As Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST) persistem como um problema de saúde pública mundial, possuindo elevados índices de prevalência na população (Miranda et al., 2021). Uma questão que pode estar ligada à ascensão nas taxas das IST’s é o estigma que as envolve, dificultando inclusive a busca pelo atendimento em saúde (Marwan et al., 2019). Em 2016, a Organização Mundial da Saúde (OMS) estimou uma incidência de 376,4 milhões de casos de IST’s curáveis em pessoas entre 15 a 49 anos, de modo que desses casos 6,3 milhões corresponderam à infecção pela sífilis (Rowley et al., 2019).
A sífilis é uma infecção crônica causada pela bactéria Treponema pallidum, passível de tratamento e cura. Porém, sem o devido tratamento, a infecção pode progredir ao longo de anos por meio de uma série de estágios clínicos que podem levar a complicações neurológicas e cardiovasculares (Trovato et al., 2021). É didaticamente dividida em sífilis adquirida, sífilis em gestantes e sífilis congênita e todas as formas são de notificação compulsória no território brasileiro (Brasil, 2017).
No Brasil, em 2019, foram registrados 152.915 casos de sífilis adquirida, 61.127 casos de sífilis gestacional e 24.130 casos de infecção congênita. Em um contexto geral, os casos apresentaram diminuição na maior parte das regiões brasileiras, porém, de acordo com o Ministério da Saúde, essa redução pode ter ocorrido por inconsistências nos dados decorrentes da morosidade em alimentar os bancos virtuais, da subnotificação e também devido ao remanejo de profissionais para atender à pandemia do Coronavírus (Brasil, 2020).
A sífilis é um evento sentinela em saúde, sendo potencialmente evitável. Seus índices elevados, especialmente quanto a transmissão vertical, evidenciam falhas no sistema de saúde, como a má qualificação de recursos humanos, a insuficiência de profissionais ou, ainda, a não detecção da doença/captação da gestante e parcerias, desde ao atendimento de planejamento reprodutivo até na realização do pré-natal, parto e pós-parto (Nunes et al., 2017; Vianna et al., 2017).
Partindo do pressuposto de que ações em desacordo com os protocolos de saúde vigentes resultam na perda de oportunidade de diagnóstico, tratamento e captação das parcerias sexuais de forma adequada (Santos et al., 2017), verifica-se a importância de compreender quais são os conhecimentos, as crenças e as condutas dos profissionais que atendem diretamente os casos de sífilis, tanto em âmbito hospitalar quanto na rede básica de saúde, ou seja, abrangendo todas as fases que englobam o pré-natal, o parto e o puerpério.
Ainda, deve-se atentar ao perigo da disseminação de informações inadequadas, influenciando o comportamento da comunidade atendida de forma incongruente (Sanz-Lorente, 2017). Com a reemergência da sífilis nos últimos anos, é de suma importância que as equipes de saúde estejam preparadas e bem informadas sobre todas as etapas que envolvem o manejo de tal patologia (Bonnewell et al., 2020), fato que justifica a realização deste estudo. Assim, diante do contexto elucidado, objetivou-se identificar o conhecimento, as crenças e as condutas dos profissionais que prestam assistência direta às crianças diagnosticadas com sífilis congênita e as suas mães.
Método
Participantes
Tratou-se de um estudo exploratório descritivo, com abordagem qualitativa. Os participantes foram 40 profissionais de saúde atuantes na área materno-infantil, entre médicos, enfermeiros, técnicos e auxiliares de enfermagem, de um hospital universitário e de dez unidades de Estratégia de Saúde da Família, localizados no município de Rio Grande, no Rio Grande do Sul. Os critérios de inclusão foram: ser integrante da equipe multiprofissional das unidades de pediatria, maternidade e Centro Obstétrico de um hospital público ou ser médico ou enfermeiro pré-natalista da rede básica de atenção à saúde no município do estudo. Foram critérios de exclusão: estar em atestado, férias ou afastamento durante o período de coleta de dados.
Material
Foram utilizadas entrevistas com questionários semiestruturados que possuíam perguntas acerca do conhecimento geral sobre a sífilis, seu tratamento, manejo do parceiro, da gestante e da criança com sífilis. Para tratamento dos dados empregou-se a análise textual discursiva, que possui como pilares a unitarização, a categorização e a comunicação do entendimento emergente, propiciando novas compreensões acerca de determinada temática (Moraes & Galiazzi, 2011).
Procedimento
Os profissionais de atendimento hospitalar foram selecionados por meio de amostragem não probabilística por conveniência, de acordo com a presença no local de estudo e a disponibilidade para participar da pesquisa no momento da coleta de dados, sendo abordados os profissionais em todos os turnos nas referidas unidades. Já os pré-natalistas foram selecionados de acordo com indicação de puérperas com VDRL positivo internadas no hospital universitário, dos locais nos quais haviam realizado seu pré-natal e também pela disponibilidade para receber a pesquisadora e participar do estudo.
Os dados foram coletados por meio entrevistas audiogravadas que posteriormente foram transcritas. A coleta transcorreu nos meses de dezembro de 2019 a novembro de 2020, com uma pausa entre março e agosto, em que houve a proibição da condução de estudos no ambiente intra-hospitalar e nas unidades de saúde do município no período devido a pandemia da covid19.
Os aspectos éticos foram respeitados, com aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa, sob C.A.A.E nº 14567119.0.0000.5324. A identificação dos participantes se deu pela letra E (enfermeiro), M (médico), A (auxiliar de enfermagem), T (técnico em enfermagem), seguido de um número sequencial. Para diferenciar os profissionais da rede básica de saúde, após a inicial de sua profissão foi inserida a letra R (rede), enquanto que para os profissionais dos hospitais após a inicial de sua profissão foi inserida a letra H (hospital).
Resultados
Dos 40 participantes da pesquisa, 17 eram enfermeiros, 11 médicos, dez técnicos em enfermagem e dois auxiliares de enfermagem. A idade variou entre 24 e 57 anos. A maioria, 34, eram do sexo feminino e seis do sexo masculino. O tempo de formação e de atuação profissional variou de quatro meses a 30 anos. Ainda, dois participantes possuíam título de mestre, 13 possuíam a graduação como titulação máxima e 15 possuíam título de especialização. Como locais de atuação, 20 trabalhavam na rede básica de saúde municipal, quatro na unidade de Pediatria, cinco na unidade de Maternidade e 11 no Centro Obstétrico.
Da análise dos dados, emergiram quatro categorias, respectivamente denominadas: “Sífilis como um problema de saúde pública”; “Parcerias da mulher diagnosticada com sífilis”; “Julgamentos e crenças incutidos na prática profissional”; e “Erros e acertos no manejo da sífilis”. Na Figura 1, encontra-se um resumo dos principais assuntos e discussões levantadas:
Sífilis como um problema de saúde pública
Nesta categoria foi possível identificar que a sífilis é uma preocupação para os profissionais de saúde entrevistados. Os mesmos apontaram comprometimento no atendimento de saúde em múltiplas esferas, o que resulta na disseminação dos diversos tipos da doença.
“Eu considero um problema de saúde pública pela falta de informação, dos problemas que a sífilis pode acarretar tanto na vida dos adultos quanto dos recém-nascidos.” [EH-7]
“É uma falha do sistema público de saúde [...] começa lá no pré-natal, na orientação desde às escolas, porque as crianças começam muito cedo a vida sexual, os adolescentes, e não tem cuidado com preservativo, com nada dessas doenças sexualmente transmissíveis.” [MH-18]
Foi salientado o quanto, socialmente, o potencial devastador da sífilis é minimizado. Por vezes, por desconhecimento, a doença pode progredir para piores desfechos, como o abortamento e a neurossífilis, gerando consequências para além do âmbito individual. A questão do desconhecimento também foi relacionada ao conceito do autocuidado, aos aspectos culturais, sociais e também ao contexto pandêmico da covid19, o qual gerou e gera apreensão e medo nos usuários.
“Falta informação, falta sensibilização das pessoas em relação ao problema, aí vemos depois muitas pessoas lamentando a perda do filho tão desejado. O aborto mesmo, ainda tão presente na nossa realidade, causado pela sífilis.” [ER-4]
“Estamos com uma paciente inclusive com acompanhamento para neurossífilis. Uma paciente jovem, quarenta e poucos anos e está acamada [...]. E aí se vê o quanto de problemas, tanto para ela quanto para família, que agora vai ter que cuidar dela.” [ER-10]
“As pessoas parecem que... assim... depois que a AIDS não mata mais, é uma doença crônica, as pessoas deixaram de se cuidar, porque elas se cuidavam por causa da AIDS, não por causa da sífilis e aí começou a aparecer mais casos assim, gritantes, e até gonorreia.” [ER-17]
“Teve um caso hoje aqui de uma moça com diagnóstico de sífilis e ela disse assim ‘Graças à Deus que eu não peguei covid, que é só sífilis’.” [ER-19]
Parcerias da mulher diagnosticada com sífilis
Nesta categoria diversos entraves foram explanados. O manejo das parcerias sexuais se mostrou árduo, uma vez que engloba fatores sociais e culturais. A captura do parceiro é difícil por vários motivos, seja por incompatibilidade de horários da jornada de trabalho dos mesmos com o funcionamento da atenção básica, seja pelo estigma que tem o diagnóstico de uma IST, pela multiplicidade de parceiros, medo da medicação, entre outros fatores.
“Não são muitas, são poucas que trazem o parceiro para a consulta. É um trabalho árduo por que nem todas vêm, e elas dizem ‘ah mas meu parceiro vai vim’, sempre tem uma desculpa.” [MR-1]
Quanto à conduta profissional frente ao parceiro sexual da mulher em caso de diagnóstico positivo, os participantes relataram diferentes percepções e experiências.
“Parceiro independente do resultado do exame dele a gente costuma aplicar pelo menos duas doses de benzetacil de 2.400, independente do resultado ter dado positivo.” [ER-4]
“O parceiro da gestante positiva é chamado para uma consulta com a gente, para que ele seja testado também. Se esse teste for positivo se entra com o protocolo, é passado para o médico, e ele recebe a medicação de acordo com a sífilis, se é primária, secundária ou terciária.” [ER-11]
Questões de gênero foram levantadas, colocando os estereótipos sociais de feminilidade e de masculinidade e seus comportamentos enquanto preditivos da conduta da gestante e do pai da criança, sendo peça de grande influência na decisão por procurar um serviço de saúde.
“Porque parece que é um problema só da mulher né. A mulher quem foi diagnosticada primeiro, ela quem engravidou, ela quem vai ter o parto, parece que o problema é só dela.” [ER-7]
Julgamentos e crenças incutidos na prática profissional
Nesta categoria emergiram relatos carregados de sentimentos e crenças pessoais dos interlocutores. Em alguns discursos há certo tom de punição aos pais, além do estigma relacionado à classe social e ao nível socioeducativo.
“Vou ser bem sincera, me remete a falta de cuidado, é o principal. Porque como é uma doença prevenível, então eu vejo assim, falou de sífilis para mim, quer dizer que não está se cuidando. Eu vou lá, transo com uma pessoa, não me cuido. Acho que o básico seria o uso do preservativo, é o mínimo, além de não ter tanta promiscuidade. Então, assim, tem no pessoal de baixa renda, mas tu vês que essa falta de cuidados tem também nos universitários, porque não sabiam que estavam, não imaginavam, e pessoas assim, com estudo.” [ER-17]
Em contrapartida, evidenciam-se também aqueles profissionais que percebem a relevância do distanciamento emocional e de julgamento moral nos momentos de diagnóstico. Além de demonstrarem preocupação com a manutenção da privacidade e do bem-estar da clientela atendida.
“Então, sem nenhum julgamento moral ou de valor, a gente tem que fazer essa orientação em saúde, para os pais, visando que façam o tratamento e não venham a se expor novamente a uma infecção.” [MR-15]
“Eu vejo muito aqui também o preconceito. Muitas vezes elas não querem se expor. Então, a gente faz a benzetacil separado, para ninguém ficar sabendo, porque tem muito preconceito, infelizmente tem.” [ER-16]
Erros e acertos no manejo da sífilis
Nesta categoria foi possível observar relatos que demonstravam condutas em acordo com o protocolo vigente do Ministério da Saúde. Sob outra perspectiva, registros de falta de conhecimento de conceitos básicos como agente etiológico, fisiopatologia e terapêutica indicada para tratamento da sífilis tornam-se preocupantes achados.
“Acredito que o mesmo aconselhamento, tem gente que sabe e não quer tomar a vacina, até às vezes a gente vai fazer aqui dentro do hospital e elas se negam.” [TH-11]
“Eu já recebi nas unidades pacientes com a palma da mão e planta do pé, com aquelas lesões características de sífilis terciária.” [ER-14]
“No nenê tem que fazer o credê, que é aquele do olhinho para evitar a cegueira, as gotas aquelas que se coloca no olhinho.” [ER-16]
“Eu acho mais seguro ser encaminhado para uma cesariana.” [EH-21]
“Malformações congênitas, não lembro o nome da síndrome, SABIN, não tenho certeza.” [MR-20]
O desconhecimento também foi muito relatado pelos participantes do estudo, ainda que a sífilis seja uma doença bastante prevalente nos diferentes níveis de atenção. Especialmente quando questionados acerca da notificação compulsória, muitas foram as respostas inconclusivas ou em desacordo com a normatização vigente.
“A sífilis congênita, óbvio, tem que notificar, não sei, eu achava que todos os tipos de sífilis tinham que notificar, mas acho que não, não sei. Na verdade, a gente não faz notificação em todos os casos.” [MR-2]
“Notificação compulsória, não lembro muito bem o significado da palavra compulsória, mas acredito que seria quando a gente avisa e procura os pais quando são separados, aí a gente procura o pai para dizer que ele também é portador do vírus.” (TH-2)
Ainda foi possível verificar acertos nos relatos dos profissionais, demonstração de conhecimentos teóricos, bem como a execução de ações em concordância com as principais literaturas científicas da área.
“Sífilis primária é uma lesão indolor no local onde houve contato e depois de um tempo desaparece. Secundária, aparecem lesões características pelo corpo, principalmente palma das mãos e planta dos pés. Terciária generaliza pelo organismo, atingindo órgãos, causando sequelas irreversíveis, podendo levar a óbito. E a sífilis congênita, transmitida de mãe para o RN e, se não tratada, causa má formações, cegueira, surdez, natimorto, abortamento.” [TH-5].
“Nosso critério é sempre fazer o teste rápido, sendo positivo fazemos a coleta para ver a titulação e iniciamos no mesmo dia a administração da medicação, da benzetacil. A gente convoca o parceiro, a gente não convida, a gente convoca, ele é obrigado, e se ele não vem, a gente dá um tempo para ele, se não, a gente vai atrás.” [ER-4]
O momento da consulta foi apontado como uma oportunidade de orientação e captação para testagem. O pré-natal foi visto como ferramenta de destaque na contenção da disseminação vertical da doença. A orientação em saúde foi expressa enquanto fator chave para esclarecimento da população alvo e também para o entendimento da importância do tratamento.
“Não é só a questão da testagem, mas também a questão da orientação pré-teste, delas saberem quais são essas doenças, o porquê dessa testagem, a forma de transmissão, o quanto é importante se fazer esse teste no pré-natal, pela saúde dela e do bebê, eu sempre esclareço isso.” [ER-7]
“Hoje eu tenho como conduta em todo Papanicolau que coleto oferecer testes rápidos para todas as mulheres, já na própria consulta, já que ela está ali [...]. Então, toda e qualquer oportunidade que eu tenho de consulta de enfermagem eu já oferto os testes rápidos.” [ER-18]
Discussão
Os resultados obtidos denotaram que, para os profissionais de saúde, a realidade brasileira acerca da infecção pela sífilis é alarmante, uma vez que impacta não somente nos infectados, mas têm influência nos seus familiares, na sua prole e também, em maior grau, na sociedade, por meio da elevação nos gastos com a terapêutica. A sífilis é considerada como um problema para a saúde pública, uma vez que sua sintomatologia é de difícil identificação para a população leiga, além de ser uma doença ulcerosa, podendo ser porta de entrada para outras IST’s (Bastos et al., 2018).
Para os profissionais entrevistados, a ocorrência do abandono do uso de preservativos é fator decisivo para o aumento nos índices das IST’s. Tem sido registrada nas últimas décadas uma tendência de decréscimo no uso do preservativo, uma vez que o entendimento para a população é de que o HIV não é mais considerado uma infecção fatal, além de que as demais IST’s, em geral, são tratáveis ou geram poucas consequências (Mayer, 2018). Nessa concepção, homens participantes de uma pesquisa realizada no Canadá pontuaram a sífilis como uma doença onipresente, sendo, por vezes, referida como “inevitável”, mas pouco danosa e facilmente tratável com antibioticoterapia (Nath et al., 2019).
Sobre a sífilis e sua fisiopatologia, foram identificadas falas que apresentavam discrepâncias com a literatura científica da área, a exemplo da caracterização incorreta dos sintomas de cada fase da sífilis e da existência de vacina para o agravo. A competência para identificação das principais manifestações clínicas está diretamente ligada ao nível de conhecimento e orientação individual. Quando as equipes de saúde possuem expertise sobre uma temática, sua atuação se torna mais concisa e eficaz, assim como as ações educativas que organizam têm maiores chances de sucesso. De forma consonante, um estudo que objetivou verificar o conhecimento e práticas de profissionais de saúde que trabalham no pré-natal detectou que a falta de conhecimento acerca das fases clínicas da sífilis é um fator que oportuniza um manejo deficitário (Rodrigues & Domingues, 2018).
Condutas discrepantes foram observadas nas narrativas, como nos casos de tratamento do parceiro da gestante positiva somente em caso de teste treponêmico positivo. De forma semelhante, no Piauí, aproximadamente 40% dos profissionais abordados referiram tratar o parceiro somente em caso de sorologia positiva, descartando a possibilidade de janela imunológica, já que o período de incubação bacteriana é 10 a 90 dias, além disso, os principais testes analisam a produção de anticorpos (Rodrigues & Domingues, 2018).
São inquietantes alguns conteúdos de discursos, pois denotam risco para a população assistida, visto que nem todos os profissionais envolvidos na assistência detêm os saberes básicos para atender e instruir. Estudo realizado com profissionais da área obstétrica em Teresina, no Piauí, também revelou uma série de lacunas no conhecimento e práticas dos mesmos (Santos et al., 2017).
Outro aspecto que emergiu foi a questão da dificuldade enfrentada para abordagem das parcerias sexuais em caso de diagnóstico positivo para sífilis, o que acaba se tornando barreira considerável no seu manejo. Fatores como o absenteísmo do parceiro nas consultas de pré-natal e relutância em tratar-se corroboram para essa problemática (Vianna et al., 2017). A inclusão do parceiro, de forma semelhante, mostrou-se desafiadora e foi apontada como a principal dificuldade para profissionais de uma Estratégia de Saúde da Família (Costa et al., 2018). Um dos fatores chave para o persistente descontrole nos índices da sífilis ainda é o não tratamento das parcerias sexuais, especialmente em casos de detecção em gestantes, perpetuando o ciclo de reinfecção e a transmissão vertical (Centers for Disease Control and Prevention, 2017).
Este lapso no cuidado com o parceiro pode ter relação com o enfoque de muitos enfermeiros e médicos da rede básica para a sífilis congênita, inclusive havendo discursos referindo que somente o agravo na criança seria de notificação compulsória. A notificação da sífilis adquirida, por exemplo, é compulsória desde 2010, por meio da Portaria nº 2.472, de 31 de agosto (Brasil, 2010). Para pesquisadores do interior do Ceará, na Estratégia de Saúde da Família há um maior direcionamento para sífilis na gestação e sua consequência de infecção fetal, sendo menor a abordagem da sífilis adquirida, o que acarreta em pouco conhecimento acerca do agravo e provável subnotificação (Bastos et al., 2018; Costa et al., 2018).
Abordando mais especificamente a saúde da mulher, esteve presente nos achados falas que citam o instinto materno como facilitador para o autocuidado, como se por gestar e conceber, a mulher fosse a única responsável pelo controle da infecção e bem-estar fetal. É crucial refletir sobre a responsabilidade atribuída ao feminino acerca dos processos de controle da fertilidade, ocorrência que torna desigual a cobrança social sobre os processos reprodutivos (Barcellos et al., 2019). Esse peso que, por muitas vezes, é atrelado ao feminino, relaciona-se em parte à condição de gestação e ao cuidado visto como necessário ao corpo feminino, dito mais vulnerável (Botton et al., 2017). Questões de gênero são frequentemente abordadas quando o assunto é sexualidade, pois esses papéis presumidos têm influencia nos processos de saúde-doença da população.
Em um contexto geral dos discursos, muitas foram as incertezas apontadas e expostas nas respostas obtidas, como dúvidas acerca da notificação, da medicação indicada, dentre outras. Pesquisa feita na cidade de Rhode Island, Estados Unidos, concluiu que os profissionais médicos não especialistas não se sentem confiantes para trabalhar com pacientes com sífilis, sendo o conhecimento dos entrevistados, em geral, considerado baixo (Bonnewell et al., 2020). De maneira congruente, estudo realizado no Paraná identificou profusas debilidades na teoria para realização do diagnóstico e do tratamento da sífilis, com a existência de múltiplas divergências acerca do manejo entre os profissionais da Estratégia de Saúde da Família (Costa et al., 2018).
A atenção de qualidade, utilizando condutas acolhedoras e isentas de julgamento moral é o que se espera de um serviço de saúde humanizado, livre de estigmas e preconceitos (Costa et al., 2018). O atendimento pré-natal, por sua vez não deve ser visto puramente enquanto um dado numérico de produtividade, mas sim enfatizar a qualidade com a qual é prestado esse serviço (Rocha et al., 2019). Da mesma forma, o atendimento às IST’s não deve se limitar apenas ao período gravídico, mas precisa ser expandido para diversos outros momentos oportunos de contato com os usuários e a comunidade assistida, como nas salas de espera e também no ambiente escolar.
Portanto, conclui-se que o objetivo deste artigo foi alcançado ao identificar o conhecimento, as crenças e as condutas dos profissionais que prestam assistência direta às crianças diagnosticadas com sífilis congênita e as suas mães. Verificou-se o quão importante é captar quais são as maiores dificuldades inerentes ao atendimento da gestante e de suas parceiras sexuais enfrentadas pelos profissionais de saúde que estão na linha de frente do cuidado. À vista disso, os profissionais citaram a falta de informações e de sensibilização acerca da temática, o difícil manejo das parcerias sexuais e as dúvidas quanto a notificação compulsória, testagem e tratamento, que podem auxiliar a embasar o planejamento da atenção em saúde, de modo a prevenir o agravo e suas complicações.
O estudo limita-se por ter uma base qualitativa, portanto a amostragem não permite uma análise de causa e efeito, com avaliação de quanto o conhecimento ou ausência desse têm impacto na assistência em saúde prestada. Além disso a coleta foi realizada em apenas um município, o que caracteriza regionalização dos achados, não permitindo a extrapolação dos resultados encontrados. Todavia, acredita-se que os dados do estudo permitiram elucidar a existência de lacunas no saber, de crenças culturais e sociais, da aplicação de valores pré-concebidos que, de forma isolada ou em conjunto, podem contrapor a efetivação de uma adequada assistência aos pacientes adultos e pediátricos acometidos pela sífilis. Intervenções baseadas no levantamento das necessidades, no direcionamento de recursos, nas ações de educação em saúde, e na efetivação de políticas públicas com foco nos principais déficits detectados em cada serviço, considerando suas especificidades, podem auxiliar a amenizar essa problemática. Por fim, identifica-se a pertinência da capacitação permanente dos profissionais envoltos no atendimento ao pré-natal, parto e puerpério.
Contribuição dos autores
Jaqueline Costa: Conceitualização, curadoria dos dados, análise formal, investigação, metodologia, administração do projeto, redação do rascunho original, revisão e edição.
Edison Barlem: Conceitualização, metodologia, supervisão, redação do rascunho original, revisão e edição.
Camila Silva: Conceitualização, metodologia, supervisão, redação do rascunho original, revisão e edição.
Carla Gonçalves: Conceitualização, metodologia, supervisão, redação do rascunho original, revisão e edição.
Graziele Dalmolin: Conceitualização, metodologia, supervisão, redação do rascunho original, revisão e edição.
Silvio Prietsch: Conceitualização, metodologia, supervisão, redação do rascunho original, revisão e edição.
Victoria Gutmann: Redação do rascunho original, revisão e edição.