, a política de Redução de Danos (RD) surge como tentativa de corresponsabilizar os usuários de drogas no plano terapêutico e aumentar a autonomia e liberdade desses indivíduos (Batista et al., 2019).
A RD refere-se a políticas, programas e práticas que visam minimizar os impactos negativos à saúde associados ao uso de drogas. Tem como base a justiça e os direitos humanos, sem julgamento, coerção, discriminação ou exigências quanto a privação do uso de drogas (Associação Internacional de Redução de Danos, 2020).
As práticas comumente referidas como RD incluem educação em saúde, terapia de reposição de opioides, distribuição de agulhas e seringas com ênfase em outras vias além da injeção para administração de medicamentos. Assim como, aconselhamento sobre infecções sexualmente transmissíveis, oferta de testes rápidos, vacinas e serviços de assistência social (Boucher et al., 2017).
Considera-se que o entendimento sobre redução de danos tende a ser limitado, e focado na provisão de serviços sociais e de saúde, o que impede um pensamento mais amplo sobre aspectos integrais do bem-estar dos indivíduos. Logo, torna-se imprescindível desenvolver evidencias científicas sobre esta temática (Gomes & Vecchia, 2018). Destarte, para contribuir com a política de redução de danos, os profissionais de saúde devem entender melhor os danos associados ao consumo ilícito de álcool e outras drogas, para coadjuvar com iniciativas melhor adaptadas para atender às prioridades das comunidades afetadas (Crabtree et al., 2018).
Assim, ao reconhecer estratégias de orientação positivas sobre redução de danos, o profissional pode embasar sua prática clínica e adaptar intervenções benéficas ao paciente em sua rotina de trabalho. Assim, considera-se que a prática baseada em evidências é essencial para efetivação de estratégias para redução de danos. Desse modo, este estudo buscou identificar práticas de cuidado na redução de danos junto aos usuários de álcool e outras drogas.
Método
Este estudo trata-se de revisão integrativa da literatura (RI), sobre redução de danos em pessoas que fazem uso de álcool e outras drogas. Esse tipo de estudo permite análise e síntese do fenômeno estudado, gera conhecimentos baseado em pesquisas anteriores e aponta lacunas a serem estudadas (Guimarães et al., 2019).
Procedimento
O percurso para elaboração foi constituído por seis etapas, a saber: 1) elaboração do problema de pesquisa; 2) seleção da amostra a partir dos descritores adequados à temática; 3) coleta de informações; 4) avaliação dos elementos relacionados ao tema; 5) análise e interpretação dos resultados coletados e 6) divulgação dos dados (Moura et al., 2018).
Dessa forma, a questão norteadora com base na estratégia População Interesse Contexto (PICo) foi: “Quais são as práticas de cuidado para redução de danos em pessoas que fazem uso de álcool e outras drogas?”. Considerou-se, P: usuários de drogas, I: cuidados e orientações sobre redução de danos, Co: cuidados e orientações usuais (Lockwood et al., 2017).
Procura de Artigos
A busca por artigos foi realizada no mês de agosto de 2019. Para realizar o levantamento de artigos que respondessem à questão norteadora do estudo, optou-se por utilizar a base de dados Lilacs, acessada por meio da Biblioteca Virtual de Saúde (BVS), e Web of Science, Scielo e Pubmed, acessadas pelo portal de periódicos da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).
Os descritores, presentes no Descritores em Ciências de Saúde (DeCS) e do Medical Subject Headings (MeSH), foram utilizados para a RI: “redução de danos/harm reduction”, “autocuidado/self care” e “estratégias/strategies”. Para relacioná-los, foi usado o operador booleano “AND”.
Recolha de dados
Em relação ao recorte temporal, foram selecionados artigos publicados no intervalo de tempo de 2005 a 2019. Justifica-se esse período devido à publicação, no ano de 2003 no Brasil, da Política do Ministério da Saúde para a Atenção Integral aos Usuários de Álcool e Outras Drogas (PAIUAD) (Brasil, 2003).
Foram utilizados como critérios de inclusão: artigos disponíveis na integra em português, inglês e/ou espanhol, que respondam à questão norteadora do estudo. Por sua vez, os critérios de exclusão foram: publicações repetidas, sendo mantida a primeira versão identificada, publicações que não possuem relação direta com o tema, além de editoriais, manuais, dissertações e teses.
Inicialmente, procedeu-se a leitura dos títulos e resumos para seleção das publicações que se enquadrassem nos critérios de inclusão, posteriormente realizou-se a análise completa dos estudos selecionados.
Para estabelecimento do nível de evidência, considerou-se nível I as metanálises e estudos controlados e randomizados; nível II, os estudos experimentais; nível III, os quase experimentais; nível IV, os descritivos, não experimentais ou qualitativos; nível V os relatos de experiência e nível VI os consensos e opinião de especialistas (Melnyk & Fineout-Overholt, 2015).
O estudo respeitou os princípios éticos e legais da Resolução 510/2016 do Conselho Nacional de Saúde que envolve pesquisas com informações de domínio público.
Resultados
A Figura 1 apresentada a seguir esquematiza o percurso do levantamento bibliográfico adotado pelos pesquisadores para a elaboração deste estudo.
Os 10 artigos incluídos neste estudo foram publicados em periódicos científicos nacionais e internacionais que tinham relação com redução de danos. Três artigos foram publicados em 2018; um em 2019 e 2017; em 2016 foram publicados dois artigos, seguido de 2015, com uma publicação. Os achados foram resultados de pesquisas realizadas por médicos, enfermeiros, psicólogos e assistentes sociais. No que se refere ao idioma, oito artigos foram publicados em inglês e dois em português.
A maioria das publicações tinha como objetivo investigar estratégias de redução de danos desenvolvidas pelos usuários para mitigar problemas decorrentes do consumo de drogas. Apenas três artigos abordaram a prevenção de danos de uso de substâncias psicoativas entre as pessoas em situação de rua. Os estudos foram realizados em diferentes países: Brasil, Canadá Inglaterra, Dinamarca, Durban e Austrália.
O Quadro 1 mostra o material empírico utilizado para realização desta pesquisa segundo título, autores, categoria profissional, ano de publicação, pais, periódico e tipo de estudo.
Com o intuito de explorar as temáticas abordadas nos estudos incluídos, foi desenvolvido o Quadro 2 com os objetivos e principais estratégias ou cuidados abordados nos artigos sobre redução de danos.
Por meio da organização e interpretação dos resultados, os estudos foram agrupados em três blocos temáticos: Orientações sobre autocuidado e redução de danos no uso de drogas; Orientações para os profissionais de saúde sobre redução de danos e Estratégias de cuidados que visam à prevenção de danos.
Temática I: Orientações sobre autocuidado e redução de danos no uso de drogas
As principais orientações sobre autocuidado e redução de danos foram frequentar os serviços de saúde e assistência social, adotar técnicas para evitar a abstinência, limitar a quantidade ou o ritmo do consumo de álcool, usar maconha depois de usar o crack, participar de atividades comunitárias, manter o autocuidado e usar preservativo como proteção contra doenças sexualmente transmissíveis (Quadro 3).
Temática II: Orientações para os profissionais de saúde sobre redução de danos
As principais orientações para os profissionais de saúde sobre redução de danos tratam da realização de intervenções educativas e preventivas, criação de ambiente terapêutico que favoreça a criação de vínculo, encaminhamento de usuários para serviços especializados, realizar a promoção da saúde com o enfoque na sua inclusão social e não no ideal de cura ou abstinência e respeitar às escolhas e autonomia dos usuários (Quadro 4).
Temática III: Estratégias de cuidados que visam à prevenção de danos.
As principais estratégias e programas encontrados que visam à prevenção de danos foram as terapias de substituição, os programas de troca de seringas e material esterilizados, a distribuição de insumos, a capacitação de profissionais de saúde sobre redução de danos, a informação entre pares e programas de uso seguro de drogas (Quadro 5).
Discussão
Neste estudo, houve a identificação de três temáticas no que tange a perspectiva de redução de danos, focadas nas orientações necessárias para o alcance do autocuidado, orientações para os profissionais de saúde e estratégias de cuidados que visam à redução de danos. No que se refere às orientações para autocuidado e redução de danos, identificou-se a necessidade dos usuários de álcool e outras drogas frequentarem os serviços de saúde, assistência social e participar de atividades comunitárias, adotar técnicas de prevenção da abstinência, limitar a quantidade ou o ritmo do consumo de álcool, manter o autocuidado e usar preservativo (Bittencourt et al., 2019; Boucher et al., 2017; Crabtree et al., 2018; Teixeira et al., 2015; Vallance et al., 2016).
Apesar de estudos referirem a relevância de frequentar os serviços de saúde e assistência social, o acesso ainda é restrito. Pesquisa realizada na Dinamarca identificou que 37% das pessoas em consumo de drogas não tiveram contato com os serviços mais comuns do sistema de saúde nos últimos três meses (Toht et al., 2016). No Brasil, pesquisa identificou que os Consultórios de Rua podem ser estratégia promotora do acesso dos usuários de álcool e outras drogas aos serviços de saúde (Bittencourt et al., 2019). Para prevenir abstinências e reduzir danos, estudo etnográfico no Canadá identificou a necessidade de orientar a redução gradual da quantidade ou o ritmo do consumo de álcool, o que inclui comprar volumes menores, beber com amigos que bebem menos e misturar álcool com bebidas não alcoólicas (Crabtree et al., 2018). Estudos brasileiros sugerem como estratégia de redução de dados, orientar os usuários sobre os cuidados mínimos que devem ter consigo mesmo, como alimentar-se antes do uso de drogas, buscar fazer o uso da droga em determinado período do dia, hidratar-se, descansar o corpo e a mente, a fim de minimizarem os danos (Bica et al., 2019; Teixeira et al., 2015).
Nessa perspectiva de autocuidado, pesquisa na África alertou sobre relação cada vez mais comum entre uso de álcool e outras drogas e transmissão do vírus da imunodeficiência humana (HIV) (Parry et al., 2017). Isso demonstra a relevância de estratégias de orientação de autocuidado e utilização de preservativos, para redução de danos de HIV e outras infecções transmissíveis relacionadas direcionadas aos usuários de drogas, principalmente em usuários de drogas injetáveis.
Dentro da temática de orientações para os profissionais de saúde sobre redução de danos, houve destaque para intervenções educativas e preventivas, criação de vínculo, inclusão social e respeito às escolhas e autonomia dos usuários (Bittencourt et al., 2019; Crabtree et al., 2018; Milward et al., 2018; Parry et al., 2017; Toht et al., 2016 ).
As intervenções educativas e preventivas podem ser realizadas de diferentes formas, como mostra estudo canadense: (1) por bebedores ilícitos, para bebedores ilícitos; (2) por especialistas, para bebedores ilícitos; e (3) por bebedores ilícitos, para prestadores de serviços (Crabtree et al., 2018).
Pesquisadores dinamarqueses identificaram que entre usuários de drogas injetáveis que receberam intervenções educativas, 95% consideraram as informações úteis para redução de danos (Toht et al., 2016). Em pesquisa na África houve redução significativa no uso de álcool e número parceiros sexuais após intervenção educativa (Parry et al., 2017). Programas gerenciados por álcool no Canadá foi uma estratégia de redução de danos associada a vários resultados positivos, como menos internações hospitalares, testes de desintoxicação e consumo reduzido de álcool (Vallance et al., 2016).
Para coadjuvar com o sucesso das intervenções educativas, também é relevante que os profissionais de saúde propiciem a formação de vínculos com usuários de insumos ilícitos. Pesquisa no Brasil observou que os profissionais de saúde identificaram o vínculo como meio facilitador e potencializador dos cuidados realizados após intervenção para redução de danos (Bittencourt et al., 2019). Outra pesquisa brasileira com usuários de um Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas identificou que as relações harmônicas com profissionais de saúde permitem que eles sejam mais bem compreendidos e que os profissionais reconheçam as reais necessidades apresentadas pelos usuários para contribuir com redução de danos à saúde (Bittencourt et al., 2018).
A criação de vínculos facilita as relações interpessoais saudáveis construídas junto aos sujeitos que necessitam de cuidados (Bittencourt et al., 2019). As estratégias de redução de danos devem ser compreendidas e realizadas por todos os profissionais de saúde, mediante entendimento do território e formação de vínculo de toda a equipe de saúde com os usuários de álcool ou drogas que necessitam de cuidados. Além disso, há necessidade de estabelecer critérios e procedimentos de elegibilidade menos rígidos nos serviços sociais e de saúde, assim como, abordar de maneira mais adequada a estigmatização dos usuários de álcool e outras drogas (Boucher et al., 2017).
Em relação às estratégias de cuidados que visam à redução de danos, as principais estratégias e programas encontrados foram às terapias de substituição, programas de troca de seringas e material esterilizados, distribuição de insumos, capacitação de profissionais de saúde sobre redução de danos e informação entre pares e programas de uso seguro de drogas (Crabtree et al., 2018; Boucher et al., 2017; Toht et al., 2016; Parry et al., 2017; Leite et al., 2019).
Para reduzir os danos e evitar a overdose causada pelo consumo inseguro de drogas, várias políticas de redução de danos foram implementadas, como tratamento de substituição de opióides, programas de troca de seringas e tratamento gratuito de drogas (Toth et al., 2016). Pesquisadores identificaram que um total de 91% dos participantes com nacionalidade dinamarquesa que injetavam drogas estava em tratamento de substituição opióide (Toht et al., 2016). No que se refere ao tabaco, as opções atuais para substituição da nicotina incluem adesivos, goma, pastilhas, spray para a boca e produtos transdérmicos (Giles et al., 2018). Na Dinamarca, pesquisa identificou que abrigos já possuem programa gratuito de troca de seringas, além de assistentes sociais, educadores sociais e auxiliares de enfermagem que prestam assistência à saúde (Toth et al., 2016).
Estes resultados sugerem que programas de RD vão além do uso de serviços sociais e de saúde, e suas ações destacam uma abordagem não punitiva e terapêutica. No entanto, essas práticas de redução de danos não são totalmente eficazes devido a vários obstáculos sócio estruturais. Assim, a melhoria da eficácia das práticas de redução de danos não pode depender apenas da melhoria das estratégias de autocuidado entre as pessoas que usam drogas; ao contrário, é necessária uma ação coletiva da comunidade para enfrentar as muitas barreiras e para sustentar ambientes de apoio à RD (Boucher et al., 2017).
As principais limitações desta revisão estão relacionadas ao baixo número de estudos experimentais incluídos na amostra, o que impossibilitou a avaliação da efetividade das práticas de cuidado para adesão dos usuários de drogas nas ações de redução de danos. Com isso, recomenda-se a realização de novos estudos que busquem avaliar a efetividade dessas estratégias bem como a autoeficácia e adesão da população-alvo. As práticas de cuidado para redução de danos em pessoas que fazem uso de álcool e outras drogas se configura em três temáticas: orientações sobre autocuidado e redução de danos no uso de drogas; orientações para profissionais de saúde sobre redução de danos e estratégias de cuidados que visam à redução de danos.
As principais orientações das três temáticas versam sobre a frequência aos serviços de saúde e assistência social, abstinência, consumo de álcool, intervenções educativas e preventivas, encaminhamento para serviços especializados, formação de ambiente terapêutico que favoreça criação de vínculo e terapias de substituição.
As estratégias e orientações de RD identificadas neste estudo podem colaborar no desenvolvimento de intervenções para melhoria das condições de vida e saúde dos indivíduos com intuito de manter os dependentes de drogas inseridos na rede de atenção à saúde e de assistência social. Sugere-se como estudos futuros, pesquisas avaliativas sobre impacto das estratégias e orientações de RD na qualidade de vida dos usuários, assim como, perspectivas das pessoas que usam drogas, com destaque para o que consideram estar funcionando ou não. Estas percepções pessoais ou coletivas podem embasar ações para melhorar o papel da redução de danos na sociedade atual.
Contribuição dos autores
Caroline Ponte: Conceitualização; Curadoria dos dados; Análise formal; Investigação; Metodologia; Administração do projeto; Recursos; Redação do rascunho original; Redação - revisão e edição.
Aline Ximenes: Conceitualização; Curadoria dos dados; Análise formal; Investigação; Metodologia; Administração do projeto; Recursos; Redação do rascunho original; Redação - revisão e edição.
Girlane Albuquerque: Análise formal; Investigação; Redação do rascunho original; Redação - revisão e edição.
Nelson Galindo: Análise formal; Investigação; Redação do rascunho original; Redação - revisão e edição.
Joselane Caetano: Análise formal; Investigação; Redação do rascunho original; Redação - revisão e edição.
Livia Moreira: Conceitualização; Curadoria dos dados; Análise formal; Investigação; Metodologia; Administração do projeto; Recursos; Redação do rascunho original; Redação - revisão e edição.