A qualidade de vida (QV) está relacionada ao bem-estar, entendido como uma dimensão objetiva (welfare) que envolve rendimentos, saúde, infraestrutura e segurança pública, mas também apresenta uma dimensão subjetiva (well being), associada ao respeito, ao deleite, à apreciação e ao carinho (Sorés & Peto, 2015). Portanto, os estudos sobre QV devem envolver aspectos psicológicos, biológicos e sociais de indivíduos e sociedades, por se tratar de um conceito multidimensional e subjetivo (Forno & Finger, 2015). Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS): “a qualidade de vida é a percepção que o indivíduo tem de si mesmo, no contexto de sua cultura e valores e em função de seus objetivos, expectativas e padrões” (WHO, 1997, p. 1). Para operacionalizar esse conceito, pesquisadores elaboraram o questionário WHOQOL-100, que posteriormente gerou uma versão abreviada, o WHOQOL-Bref, desenvolvido pelo Grupo WHOQOL (1998) e validado no Brasil por Fleck et al. (1999a, 1999b). Esse instrumento é composto por quatro domínios de interesse da QV: físico, psicológico, relações sociais e meio ambiente.
A Residência Multiprofissional é um sistema de ensino vital para a formação de trabalhadores da saúde, caracterizado por um desenvolvimento profissional com pouco tempo para o descanso, muitas cobranças por parte dos preceptores, e poucas oportunidades de lazer (Fernandes et al., 2017; Guido et al., 2012). Esses fatores podem impactar de forma significativa a qualidade de vida dos residentes, trazendo consequências negativas para a própria qualidade da assistência, o que justifica a realização deste estudo.
Segundo estudo de Zanei et al. (2019), os residentes multiprofissionais dormem em média seis horas por noite e nem sempre têm acesso a uma alimentação saudável. Ao realizar aplicar o questionário WHOQL-bref em uma amostra de 128 residentes de uma universidade pública, os autores identificaram que na maioria dos domínios a QV dos residentes estava comprometida.
Ao realizar um estudo qualitativo com 46 residentes de um programa de residência multiprofissional em oncologia, Cavalcanti et al. (2018) concluíram que a síndrome de burnout se apresentava-se com frequência, estando associada à depressão. Ambas apareceram no primeiro ano de curso, estando relacionadas, segundo os autores à escassa experiência profissional prévia, a extensa carga horária do programa e ao duplo papel do estudante-trabalhador. A síndrome é uma doença ocupacional caracterizada por despersonalização, exaustão emocional e baixa realização pessoal com o trabalho (Maslach, Schaufeli, & Lieter, 2001), que ocorre em resposta ao estresse crônico.
Sobre a satisfação dos residentes com a formação, Fernandes et al. (2017) apontam que eles possuiem vivências de satisfação relacionadas ao compartilhamento de conhecimentos e gratificação do usuário, e de insatisfação devido à falta de comunicação na equipe, sobrecarga de trabalho, extensa carga horária, dificuldade na articulação da teoria com a prática e demandas impostas. Os autores concluem que o resultado da pesquisa qualitativa realizada com nove residentes mostra que os sentimentos deles são ambíguos, indicando a necessidade de diálogo e sensibilização das instituições formadoras.
Cahú et al. (2014) incluíram em sua pesquisa 45 residentes multiprofissionais e concluíram que eles estavam em situação elevada de estresse, apresentando sintomas como cansaço, desgaste físico e insônia, bem como pouca energia diária. Guido et al. (2012) atribuem aos elementos do processo de trabalho uma parte da responsabilidade pelo estresse, tais como: a permanência 24 horas nos serviços de saúde, a mediação das relações e demandas entre pacientes e outros profissionais da equipe multiprofissional e a realização de atividades gerenciais e assistenciais, concomitantemente. Segundo Aiken et al. (2012) e Negeliskii e Lautert (2012) as doenças decorrentes do estresse acabam levando os profissionais a se licenciarem do trabalho com frequência. Outro fenômeno identificado por Umann, Guido e Grazziano (2012) é o presenteísmo, que ocorre quando o profissional se mantém no trabalho, mas com problemas de saúde e menor produtividade.
O objetivo delineado para essa investigação foi avaliar a qualidade de vida de residentes multiprofissionais de dois hospitais públicos. Espera-se que os resultados desta pesquisa forneçam subsídios para ações de melhoria na QV desses residentes, a fim de garantir boas condições de aprendizagem e de prática profissional.
Método
O método de investigação utilizado para esse estudo foi o survey transversal e descritivo. O survey é um método de pesquisa indicado para a obtenção de dados ou informações sobre características de determinado grupo por meio de questionário (Zangirolami-Raimundo et al., 2018).
Participantes
O estudo foi realizado junto aos profissionais inseridos em programas de residência multiprofissional de dois hospitais públicos, um federal e outro estadual, localizados no Estado de Minas Gerais, Brasil. Os referidos hospitais são as instituições executoras e os principais cenários de prática destes programas. A residência multiprofissional foco dessa investigação é constituída por profissionais das áreas de Enfermagem, Farmácia, Fisioterapia, Fonoaudiologia, Nutrição, Odontologia, Psicologia e Terapia Ocupacional.
A amostra foi composta de 68 residentes, sendo 55 no hospital público federal e 13 no hospital público estadual. Foram excluídos da amostra final aqueles que apresentavam inconsistência ou ausência de algum dado.
Procedimento
Os dados foram coletados de abril a junho de 2017 e o instrumento utilizado para avaliar a QV dos residentes foi o questionário WHOQOL-Bref (Fleck et al., 1999a; 1999b). Esse questionário é constituído por 26 questões, sendo que duas são para a autoavaliação geral da qualidade de vida e da satisfação com a saúde. As demais (24) questões são subdivididas em quatro domínios: físico, psicológico, relações sociais e meio ambiente. Os domínios são representados por facetas e cada faceta é composta por uma pergunta. Utilizando-se o critério de conveniência, o instrumento autoaplicado foi respondido pelos residentes que estavam presentes em sala de aula ou nos locais de prática dos hospitais em estudo. Em algumas situações o questionário foi deixado com o coordenador da especialidade ou com o preceptor e recolhido posteriormente. As respostas utilizaram escala do tipo Likert de cinco pontos, ou seja, quanto maior for a pontuação (escore) melhor a qualidade de vida.
Esta pesquisa teve início após a aprovação do Comitê de Ética e Pesquisa da requerida universidade (parecer: 1.748.321, CAAE: CAAE: 51490015.2.0000.5149) e da autorização dos hospitais. Antes de responder o questionário os residentes que concordaram em participar da pesquisa assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, que garante o sigilo e o anonimato dos respondentes.
Após a coleta, os dados foram organizados e armazenados em uma planilha eletrônica no SPSS Software. Não foram encontrados valores de outliers fora do intervalo da escala, não evidenciando erro na tabulação dos dados. Também não foram encontradas observações fora do intervalo de 4,00 (outliers univariados) e nem observações que tiveram a significância da medida de D² de Mahalanobis inferior a 0,001 (outliers multivariados) (Hair et al., 2009).
No que diz respeito à linearidade foram observadas relações significativas ao nível de 5%, em aproximadamente 82,61% das correlações possíveis, pela matriz de correlação de Pearson, e por meio do teste de Bartlett foram observados valores-p inferiores a 0,05 em todos os construtos, apontando linearidade significativas dentro dos construtos. Vale ressaltar que a escala Likert foi transformada e fixada para variar entre 0 e 100, sendo 0 correspondente a respostas negativas e 100 correspondente a respostas positivas, seguindo as orientações de Pedroso e Pillati (2010) sendo que intervalos de confiança estritamente menores que 50 (ponto médio do intervalo) evidenciam negatividade quanto ao item, enquanto que intervalos estritamente maiores que 50 indicam positividade, e intervalos que contêm o 50 não evidenciam negatividade nem positividade. Cabe destacar que alguns itens foram identificados como reversos com relação à informação latente de seus respectivos constructos, sendo assim esses itens foram invertidos e foram identificados por um I em sua sigla.
Realizou-se a análise descritiva das variáveis qualitativas das frequências absolutas e relativas, e posteriormente a descrição das variáveis quantitativas utilizando-se as medidas de tendência central (média) e erro padrão. Na descrição dos itens foram utilizadas média e desvio padrão, além do método Bootstrap para cálculo dos intervalos de confiança das médias (Efron & Tibshirani, 1993).
Resultados
Sobre o perfil da amostra, 96% eram do sexo feminino; 56,9% eram casados; 32,7% tinham filhos; 40% estavam no primeiro ano de residência e 60% no segundo ano. A média de idade era de 28 anos. O Quadro 1 apresenta a descrição e comparação dos indicadores da Qualidade de Vida somados os dois hospitais.
O Domínio Físico obteve média mais baixa que os restantes e abaixo de 50 pontos, evidenciando negatividade quanto ao item, conforme Pedroso e Pilatti (2010). Enquanto os demais apontaram para a positividade, especialmente o Domínio Relações Sociais. Mais preocupante foram as respostas às questões “Como você avaliaria sua qualidade de vida?” e “Quão satisfeito(a) você está com a sua saúde?”, com médias abaixo de 36 pontos de intervalo, apontando para a negatividade em relação a sua qualidade de vida e insatisfação em relação à saúde. O Quadro 2 apresenta a média, desvio padrão e intervalo de confiança, por itens dos domínios, nos hospitais pesquisados.
No que se refere ao Domínio Físico o hospital com maior número de itens com escores abaixo de 50,0 foi o público estadual (atividades da vida cotidiana, capacidade de trabalho, sono e repouso). As médias mais positivas nos dois hospitais se deram nos itens FI1 e FI2, indicando que a dor física quase não impede os residentes de desempenharem suas tarefas e que quase nunca sentem necessidade de buscar algum tipo de tratamento médico para levar sua vida diária, o que é positivo para a QV. Identificou-se, também, que o item que mais compromete a QV no hospital público federal e estadual é a capacidade de desempenhar as atividades do seu dia a dia. E que a satisfação com o sono é menor no hospital estadual. O sentimento de falta de energia suficiente para o seu dia a dia é maior no hospital federal. Não houve sobreposição de intervalos de confiança e o maior desvio padrão aconteceu no hospital federal, nos itens mobilidade, sono e repouso e atividades da vida cotidiana, indicando maior variabilidade nas respostas.
Quanto ao Domínio Psicológico avaliado pelo WHOQOL-bref, o escore médio foi baixo para o item ‘sentimentos positivos’ nos dois hospitais, indicando que os residentes têm o sentimento de que se dedicam muito ao estudo e ao trabalho, e aproveitam pouco a vida. Mais uma vez foi o hospital estadual que apresentou o maior número de itens com escores que indicam negatividade (sentimentos positivos; pensar, aprender, memória e concentração; espiritualidade, religião e crenças pessoais). Não houve sobreposição dos intervalos de confiança.
O Domínio Relações Sociais apresentou os menores escore médios no hospital público estadual. O hospital federal apresentou valores maiores, considerados de boa qualidade no aspecto social. Não houve sobreposição dos intervalos de confiança e o desvio padrão foi baixo em todos os itens e hospitais.
No Domínio Meio Ambiente, o hospital que obteve as médias mais baixas foi o estadual, indicando negatividade nos itens: transporte, falta de oportunidade de lazer, insalubridade do ambiente físico, segurança física e proteção, ou seja, falta de acesso aos serviços de saúde. A baixa satisfação com a qualidade do transporte também está presente no hospital federal. E, por fim, a falta de oportunidade de lazer é indicada na resposta de todos os residentes dos dois hospitais.
As duas últimas questões do questionário, que permitem fazer uma avaliação da percepção quanto à qualidade de vida global, definida como a satisfação geral do indivíduo com a vida, e a sua percepção de bem-estar, obteve médias muito baixas nos dois hospitais públicos.
Discussão
Os residentes dos dois hospitais analisados apresentaram, de maneira geral, satisfação em todos os Domínios: Físico, Psicológico, Relações Sociais e Meio-ambiente, sendo necessária uma maior atenção ao Domínio Físico, especialmente no hospital estadual.
No Domínio Físico, o item que mais pode comprometer a qualidade de vida, no hospital público federal e estadual, é o comprometimento da capacidade de desempenhar as atividades, e o sentimento de falta de energia suficiente para o seu dia a dia. Como alerta Ishara (2007), a falta de um repouso adequado é uma das principais causas da fadiga e da diminuição da capacidade de trabalho, além disso, existe uma relação estreita entre o nível de saúde do profissional e a quantidade do cuidado, por isso, o resultado desses itens nesse domínio são preocupantes.
Handel et al. (2006) apontam que a relação entre a privação do sono e distúrbios cognitivos são a principal consequência negativa sobre a QV dos profissionais de saúde, podendo estimular o uso rotineiro de auxiliares farmacológicos. O cansaço frequente, o desgaste físico e a insônia são sintomas que segundo Cahú et al. (2014) e Carvalho e Malagris (2007) podem aumentar o nível de estresse, diminuindo a capacidade de desempenhar bem as atividades, o que direta ou indiretamente afeta a autoestima e satisfação consigo mesmo, explicando os baixos escores no Domínio Psicológico.
Os itens do Domínio Psicológico estão relacionados à presença de sentimentos positivos ou negativos em relação a si próprio e à vida, capacidade de concentração e autoimagem (Zanei et al., 2019). A dedicação excessiva ao estudo e trabalho pode estar despertando o sentimento de que os residentes não estão aproveitando a vida, e afetando a capacidade cognitiva relacionada à concentração. Estudos realizados por Asaiag et al. (2010), Mayer (2017) e Trigo (2010), por exemplo, alertam para o avanço da presença do estresse e da exaustão emocional entre residentes, podendo evoluir para o desenvolvimento da síndrome de burnout, que é decorrente da existência de conflito nas relações interpessoais e de sobrecarga de trabalho (Guido et al., 2012).
No Domínio Relações Sociais, os escores obtido neste estudo (62,76) são inferiores aos do estudo de Cruz et al. (2013), envolvendo a população geral (78,30). Os itens deste domínio abordam temas sobre relações pessoais, vida sexual e apoio de amigos. O hospital estadual apresentou os escores mais baixos, e o item mais preocupante diz respeito à satisfação no relacionamento com amigos, parentes, conhecidos e colegas, possivelmente em função da falta de tempo para o convívio social, devido à dedicação excessiva ao trabalho. Outra barreira no relacionamento social, segundo Jodas e Haddad (2009), é o sentimento de insegurança e impotência dos residentes no cotidiano do trabalho, ao lidarem com situações clínicas graves, favorecendo o isolamento e o distanciamento emocional. Sendo assim, faz-se necessário buscar cada vez mais soluções que propiciem um melhor planejamento e organização do trabalho, como forma de se obter melhorias nas condições gerais, inclusive na carga horária destinada à realização das atividades, o que pode contribuir para a melhoria da QV e da saúde dos residentes.
Os resultados obtidos quanto ao Domínio Meio Ambiente corroboram com as características do município de Belo Horizonte, uma cidade de grande porte, com altos níveis de poluição e barulho, alto custo de vida e violência, além de problemas relacionados ao transporte e locomoção, o que justiça os resultados negativos nas questões de segurança, ambiente físico e condição financeira. Os escores obtidos no conjunto dos domínios se refletem na avaliação global dos quesitos qualidade de vida e satisfação com a saúde, cujos resultados indicam ‘negatividade’ e coincidem com os encontrados por Cahú et al. (2014) e por Zanei et al. (2019).
Ter qualidade de vida depende de fatores intrínsecos e extrínsecos. Assim, há uma conotação diferente de qualidade de vida para cada indivíduo, que é decorrente da inserção desses na sociedade. Portanto, não é possível padronizar qualidade de vida, pois ela tem conotação individual, dependendo dos objetivos, das metas traçadas e das pretensões de cada um (Seidl & Zannon, 2004). Estudos apontam que as condições insatisfatórias de trabalho, como falta de reconhecimento, remuneração inadequada, ausência de autonomia, instabilidade, carência de infraestrutura e segurança, podem sobrecarregar o residente, gerando estresse e afetando negativamente sua convivência social e qualidade de vida (Coêlho et al., 2018; Lima & Gouveia, 2018). Os baixos valores dos escores de QV devem ser considerados preocupantes pelos coordenadores dos programas, levando-se em conta que além de prejudiciais para a vida e saúde dos residentes, tal condição pode comprometer seriamente o desempenho acadêmico e atuação profissional, oferecendo riscos à segurança dos usuários/clientes durante a assistência (Zanei et al., 2019).
Além disso, faz-se necessário institucionalizar nas organizações hospitalares projetos/programas de QV, estimulando a pausa laboral e o autocuidado utilizando estratégias de promoção da qualidade de vida no trabalho e de Práticas Integrativas e Complementares em Saúde (PICS) para manejarem o estresse. Estudos evidenciam que práticas como exercícios físicos, ginástica laboral, ergonomia, musicoterapia, yoga, escalda-pés, entre outras, contribuem de forma significa para elevar a autoestima, a produtividade, a disposição e a satisfação no trabalho, o que contribui para se ter tolerância ao estresse, diminuir o absenteísmo, melhorar a integração e relacionamento interpessoal e consequentemente melhorar a qualidade da assistência prestada aos usuários (Cunha et al., 2016; Hipólito et al., 2017; Spagnol et al., 2015).
Em síntese, os resultados deste estudo permitiram concluir que os residentes referiram uma QV ruim e que esta pode influenciar de forma negativa a sua capacidade laborativa. De maneira geral, os residentes do hospital público estadual apresentaram escores mais baixos nos itens dos domínios, indicando a necessidade de aprofundar o estudo através de abordagem qualitativa.
Agradecimentos
Agradecemos o apoio financeiro da Fundação de Apoio à Pesquisa de Minas Gerais (FAPEMIG).
Contribuição dos autores
Adriane Vieira: Conceptualização; Curadoria dos dados; Análise formal; Aquisição de financiamento; Investigação; Metodologia; Administração do projeto; Recursos; Validação; Redação do rascunho original; Redação - revisão e edição.
Marlene Monteiro: Análise formal; Metodologia; Recursos; Validação; Redação do rascunho original; Redação - revisão e edição.
Carla Spagnol: Análise formal; Metodologia; Recursos; Validação; Redação do rascunho original; Redação - revisão e edição.