O défice cognitivo ligeiro (DCL) é definido como um declínio cognitivo ligeiro em relação ao nível prévio de desempenho, com preocupação pelo indivíduo, de uma pessoa próxima ou do médico. O DCL não interfere de forma significativa na capacidade de ser independente nas atividades da vida diária, não ocorre exclusivamente no contexto de delirium e não é melhor explicado por outro distúrbio mental (por exemplo, depressão major ou esquizofrenia) (DSM-5-TR, 2022). O DCL é, então, um estado intermédio entre a função cognitiva normal e a demência. A prevalência nos indivíduos com idade entre os 60 anos e 84 anos varia entre 6,7% e 25,2%, dependendo da população estudada e dos critérios de diagnóstico utilizados (Petersen et al., 2018). Da mesma forma, as taxas de incidência variam entre 11 e 111 por 1000 doentes/ano (65 a 75 anos) (Petersen, 2020).
Para além da idade avançada, outros possíveis fatores de risco podem promover ou prever o desenvolvimento de DCL, nomeadamente o baixo nível de educação, fatores de risco cardiovascular (por exemplo, hipertensão arterial, diabetes mellitus, obesidade), doença vascular (por exemplo, enfarte agudo do miocárdio, acidente vascular cerebral), sintomatologia neuropsiquiátrica (por exemplo, agitação, apatia, depressão, ansiedade) e fatores genéticos (por exemplo, polimorfismo da Apolipoproteína E) (Petersen et al., 2018; Dilliott et al., 2021).
Um aspeto importante, mas nem sempre devidamente valorizado, é o facto do diagnóstico de DCL não dispensar a procura de causas subjacentes ou que contribuam para o próprio défice. Através da história clínica, adjuvada com informação de um familiar ou cuidador, do exame físico global e do exame neurológico, de um estudo de imagem cerebral, da avaliação neuropsicológica e de outros exames em casos selecionados, é possível, com alguma frequência, detetar fatores que contribuem para o DCL, e que podem ser passíveis de correção (DGS, 2011).
Até ao momento, nenhum tratamento farmacológico mostrou ser eficaz na melhoria dos sintomas associados ao DCL ou na atenuação da progressão para demência, mas continuam a decorrer ensaios clínicos em todo o mundo (Brodziak et al., 2015). Com base na descrição das alterações na neurotransmissão serotoninérgica em doentes com esta patologia, tem sido sugerido por alguns autores que o tratamento com antidepressivos do grupo dos inibidores seletivos da recaptação da serotonina poderá trazer algum benefício na melhoria dos sintomas cognitivos no DCL (Lenze et al., 2020).
Assim sendo, o objetivo desta revisão é reunir a atual evidência científica acerca do benefício da vortioxetina no DCL.
Método
Estratégia de Pesquisa
Para a elaboração desta revisão foi realizada uma pesquisa de meta-análises, revisões sistemáticas, ensaios clínicos aleatorizados e controlados, estudos observacionais (estudos de coorte, estudos caso-controlo e estudos transversais), séries de casos, casos clínicos e normas de orientação clínica indexados nas bases de dados eletrónicas MEDLINE/Pubmed, The Cochrane Library, Database of Abstracts of Reviews of Effects (DARE), National Guideline Clearinghouse (NC«GC), BMJ Evidence-Based Medicine (BMJ EBM), National Institute for Health and Care Excellence (NICE), Canadian Medical Association Practice Guidelines Infobase (CMAPGI), e Bandolier. Para a seleção dos artigos foram utilizadas equações com os seguintes termos Medical Subject Headings (MeSH): vortioxetine e cognitive dysfunction.
A pergunta de investigação foi formulada segundo a estratégia PICO (Quadro 1): Nos doentes com défice cognitivo ligeiro (P), o uso de vortioxetina (I), em comparação com outros fármacos ou não tratamento (C), produz resultados idênticos a nível da função cognitiva? (O)
Critérios de Inclusão
Foram considerados todos os artigos, sem restrição linguística, publicados até dezembro de 2022. Os critérios de inclusão abrangeram estudos que incidissem sobre a utilização de vortioxetina para o tratamento do défice cognitivo ligeiro. Foram excluídos 1) estudos em animais; 2) revisões de literatura não sistematizada, livros, artigos de opinião; 3) artigos que incluíssem doentes cujo défice cognitivo fosse melhor explicado por causas reversíveis, patologia psiquiátrica, demência, fármacos ou substâncias de abuso.
Seleção de Artigos
O processo de seleção de artigos seguiu as linhas orientadoras do protocolo PRISMA, revisto em 2020. Após pesquisa nas bases de dados e exclusão dos artigos duplicados, dois dos autores, de forma independente, analisaram os abstracts dos artigos encontrados. O processo de seleção e avaliação dos estudos, através da aplicação dos critérios de inclusão e de exclusão, foi realizado em paralelo pelos quatro investigadores. De seguida, após a obtenção da versão completa dos artigos selecionados na primeira fase de pesquisa, procedeu-se à sua leitura na íntegra. Foram ainda consideradas as referências desses artigos para a pesquisa. Para avaliar a qualidade dos estudos (nível de evidência) e a força de recomendação, foi utilizada a escala Strength of Recommendation Taxonomy (SORT), da American Academy of Family Physicians. Discordâncias entre autores foram discutidas e resolvidas por consenso. A informação selecionada pelos autores, a partir dos artigos selecionados, foi a seguinte: nome dos autores, ano da publicação, tipo de estudo, tamanho da amostra, idade da amostra, intervenção, resumo dos principais resultados e conclusões.
Resultados
Da pesquisa inicial, foram obtidos 127 artigos. Destes, foram excluídos 122 artigos após a leitura do título e resumo e 3 após a leitura integral, por não cumprirem os critérios de inclusão ou por se incluírem nos critérios de exclusão, conforme descrito na Figura 1. No final foram incluídos nesta revisão 2 artigos, cujas características estão sumarizadas no Quadro 2.
Discussão
Não existem atualmente terapêuticas aprovadas para o tratamento do défice cognitivo ligeiro. Em Portugal, são comercializados alguns suplementos que publicitam efeitos nesta área, contudo o elevado custo e a falta de comparticipação na maioria das terapêuticas disponibilizadas, bem como a falta de estudos adequados, são condicionantes da aplicação dessas práticas nesta população. A isto acresce a dificuldade de acesso no Serviço Nacional de Saúde a consultas de Psicologia em tempo útil que permitam a realização de uma intervenção cognitiva adequada e atempada. Estas dificuldades tornam-se mais evidentes no DCL, uma vez que estes escassos recursos são muitas vezes restringidos aos doentes com défices cognitivos mais avançados ou mesmo em situações de demência instalada.
Dado o número limitado de estudos referentes a este tema e a falta de recomendações claras de intervenção no DCL, são necessários mais ensaios clínicos para reforçar a evidência de qual a melhor prática. Ainda assim, a atual evidência sugere que, para a população com DCL, a terapêutica farmacológica com vortioxetina oferece uma opção apropriada para a melhoria da função cognitiva. Lenze et al. (2020) demonstraram que a associação de vortioxetina e treino cognitivo se associa a melhorias da função cognitiva global superiores às da associação placebo e treino cognitivo. Este estudo apresenta algumas limitações, nomeadamente o tamanho limitado da amostra e o facto de ter sido realizado apenas num único centro. Tan & Tan (2021) demonstraram que o tratamento com vortioxetina se associou a uma melhoria significativa da função cognitiva, avaliada através de vários testes, com um perfil de segurança favorável. Após a intervenção, a maioria dos utentes passou de valores compatíveis com DCL para valores compatíveis com função cognitiva normal. Este estudo apresenta algumas limitações, nomeadamente o tamanho limitado da amostra e o facto de ser um ensaio clínico não cego e com apenas um braço, não havendo grupo de controlo. O facto de o ensaio ter decorrido ao longo de apenas 6 meses também não permite perceber a duração dos efeitos observados.
Estudo | Tipo de estudo | Intervenção | Amostra (n) | Resultados | Conclusões | NE |
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Lenze et al. (2020) | Ensaio clínico aleatorizado e cego | Vortioxetina 10mg vs. Placebo (ambos os grupos receberam treino cognitivo computorizado) | Pacientes com ≥ 65 anos com défice cognitivo Grupo Vortioxetina 10mg: n=51 (44 completaram o follow-up de 26 semanas) Grupo Placebo: n=49 (41 completaram o follow-up de 26 semanas) | Avaliação com a aplicação do NIH Toolbox Cognition Battery Fluid Cognition Composite. O grupo Vortioxetina demonstrou uma melhoria superior da função cognitiva face ao placebo. Apenas se verificou significância estatística na dimensão de organização de cartas à semana 12. Avaliação secundária com a aplicação do UCSD Performance-Based Skills Assessment. Ambos os grupos demonstraram melhoria significativa da função cognitiva face ao valor inicial (Vortioxetina: média=3,22, SD=1,19; Placebo: média=1,39; SD=1,23). As diferenças entre os grupos não foram estatisticamente significativas (p=0,29). | A associação de vortioxetina e treino cognitivo demonstrou melhoria da função cognitiva global superiores à demonstrada pela associação placebo e treino cognitivo. O tratamento foi bem tolerado. | 2 |
Tan & Tan (2021) | Ensaio clínico de fase II, de braço único, não cego | Vortioxetina 5 mg, que poderia ser titulada ao fim de 1 e 3 meses, em incrementos de 5mg, segundo avaliação clínica com aplicação do MoCA | Adultos com DCL sem sintomas depressivos (excluídos pela aplicação do PHQ-9) Amostra: n=111 (40,5% descontinuaram o follow-up) | Com a exceção de um indivíduo cuja dose foi titulada para 10mg ao 3º mês, todos os restantes receberam 5mg ao longo de todo o estudo. Avaliação com a aplicação do MoCA: o valor melhorou significativamente aos 1, 3 e 6 meses (p < 0,001) e a maioria dos indivíduos retornou à função cognitiva normal no fim do estudo. Avaliação com a aplicação do DSST: o valor melhorou significativamente aos 1, 3 e 6 meses (p < 0,001). Avaliação com a aplicação do CIBIC+: a baixa taxa de resposta não permitiu avaliar a significância estatística dos resultados, ainda que a maioria dos indivíduos tenha demonstrado uma melhoria do valor obtido. Avaliação com a aplicação do CDR: o valor melhorou significativamente aos 6 meses (p < 0,001), com o valor médio a subir para valores normais de função cognitiva. Avaliação com a aplicação do FAQ: a baixa taxa de resposta não permitiu avaliar a significância estatística dos resultados, mas não houve alterações relevantes no valor obtido. | O tratamento com vortioxetina associou-se a melhoria clinicamente significativa da função cognitiva, com um perfil de segurança favorável. | 2 |
Nota. CDR - Clinical Dementia Rating; CIBIC+ - Clinician Interview-Based Impression of Change plus Caregiver Input; DCL - Défice Cognitivo Ligeiro; DSST - Digit Symbol Substitution Test; FAQ - Functional Activities Questionnaire; MoCA - Montreal Cognitive Assessment; NE - Nível de Evidência; NIH - National Institutes of Health; PHQ-9 - Patient Health Questionnaire 9; SD - Desvio padrão; UCSD - University of California San Diego.
Assim, com base na evidência atual, a recomendação que a terapêutica com vortioxetina é mais eficaz do que o placebo na obtenção de melhoria da função cognitiva em indivíduos com défice cognitivo ligeiro, é de qualidade fraca (Força de recomendação B), no entanto, a sua utilização pode ser benéfica em indivíduos sem contraindicação à sua utilização. Estes resultados são promissores na medida em que mostram evidência encorajadora quanto ao papel de um fármaco para um problema que atualmente não tem tratamentos farmacológicos aprovados. A vortioxetina tem-se demonstrado segura e relativamente inócua a nível de efeitos laterais.
Mais estudos são necessários para confirmar o efeito evidenciado nestes dois estudos e também para o melhor caracterizar, nomeadamente definindo a dose e duração ótima de tratamento, as técnicas de aplicação simultânea de terapia cognitiva, a aplicabilidade em diferentes populações, entre outros.
Contribuição dos autores
Sandra Ribeiro: Concetualização, curadoria de dados, análise formal, investigação, metodologia, supervisão, validação, redação.
Joaquim Santos: Concetualização, curadoria de dados, análise formal, investigação, metodologia, supervisão, validação, redação.
Ana Teresa Fróis: Concetualização, curadoria de dados, análise formal, investigação, metodologia, supervisão, validação.
Joana Mendes: Concetualização, curadoria de dados, análise formal, investigação, metodologia, supervisão, validação.