A COVID-19, doença causada pelo novo coronavírus denominado SARS-CoV-2, foi identificada pela primeira vez em dezembro de 2019, em Wuhan, na China. Em 30 de janeiro de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou que a epidemia constituía uma Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional (ESPII) e, em 11 de março, considerou que se tratava de uma pandemia. Foi assim que a OMS sugeriu que todos os países adotassem estratégias para minimizar a transmissão comunitária da doença (World Health Organization, 2020).
Esse cenário anunciava a chegada de um vírus que se alastrava no mundo e deixava rastros imensuráveis na saúde, economia, segurança, educação e em vários outros dispositivos sociais. Um complexo de tensões e disputas de narrativas se instaurou em países que já vinham enfrentando inúmeros problemas de desigualdade e polarização social, incluindo aqueles vivenciados por pessoas em situação de rua. O pouco conhecimento científico sobre o processo de determinação social da doença até então, sua alta velocidade de disseminação e a capacidade de provocar mortes em populações mais vulneráveis geraram incertezas sobre quais seriam as melhores estratégias a serem utilizadas para o enfrentamento em diferentes países (Werneck, 2020).
Se, para as pessoas que possuem domicílio formalizado, praticar as medidas de prevenção e cuidado em saúde tem sido um processo complexo, para as pessoas em situação de rua, que vivem em uma constante realidade de precariedade e exclusão social, essa situação se tornou ainda mais preocupante - populações vulneráveis e marginalizadas enfrentam dificuldades de acesso aos serviços de saúde de diferentes formas (Banerjee & Bhattacharya, 2020; Paula et al., 2020; Van Rüth et al., 2021).
O termo “população em situação de rua” pode ser entendido como um grupo populacional heterogêneo que utiliza logradouros públicos, áreas degradadas ou unidades de acolhimento como espaço de moradia e de sustento, de forma temporária ou permanente; essas pessoas também possuem em comum a pobreza extrema, os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados e a inexistência de moradia convencional regular (Decreto n. 7.053, 2009). As pessoas em situação de rua enfrentam, diariamente, dificuldades que ameaçam sua própria vida (Hino et al., 2018). Contudo, é importante refletir até que ponto as mudanças advindas do contexto de pandemia impactaram na vida destas pessoas, que já se encontravam em situação de vulnerabilidades.
Compreender o significado de vulnerabilidade é essencial quando se trata de população em situação de rua - afinal, o adoecer nas ruas tem características singulares no processo de determinação social em saúde, sendo caracterizado por aspectos como qualidade e acessibilidade da/à alimentação, habitação, exposição a alterações climáticas (Aristides & Lima, 2009). O cenário, então, se torna agravante quando se considera que as pessoas em situação de rua estão entre os grupos potencialmente mais vulneráveis à pandemia de COVID-19 e, sem intervenções estratégicas, planos e ações adequados, elas podem estar expostas a taxas ainda mais altas de infecção e mortalidade (Kirby, 2020; Tsai & Wilson, 2020).
Tendo em vista os valores multidimensionais do termo, bem como uma tentativa de evitar o monolitismo analítico, este estudo assume como ponto de vista norteador as três dimensões de vulnerabilidade propostas por Ayres et al. (2006) - individual, social e programática -, para explicar a exposição de determinadas populações ao risco para doenças. O conceito de vulnerabilidade reconhece as suscetibilidades populacionais e a resposta social advinda de um contexto, recorrendo à análise de riscos como indicadores de necessidade de saúde, bem como a capacidade de resposta de diferentes grupos populacionais, da saúde pública e do Estado.
Este estudo buscou realizar uma revisão narrativa de literatura acerca das dificuldades enfrentadas pelas pessoas em situação de rua durante a pandemia de COVID-19 e teorizá-las a partir das três dimensões de Ayres et al. (2006). Ao apontar em cada dimensão os possíveis fatores e processos relevantes que colocam as pessoas em situação de rua em um contexto de vulnerabilidades, pode-se ter uma melhor compreensão sobre a realidade destes sujeitos à luz do contexto sociocultural mais amplo em que eles estão inseridos.
Método
Para guiar o desenvolvimento deste estudo, foi utilizado o método de revisão narrativa de literatura. A revisão narrativa constitui uma estratégia para discutir o estado da arte de um determinado tema, a partir de um aporte teórico e conceitual (Grant & Booth, 2009).
Estratégia de Pesquisa
Para realizar as buscas do corpus, foram elaborados os seguintes questionamentos: quais os processos de vulnerabilidade individual, social e programática que as pessoas em situação de rua vivenciaram durante a pandemia de COVID-19 em diferentes países? Em seu cotidiano, o que as tornam mais suscetíveis à exposição do novo coronavírus?
A busca se deu em quatro bases de dados de maior referência em produções de saúde pública: Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde (LILACS), Publons, Web of Sciences e no portal PubMed. Foram utilizadas, na equação de seleção, as seguintes palavras-chave: “pessoas em situação de rua” OR “morador de rua” AND “COVID-19” OR “coronavírus”, em português, inglês e espanhol.
Como critério de inclusão, foram admitidos todos os artigos publicados entre janeiro de 2020 e julho de 2021. Adicionalmente, algumas publicações que delineiam os processos de vulnerabilidade das pessoas em situação de rua fora de um contexto de pandemia também foram incluídas. Buscou-se, com isso, compreender questões específicas de predisposição e suscetibilidade desses grupos já conhecidas pela literatura, desde que tenham sido oriundas de publicações a partir do ano 2000. Foram excluídos estudos que apresentavam duplicidade, ou seja, publicações recuperadas em mais de uma das bases de dados, como também dissertações e teses.
Seleção e Análise de Artigos
Após terem sido recuperadas as informações-alvo, foi conduzida, inicialmente, a leitura dos títulos e resumos. Posteriormente, foi realizada a leitura completa de 42 (quarenta e dois) textos selecionados. Para analisar a produção científica identificada, não se utilizaram técnicas qualitativas e/ou quantitativas específicas de tratamento de dados, tendo sido feita a análise aprofundada de cada um dos textos, fato já justificado pela baixa produção de artigos empíricos dentro da temática. Assim, não foi necessário recorrer a juízes em casos de dúvidas. Outros estudos similares e recentes têm sido desenvolvidos dentro dessa perspectiva metodológica, especialmente sobre o contexto pandêmico (Lima et al., 2020; Pavani et al., 2021).
Como eixos de análise, buscou-se classificar os artigos quanto às três dimensões propostas por Ayres et al. (2006). Em sequência, prosseguiu-se com a análise da fundamentação teórica dos estudos, bem como a observação das características gerais dos artigos, tais como ano de publicação e língua, seguido de seus objetivos. Por fim, realizou-se a apreciação da metodologia aplicada, resultados obtidos e discussão.
Resultados
Nas 42 produções, todos os títulos mencionaram os termos: novo coronavírus ou a doença COVID-19; a maioria (60%) abordava questões da dimensão programática; 30% discutiam sobre a dimensão social; e 10% sobre a dimensão individual. Conforme Quadro 1, a maioria dos artigos é oriunda do Brasil. As metodologias mais utilizadas foram estudos de caso, pesquisa documental e estudos qualitativos, a partir do uso de entrevistas com pessoas em situação de rua e profissionais de saúde.
Autores | País | Objetivo |
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Robaina, 2020 | Brasil | Analisar problemáticas da PSR durante a pandemia a partir da Geografia, Biopolítica e Geopolítica |
Gatinho et al., 2020 | Brasil | Compreender como a PSR da sociedade bragantina vivencia a crise pandêmica |
Janeiro, 2020 | Brasil | Compreender as estratégias de atenção à PSR na pandemia em Nova York e Madrid, através de informações divulgadas em veículos jornalísticos |
Bonatto et al., 2020 | Brasil | Refletir sobre a PSR, o espaço urbano e sua correlação com a pobreza em meio a pandemia |
Campos & Resende, 2021 | Brasil | Descrever a atuação do Consultório de Rua de Belo Horizonte durante a pandemia |
Honorato & Oliveira, 2020 | Brasil | Propor sugestões práticas para a atuação no atendimento à PSR diante da pandemia no Brasil |
Lima et al., 2020 | Brasil | Revisar as repercussões da pandemia no enfrentamento e na saúde mental da PSR |
Nunes & Sousa, 2020 | Brasil | Debater sobre os desafios que podem acometer as mulheres em situação de rua na pandemia |
Oliveira & Alcântara, 2021 | Brasil | Analisar os desafios que a PSR enfrenta para garantir o Direito Humano à Alimentação Adequada e a Segurança Alimentar e Nutricional frente a pandemia |
Paula et al., 2020 | Brasil | Realizar uma etnografia das vivências da PSR durante a pandemia no Rio de Janeiro |
Da Silva & Paula, 2020 | Brasil | Problematizar as relações entre a PSR, agentes do Estado e a sociedade civil durante a pandemia |
Silva, Natalino & Pinheiro, 2020 | Brasil | Identificar as principais iniciativas municipais para o cuidado com a PSR durante a pandemia no Brasil |
Baggett et al., 2020 | Estados Unidos | Descrever um modelo inicial de cuidado com PSR elaborado por um centro qualificado em Boston |
Tucker et al., 2020 | Estados Unidos | Analisar as fontes de informação sobre COVID-19, suscetibilidade, estratégias de proteção, e acesso à saúde em jovens em situação de rua |
Imbert et al., 2020 | Estados Unidos | Descrever a resposta do Departamento de Saúde Pública de São Francisco às demandas da PSR durante a pandemia |
Conway et al., 2020 | Estados Unidos | Abordar as necessidades e a segurança da PSR durante a pandemia em Vancouver |
Tobolowsky et al., 2020 | Estados Unidos | Descrever a transmissão de SARS-CoV-2 e as estratégias de proteção em três abrigos para PSR em Washington |
Karb et al., 2020 | Estados Unidos | Identificar as características de abrigos que podem estar associadas à maior transmissão de SARS-CoV-2 |
Culhane et al., 2020 | Estados Unidos | Estimar taxas de mortalidade e o potencial de hospitalização por COVID-19 entre a PSR nos Estados Unidos |
Benavides & Nukpezah, 2020 | Estados Unidos | Investigar as demandas da PSR durante a pandemia e o papel governamental no Texas |
Calvo et al., 2020 | Espanha | Analisar a percepção de profissionais sobre as PSR em instituições especializadas durante a pandemia. |
Martin et al., 2020 | Espanha | Descrever a atenção aos problemas de saúde mental da PSR durante a pandemia em Salamanca. |
Roncero et al., 2020 | Espanha | Descrever a resposta e reorganização da rede de saúde mental com PSR na pandemia em Salamanca. |
Matulic-Domandzic et al., 2021 | Espanha | Abordar a incidência do confinamento por COVID-19 na PSR e o exercício do Serviço Social em Barcelona. |
Banerjee & Bhattacharya, 2021 | Índia | Analisar o cenário psicossocial da PSR na pandemia e as estratégias de atenção empregadas na índia. |
Banerjee & Bhattacharya, 2020 | Índia | Analisar os desafios de saúde mental enfrentados pela PSR na Índia e os riscos gerais de saúde pública. |
Gowda et al., 2020 | Índia | Destacar a prestação de cuidados e prevenção da COVID-19 em PSR com problemas de saúde mental durante a pandemia na Índia. |
Naik et al., 2020 | Índia | Avaliar os sistemas de cuidado para a PSR com problemas de saúde mental durante a pandemia na Índia. |
Barbieri, 2020 | Itália | Propor uma breve agenda operacional para conter a epidemia entre a PSR, na Itália. |
Ralli et al., 2020 | Itália | Apontar fatores que caracterizam o impacto da COVID-19 em populações vulneráveis e recomendações para evitar o contágio. |
Aragona et al., 2020 | Itália | Avaliar o impacto da pandemia em pacientes de saúde mental com histórico de imigração e/ou dificuldades socioeconômicas, incluindo a PSR. |
Lindner et al., 2021 | Alemanha | Avaliar testes universais para COVID-19 em um abrigo para PSR em Berlim. |
Van Rüth et al., 2021 | Alemanha | Esclarecer quais variáveis estão associadas à qualidade de vida da PSR durante a pandemia. |
Storgaard et al., 2020 | Dinamarca | Avaliar a PSR de Aarhus, na Dinamarca, em relação à infecção por COVID-19. |
Eriksen et al., 2021 | Dinamarca | Determinar a prevalência de SARS-CoV-2 entre PSR e trabalhadores de abrigos na Dinamarca. |
O’Shea et al., 2020 | Canadá | Descrever a experiência com instalações de abrigo, triagem e testes rápidos para PSR no Canadá. |
Tsai & Wilson, 2020 | Canadá | Abordar problemáticas da PSR a serem consideradas em relação ao COVID-19. |
Pavel, 2020 | Portugal | Refletir acerca do direito à cidade e à habitação em tempo de Covid-19 na Área Metropolitana de Lisboa. |
Roederer et al., 2021 | França | Compreender a exposição global e os fatores de risco entre a PSR em Ile-de-France. |
Wood et al., 2020 | Austrália | Descrever os desafios das medidas de precaução para PSR durante a pandemia na Austrália. |
Kirby, 2020 | Reino Unido | Descrever as intervenções do Reino Unido para prevenção de COVID-19 entre a PSR. |
Marcus et al., 2020 | África do Sul | Relatar as estratégias de cuidado em saúde com a PSR durante a pandemia em Tshwane, África. |
No período de março a dezembro de 2020, houve uma grande produção de materiais sobre a temática (85%), cujo maior número de publicações se encontrou, especificamente, entre maio e agosto. No primeiro semestre de 2021, foram compilados apenas seis artigos (15%).
De modo geral, pesquisadores de diferentes países não tardaram em expor suas preocupações com a saúde de pessoas em situação de rua, apontando problemáticas e iniciando discussões acerca de dificuldades oriundas da pandemia. Os materiais analisados debruçaram-se sobre questões diversas, mas a maioria procurou apontar os possíveis fatores que contribuem/contribuíram para a situação de maior vulnerabilidade programática das pessoas em situação de rua durante a pandemia, como ausência de políticas públicas específicas. Houve ainda artigos que procuraram conduzir mensurações acerca do contágio do novo coronavírus nesta população e, embora em menor quantidade, nenhum destes estudos foi realizado no contexto brasileiro.
Em contrapartida, houve uma diferença significativa entre os materiais produzidos na América Latina e os demais trabalhos desenvolvidos em outros lugares: os estudos latinos realizaram, principalmente, produções relacionadas aos processos de vulnerabilidade e discussões de ordem política - talvez porque as estratégias e investimentos governamentais têm sido insuficientes, por isso a necessidade de trazer à luz estes argumentos. Já os estudos de outros continentes, embora também englobassem as mesmas discussões, possuíam uma variedade de temas abordados, tendo a maior quantidade de estudos de caso e dados de estatística descritiva - método que ficou em carência nos estudos latinos.
Alguns estudos analisados relataram o enfrentamento do novo coronavírus em seus países e as medidas de cuidado em saúde voltadas, especificamente, à população em situação de rua, como Alemanha, Dinamarca, Canadá, embora seja relevante ressaltar que nenhum desses países registrou uma mensuração a nível nacional das taxas de contaminação, hospitalização ou mortalidade dessa população. Estes estudos são apenas um recorte de um grupo social que vivencia realidades diferentes em instituições específicas de acolhimento e abrigo. No entanto, não se pode negar resultados otimistas de algumas pesquisas, considerando países como Espanha e Reino Unido que se destacaram com a criação e aplicação de estratégias governamentais muito mais rápidas e eficazes no enfrentamento da pandemia e no cuidado com essa população, resultando em maior controle da disseminação do vírus.
Com relação aos estudos realizados no Brasil, embora a maioria dos artigos concordasse que as estratégias governamentais voltadas para essas pessoas, realizadas durante a pandemia de COVID-19 (desde sistemas de abrigos, testagem e até a contenção do vírus) tenham sido deficientes - se comparadas às medidas tomadas por países como Alemanha e Dinamarca, por exemplo -, ainda assim, a comunidade científica brasileira tem se esforçado para produzir conhecimentos acerca dos processos de vulnerabilidade das pessoas em situação de rua. De acordo com esses estudos, salvo os poucos casos em que houve baixa incidência de contaminação pelo novo coronavírus nas pessoas em situação de rua em abrigos, o resultado inverso - altíssimo risco e contaminação deste grupo - foi o mais comum.
Ao considerar que a maioria dos países direcionou seus esforços para a criação de abrigos provisórios, a fim de promover o distanciamento físico e a quarentena das pessoas em situação de rua, estes foram os locais de maior risco e contaminação, tanto para residentes quanto para profissionais que trabalharam nessas instituições. Ressalta-se que as preocupações com as pessoas em situação de rua partiram principalmente do âmbito da saúde física, em contraste com a escassez de ações voltadas à saúde mental. Apenas seis artigos analisados apresentaram os efeitos da pandemia na saúde mental dessas pessoas.
Os pontos identificados foram interpretados segundo as dimensões da vulnerabilidade de Ayres et al. (2006). A distinção entre essas dimensões é meramente para fins de operacionalizar a discussão; nas publicações - assim como nos fluxos de interação da vida real - elas são complexas e imbricadas.
Discussão
Vulnerabilidade na dimensão individual
A dimensão individual da vulnerabilidade, originalmente, parte do princípio de que todos os indivíduos são suscetíveis a infecções e adoecimentos, considerando como fator essencial o seu comportamento pessoal, ou seja, aspectos do seu modo de vida que podem acentuar a exposição e contaminação do vírus. Portanto, pode-se dizer que a vulnerabilidade individual engloba as características da vida do indivíduo que contribuem para uma maior suscetibilidade a uma situação problemática, como: conhecimentos, atitude, comportamento, relações familiares e de amizade, situação material, situação psicoemocional, situação física (Ayres et al., 2006).
Estudos apontam que a escassez de informação das pessoas em situação de rua pode dificultar o cumprimento de várias medidas protetivas essenciais à saúde e recomendadas pela Organização Mundial de Saúde (Bonatto et al., 2020; Nunes & Sousa, 2020). A baixa acessibilidade à informação se configurou, particularmente, no momento inicial da pandemia. Em momentos seguintes, as pessoas em situação de rua passaram a ter mais acesso ao conhecimento sobre a doença e seus métodos preventivos por meio de jornais impressos e informações de profissionais (Tucker et al., 2020). Apesar disso, é relevante delinear a fragilidade de processos de comunicação com este grupo, e esses dados já se repetiram durante outros surtos de doenças infecciosas (Leung et al., 2008).
A moradia, em sua forma contemporânea, pode ser caracterizada como uma construção erguida com a finalidade de abrigo, segurança e privacidade. Esta moradia, que deveria ser um direito de todos, na prática, tornou-se um privilégio (Coolen & Meesters, 2012). Em meio ao contexto pandêmico, em que praticar o isolamento domiciliar físico e/ou a quarentena é uma solicitação prioritária, para a população em situação de rua, que faz dos logradouros públicos sua casa, o isolamento domiciliar se tornou um processo distante do cotidiano da rua, amplificando as vulnerabilidades individuais.
As situações de pobreza e de moradia irregular que frequentemente integram a conjuntura das pessoas em situação de rua dificultam o acesso a instrumentos básicos de higiene, serviços de saúde e outras políticas públicas (Gatinho et al., 2020; Tsai & Wilson, 2020). Estudos mostram que objetos e materiais de higiene inexistem ou são limitados e até mesmo o uso do banheiro é dificultado (Paula et al., 2020; Wood et al., 2020).Pesquisas também mostraram que essas pessoas circulam pela cidade em grupos, com tendência a ser geograficamente mais móvel do que a população em geral (Gray et al., 2011), e acabam não tendo acesso à testagem, à possível identificação de casos suspeitos, ao isolamento e a tratamentos adequados, mesmo quando são infectadas pelo vírus (Bonatto et al., 2020).
Somado a isso, as pessoas em situação de rua podem apresentar mais dificuldade no reconhecimento dos sintomas da COVID-19. Tosse, falta de ar, dores torácicas e outros sintomas de doenças respiratórias são frequentes neste grupo e podem ser confundidos como sintomas de tuberculose. Isso pode agravar o processo de adoecimento por uma identificação tardia dos casos, levando a situações mais graves ou à morte (Burki, 2013).
As pessoas em situação de rua lidam com insegurança alimentar (Backes & Mattos, 2019; Dachner & Tarasuk, 2002), passando a depender do recebimento de doações e arrecadações, além da prática de adquirir alimentos em lixeiras. Com os decretos de fechamento do comércio em cidades de diferentes países, houve um esvaziamento das ruas e uma redução de trabalhadores em circulação, diminuindo, assim, a possibilidade de realização dessas ações (Nunes & Sousa, 2020; Oliveira & Alcântara, 2021; Paula et al., 2020). Sem obter uma alimentação minimamente saudável, pessoas em situação de rua tendem a se encontrar desnutridas, comprometendo sua função imunológica, e tornando-se mais vulneráveis à COVID-19 (Gatinho et al., 2020; Jiang et al., 2020).
Estudos apontam que o registro de sofrimento psíquico associado ao uso abusivo de álcool e outras drogas têm aumentado significativamente após o início da pandemia na população em situação de rua (Aragona et al., 2020; Culhane et al., 2020; Honorato & Oliveira, 2020). Condições como idade avançada, vínculos familiares fragilizados, declínio físico acelerado, maior prevalência de comorbidades físicas e mentais (Albon et al., 2020; Baggett et al., 2020; Culhane et al., 2020; Lima et al., 2020; Martin et al., 2021; Schrooyen et al., 202; Vieira et al., 2020) têm sido frequentes em pessoas em situação de rua e compõem um contexto de vulnerabilidade individual nesse grupo. Além disso, é também necessário compreender a vulnerabilidade no contexto social como uma forma de compreender o sujeito, recolocando-o na perspectiva da dupla-face: o sujeito e sua relação com a sociedade em que está inserido.
Vulnerabilidade na dimensão social
Se na dimensão da vulnerabilidade individual se questionam os processos individuais e acessibilidade à informação, que podem aumentar ou diminuir a suscetibilidade a uma doença, na dimensão social, questionam-se os significados que estas informações adquirem na vida dos sujeitos, a partir de valores e interesses coletivos (Florêncio, 2018).
A dimensão social da vulnerabilidade diz respeito à vida em sociedade, remetendo a aspectos materiais, culturais e políticos, que podem promover mudanças nestes âmbitos, os quais não dependem apenas da pessoa (individualmente). Portanto, aspectos tais como normas sociais, referências culturais, relações de etnia, estigma e discriminação, acesso à educação, emprego, salário, dentre outros, também são aspectos que ajudam a entender comportamentos, processos e práticas relacionadas à exposição dos sujeitos à infecção (Ayres et al., 2011). As pessoas em situação de rua têm sofrido negligências, discriminações, preconceitos e violências de diversas formas em seu cotidiano (Rolnik, 2012). Estudos apontaram inúmeras violências sofridas, boa parte delas associadas à falta de moradia, à discriminação racial e étnica, e à xenofobia (Businelle et al., 2015; Wrighting et al., 2019; Zerger et al., 2014). Em Nova York, por exemplo, pacientes negros hospitalizados e de outras etnias tiveram as piores taxas de mortalidade para a COVID-19 nos Estados Unidos (Center for Disease Control and Prevention [CDC], 2020); e no Brasil, o boletim epidemiológico referente a 21ª semana da pandemia de COVID-19 descrevia que mais da metade do número de casos confirmados da doença eram de raça/cor desconhecida (Ministério da Saúde do Brasil, 2020).
A situação de discriminação e preconceito torna o sujeito vulnerável por si só. No entanto, pode-se configurar como um fator agravante no contexto da pandemia. Pesquisa mostrou que o sofrimento psicossocial da discriminação afeta negativamente a saúde mental e física das pessoas em situação de rua e pode aumentar a probabilidade de comportamentos de risco à saúde (Williams et al., 2003).
Estudos também foram realizados com pessoas imigrantes. Como a maioria da população imigrante que vive em situação de rua tira sua subsistência de pequenos trabalhos autônomos, com os diferentes decretos de restrição de deslocamento e fechamento do comércio, muitas ficaram fixadas nas margens das estradas das cidades, com um modo de vida extremamente precarizado, sem opção de voltar para as cidades ou países de origem (Aristides & Lima, 2015; Banerjee & Bhattacharya, 2020).
No que se refere ao tratamento e à assistência em saúde que as pessoas em situação de rua recebem, apesar das políticas públicas assegurarem o atendimento gratuito nos serviços brasileiros, por exemplo, as instituições governamentais têm demonstrado dificuldade em lidar com esse grupo. Estudos mostraram recorrentes casos de desconsideração das especificidades intrínsecas ao cuidado com as pessoas em situação de rua, bem como o preconceito institucionalizado nos serviços de saúde (Haas et al., 2001; Vasconcelos et al., 2019). Quando atendidas pelos serviços de saúde, as pessoas em situação de rua frequentemente são vítimas de estigmatização, descaso e negligência no âmbito hospitalar (Haas et al., 2001).
O despreparo por parte daqueles que deveriam ser cuidadores pode atuar como uma barreira contra a obtenção essencial de serviços necessários, resultando em evasão ou atraso na busca por tratamento, não adesão ou interrupção e resultados insatisfatórios dos procedimentos de saúde (Skosireva et al., 2014; Vasconcelos et al., 2019).
Tornar visíveis essas questões permite uma melhor compreensão dos processos de saúde das pessoas em situação de rua em face da COVID-19. A qualidade de vida individual envolve também questões coletivas, estando diretamente relacionada com as políticas sociais e econômicas adotadas pelos países para a promoção de saúde e contenção do vírus (Janeiro, 2020). Neste contexto, insere-se a dimensão programática da vulnerabilidade.
Vulnerabilidade na dimensão programática
Esta dimensão busca refletir como, em determinadas circunstâncias sociais, as instituições - sejam elas de saúde, educação, bem-estar social ou cultura - atuam como elementos que reproduzem, ou até mesmo aprofundam a situação social de vulnerabilidade (Ayres et al., 2006). Nesse sentido, a dimensão programática é também uma dimensão social, pois configura um conjunto de relações sociais que permitem que os serviços e instituições funcionem.
Em uma situação de pandemia, quais são as respostas dadas pelos serviços de saúde para que os contextos desfavoráveis sejam superados a nível individual e social pelas pessoas em situação de rua? Quais ferramentas estão sendo propiciadas para que este grupo tenha a oportunidade de transformar suas relações, valores, interesses, a fim de solucionar, ou ao menos atenuar suas situações de vulnerabilidade? A discussão sobre inclusão e acessibilidade aos recursos sociais está diretamente vinculada à forma como a sociedade está disposta na relação Estado-sociedade. Estudos concluem que a saúde das pessoas em situação de rua está diretamente afetada pela gestão das políticas públicas (Oliveira & Alcântara, 2021; Schrooyen et al., 2021).
Estar isolado em casa e poder contar com instrumentos de proteção, assim como ter acesso a serviços de saúde, água, produtos de higiene, medicamentos e uma alimentação saudável, não é apenas uma forma de adaptação a uma nova realidade: pode significar a diferença entre a vida e a morte. Em vários países, a maioria das iniciativas de cuidado voltadas para pessoas em situação de rua partiram de ONGs, igrejas e ações individuais (Honorato & Oliveira, 2020).
Dentre as principais estratégias identificadas, notou-se a oferta de infraestrutura (adaptação dos pontos de acolhimento e instalação de abrigos temporários) e de estratégias de educação e prevenção em saúde (distribuição de itens de higienização, orientação sobre a existência da doença e formas de prevenção, testagem). Contudo, a maioria dos serviços e ações de saúde se concentrava nos grandes centros urbanos e foi conduzida por voluntários (Campos & Resende, 2021; Honorato & Oliveira, 2020; Lima et al., 2020).
Até o presente momento, o governo federal brasileiro não se pronunciou quanto à criação e à implementação de estratégias emergenciais e específicas para as pessoas em situação de rua (Honorato & Oliveira, 2020). Já a nível internacional, cidades como Madrid, na Espanha, demonstraram eficácia na elaboração e prática de estratégias desde o início da pandemia (Janeiro, 2020). Nos Estados Unidos, os governos locais se esforçaram na criação de locais de acolhimento para as pessoas em situação de rua, desde abrigos improvisados em estacionamentos, bibliotecas, hotéis e centros de convenções, até veículos recreativos e trailers (Benavides & Nukpezah, 2020). No Reino Unido, o planejamento e a criação de locais de cuidado em saúde deram-se rapidamente, além disso, as pessoas em situação de rua estavam alocadas entre sintomáticas e não sintomáticas com grupos específicos para seu acompanhamento (Kirby, 2020).
Historicamente, a assistência à saúde das pessoas em situação de rua é permeada por vulnerabilidades institucionais (Bordignon et al., 2011; Hino et al., 2018) e integra barreiras, tais como: falta de albergues adequados para a administração de medicamentos, locais para higiene corporal, dificuldades no acesso aos recursos terapêuticos e poucas ações de treinamento e formação dos profissionais de saúde para a área (Vasconcelos et al., 2019). Estudos destacaram também a necessidade de apoio à saúde mental das pessoas em situação de rua (Tucker et al., 2020). Iniciativas públicas direcionadas a este tipo de serviço se mostraram escassas, destacando-se apenas relatos da Índia (Gowda et al., 2020), Espanha (Roncero et al., 2020) e Itália (Aragona et al., 2020).
Mesmo estando em instituições de acolhimento e abrigos, as pessoas em situação de rua não estão protegidas de aglomerações. Relatos de pesquisas mostraram que esses locais são superpovoados, o que pode ampliar a disseminação do novo coronavírus (Baggett et al., 2020; Mcmichael et al., 2020). Em Berlim, nenhuma das pessoas em situação de rua testadas teve resultado positivo para o novo coronavírus (Lindner et al., 2020). Esta mesma estatística persistiu na Dinamarca, na primeira onda da pandemia (Storgaard et al., 2020), e no Canadá, houve pouquíssimos registros de infecção pelo novo coronavírus entre pessoas em situação de rua (O’Shea et al., 2020). Por outro lado, estados como Rhode Island (Karb et al.2020), Massachusetts (Baggett et al., 2020), Califórnia (Imbert et al., 2020) e Washington (Tobolowsky et al., 2020), nos Estados Unidos, a cidade de Bruxelas, na Bélgica (Schrooyen, 2021), e Paris, na França (Roederer, 2021), registraram uma prevalência preocupante de COVID-19 na população em situação de rua e uma alta disseminação do vírus nos abrigos. Não há registros oficiais sobre o número de pessoas em situação de rua contaminadas pelo novo coronavírus a nível global, nem o número de pessoas que se encontram abrigadas.
Por fim, considera-se que a pandemia de COVID-19 atua como um reflexo das desigualdades já existentes na dinâmica social de vários países. Trata-se de uma questão global de saúde, social, política e de direitos humanos. Esta revisão, ao analisar as produções sobre as dificuldades enfrentadas pelas pessoas em situação de rua durante a pandemia de COVID-19, a partir das três dimensões de vulnerabilidade - individual, social e programática -, refletiu sobre um complexo de questões individuais e coletivas que se consubstanciam no cotidiano das ruas.
Na dimensão individual, as dificuldades são pré-existentes. Isto é, já ocorriam antes da pandemia, e se agravaram com o contexto atual. Na social, o descaso e o preconceito também perduraram. Na dimensão programática, não só a deficiência de práticas públicas equânimes foi destacada, como houve dificuldade em criar e aplicar estratégias eficientes durante a pandemia.
De fato, a criação de locais de acolhimento improvisados foi a medida mais comum entre os países, no entanto, na maioria destes locais não houve controle rigoroso das medidas preventivas de saúde e o número de profissionais nos abrigos era reduzido. Adicionalmente, notou-se que, dentre as medidas aplicadas durante a pandemia, o cuidado em saúde mental das pessoas em situação de rua não foi prioridade, com poucos registros de serviços voltados a este âmbito.
Estes dados são relevantes quando se considera que os processos de saúde-doença são diretamente afetados pela Política de Estado. Não se trata só de adoecimento, no sentido restrito do termo, mas de uma crise global nos âmbitos econômico, político, social, ambiental e ético, que desvela a exclusão e invisibilidade de certos grupos como consequência da exploração capitalista, e isso demonstra, de modo mais evidente, como ela se reproduz e se fortalece nas formas dominantes de gestão política. O contexto pandêmico potencializou a desigualdade e exclusão social das pessoas em situação de rua e, com isso, lacunas e tendências podem ser indicadas em estudos posteriores. A literatura analisada indica a necessidade de pesquisas acerca das interseccionalidades das vidas precárias na rua, da qualidade de ações e serviços de saúde e da implantação de políticas de garantia de direitos básicos às pessoas em situação de rua, no contexto da COVID-19.
Agradecimentos
Agradecimentos à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (FAPEAM).
Contribuição dos autores
Gabrielle Figueiredo Bruno: Conceitualização, Curadoria dos Dados, Análise Formal, Metodologia, Visualização, Redação - rascunho original, Redação - revisão e edição
Elza Beatriz Barros de Paiva: Curadoria dos Dados, Redação - revisão e edição
Marck de Souza Torres: Metodologia, Supervisão, Redação - revisão e edição
Alessandra Aniceto Ferreira de Figueirêdo: Supervisão, Redação - revisão e edição
Breno de Oliveira Ferreira: Conceitualização, Curadoria dos Dados, Aquisição de financiamento, Metodologia, Supervisão, Redação - rascunho original, Redação - revisão e edição